As tropas do Bloco de Esquerda juntavam-se esta quarta-feira em frente à igreja de São Roque, no Chiado, para a primeira (e grande) arruada da campanha quando os telemóveis de militantes e jornalistas vibraram. Notificação: Twitter do Bloco. Assunto? André Ventura. A mensagem era curta e direta: “Sabes qual é a forma mais eficaz de derrotar André Ventura?”. A resposta, é claro, seria votar no partido de Catarina Martins.
Em poucos caracteres e onze segundos de vídeo ficava resumido um dos principais eixos que têm marcado o arranque da campanha bloquista. O objetivo estava traçado há muito: o Bloco quer posicionar-se como o verdadeiro adversário de Ventura e entrar na disputa direta com o Chega, um campeonato que sabe interessar aos eleitores mais à esquerda. Mas a disputa não é apenas retórica ou ideológica: em causa estão mesmo os lugares de deputados que o Bloco quer manter – e sabe que, em vários pontos cruciais do país, o partido de Ventura será mesmo o seu adversário direto.
É por isso que tem alimentado, sempre que pode, a retórica anti-Chega e a mensagem que Catarina Martins passa há semanas: é preciso “dar uma lição à extrema-direita”. E é por isso que na comitiva se festeja quando Ventura morde o isco – acabando por validar o Bloco como seu adversário direto.
Passo um: o bairro da Jamaica (e a ajuda do avô Coxi)
Se a narrativa vinha sendo alimentada há semanas – pelo menos desde que, ainda em dezembro, Catarina Martins estabeleceu em entrevista à RTP a manutenção do lugar de terceira força política como a sua fasquia para a noite eleitoral – o palco ideal para transmitir a mensagem com mais força chegou na terça-feira, terceiro dia oficial de campanha.
O cenário era desolador: “casas” que mais não são do que tijolos empilhados, passeios esburacados, poças de água espalhadas por terrenos esburacados, estendais colocados de improviso no meio do bairro. E o bairro era o bairro da Jamaica, no Seixal, o mesmo onde ainda mora a família Coxi, que Ventura insultou há um ano, a meio de um debate com Marcelo Rebelo de Sousa – insulto (“bandidos”) que lhe valeu uma condenação em tribunal e a obrigação de pedir desculpa publicamente.
A comitiva bloquista até já tinha avisado os jornalistas de que a família poderia estar agastada com a exposição mediática que a polémica com Ventura provocou e Catarina apenas deixara uns discretos “parabéns pelo processo” a um dos representantes da associação de moradores. Mas assim que se aproximou dos microfones, explicou: a intenção de estar ali passava, sim, por chamar a atenção para as condições mais do que precárias em que dezenas de famílias continuam a viver; mas tratava-se, também, de lembrar os “insultos racistas” que Ventura dedicara à família Coxi.
O mote estava dado, mas o assunto estava longe de estar encerrado. Foi quando os jornalistas perguntaram o nome aos dois representantes dos moradores que ali se encontraram que se ouviu o apelido que, desde o ano passado, se tornou habitual nos jornais: “Vanusa Coxi e Fernando Coxi”. Mais: Fernando, o avô da família Coxi, falava de bom grado sobre o caso, descrevendo Ventura como “um homem terrível” e explicando como as netas foram insultadas na escola, com uma mensagem final sobre como “o amor vence”.
Era a mensagem perfeita para o Bloco acompanhar – e Catarina agarrou a oportunidade. “A família que hoje conheci foi insultada em pleno horário nobre por nenhuma razão que não o racismo. Ventura insultou toda a comunidade e o país com os seus insultos racistas”. Conclusão – eleitoral: “A melhor lição é a derrota nas urnas e o reforço do Bloco como terceira força é a maior derrota. Não aceitamos o país do ódio e da gritaria, que se auto-destrói”.
O desafio estava lançado e, para gáudio do Bloco, Ventura não demoraria a responder. Horas antes de Catarina voltar a pegar no assunto – no programa de Ricardo Araújo Pereira compararia o “líder da extrema-direita” ao “sapo” da fábula do sapo que queria ser boi (“incha, incha, incha e depois rebenta”) – já o presidente do Chega respondia ao desafio. “Evidentemente, se o Bloco conseguir ficar à frente do Chega é uma derrota para o Chega”, diria aos jornalistas.
O barro tinha colado à parede. O dia seguinte seria um acumular de ataques a Ventura – e uma negação de que a insistência no assunto fosse contraproducente. Afinal, era o próprio Bloco que queria colocar a corrida a dois na agenda da campanha.
A luta pelos últimos deputados
Não será exclusivamente por questões ideológicas ou por vontade de animar as bases. As contas são relativamente simples de fazer: os bloquistas sabem que precisam de conquistar o terceiro lugar em quase todos os círculos em que elegeram apenas um deputado, para conseguirem a reeleição. São os casos de Santarém (onde fizeram um comício na noite gelada de quarta-feira com a cabeça de lista, a deputada Fabíola Cardoso), Faro (onde acontece o comício desta quinta-feira, com o candidato regressado de Bruxelas, José Gusmão), Coimbra e Leiria. Nos três últimos casos, só PS, PSD e Bloco conseguiram eleger representação parlamentar em 2019; em Santarém, o PCP também conseguiu eleger António Filipe, mas mesmo assim o Bloco só conquistou um lugar.
Mais: o terceiro lugar também pode determinar a eleição dos últimos lugares nos círculos maiores, uma questão que também preocupa os bloquistas – em 2019, elegeram cinco deputados por Lisboa e quatro pelo Porto; este ano, se sofrerem o rombo que várias sondagens apontam, esses lugares poderão estar em risco.
A fixação com o objetivo de se manterem na posição de terceira força política também ajuda a gerir as expectativas para a noite eleitoral: se as sondagens se confirmarem, será bastante mais provável o partido garantir esta fasquia do que conseguir crescer e somar elementos ao grupo parlamentar. Por isso mesmo, e com “humildade”, como Catarina Martins referia na já referida entrevista à RTP, o objetivo principal – e o que permitiria ao Bloco falar numa vitória numa noite que pode trazer dificuldades – passa a ser a terceira posição. E essa, acredita o Bloco, será disputada com André Ventura.
Há uma ironia na estratégia: é semelhante à que Ana Gomes usou na campanha presidencial do ano passado, quando fez por se assumir como adversária de André Ventura — muitos dos seus apoiantes defendiam, aliás, que seria um “tampão” eficaz contra o Chega, por partilhar temas-chave como o combate à corrupção, o que poderia ajudar a esvaziar o discurso do adversário (temas em que Catarina Martins centrou todo o debate contra o líder do Chega).
O voto ‘útil’ anti-Ventura ficaria, assim, concentrado numa só candidata. Um dos momentos de maior animação da campanha presidencial de Marisa Matias seria, aliás, a onda #Vermelhoembelem, depois de o líder do Chega ter referido pejorativamente o batom que a bloquista costumava usar. A referência irritaria as bases e a polémica geraria uma onda de solidariedade — e a hashtag que a própria Ana Gomes acabaria por partilhar nas suas redes.
Demasiada atenção? Nem por isso
Por tudo isto, os bloquistas ficaram, assim, satisfeitos quando perceberam que Ventura tinha respondido ao desafio do Bloco e aceitado entrar nesta espécie de campeonato paralelo. Logo na quarta de manhã, estava Catarina Martins entre capacetes e botas penduradas no quartel de bombeiros de Setúbal, foi só preciso posicionar-se para as declarações aos jornalistas e esperar pela questão que viria ao sexto minuto de perguntas e respostas, sobre as declarações de Ventura.
A resposta traria a confirmação da estratégia: “O BE quer impor essa derrota a André Ventura e à extrema-direita e a quem semeia violência e racismo e insulta os mais pobres e vulneráveis. Sim, o BE como terceira força será não só a forma de termos uma solução para o país mas também uma derrota para a extrema-direita”.
Horas depois, chegaria então o tweet, partilhado também nas redes de Catarina Martins. E, a meio da arruada bloquista, mais uma farpa: “É tão importante que a terceira força seja o BE não só pela pensão, pelo salário, pela saúde, pelo clima, mas também para que a extrema-direita seja derrotada. Ainda bem que Ventura reconhece que o Bloco como terceira força é a derrota da extrema-direita”. Não estaria o Bloco a oferecer centralidade a Ventura, perguntavam os jornalistas? Catarina discordaria: a atenção o Chega já “tem”; “mas é verdade, sim, que é importante para o país que a extrema-direita seja derrotada”.
O tiro ao alvo estava feito, o objetivo traçado também. À noite, em Torres Novas, Fabíola Cardoso ocupar-se-ia de subir ao palco do mercado do Peixe e colocar os dois objetivos do Bloco em pé de igualdade: “Derrotar a extrema-direita e iniciar um novo ciclo governativo de estabilidade à esquerda”. Catarina centraria o discurso, minutos depois, no segundo objetivo. O resto do dia já fora – e, na perspetiva do Bloco, com eficácia – dedicado ao primeiro.