Depois de ter atingido um pico de mais de 1,7 milhões no final de dezembro, o número de utentes sem médico de família atribuído em Portugal caiu para 1,5 milhões em fevereiro (uma diminuição de 195 mil pessoas), isto ao mesmo tempo que vai avançando a limpeza das listas de utentes, ordenada pelo Ministério da Saúde. Os médicos estão preocupados, uma vez que, para além dos utentes sem médico, estão a ser retiradas do sistema pessoas que residem em Portugal e que usam os serviços de saúde — muitas vezes apenas devido à falta de um elemento na ficha de utentes, como o número de contribuinte.
O número de utentes sem médico de família atribuído caiu cerca de 11% em apenas dois meses, passando de um milhão e 725 mil pessoas no final de dezembro para um milhão e 529 mil em fevereiro (menos 195 mil pessoas), segundo os dados disponíveis no Portal da Transparência do SNS, consultados pelo Observador. No entanto, apenas foi atribuído um médico a uma pequena parte destes utentes. No mesmo período, o número de utentes com médico de família subiu apenas em 41 mil pessoas (de oito milhões e 824 mil em dezembro para oito milhões e 865 mil em fevereiro), o que indica que parte significativa da descida do número de utentes sem médico é explicada pela limpeza que, desde o início do ano, está a ser feita às listas dos centros de saúde. No total, há menos 163 mil doentes inscritos — são agora 10 milhões e 570 mil.
Limpeza artificial e preocupante, dizem os médicos
“Há menos utentes sem médico mas não porque lhes tenha sido atribuído um, mas sim porque houve esta limpeza artificial. Basta os doentes não terem um dado para saírem automaticamente da lista. É melhoria artificial, uma ficção”, critica a Presidente da Federação Nacional dos Médicos, Joana Bordalo e Sá.
“Há pessoas que têm sido eliminadas das listas. O que acontece é que estão a ser retirados utentes que existem, apenas porque têm algum dado em falta. São inadvertidamente retirados“, denuncia também o vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, António Luz Pereira. Uma situação confirmada pela associação que representa as unidades de saúde familiares. “Vão aparecendo casos de pessoas que utilizam os serviços e são retirados das listas, é preocupante”, confirma Nelson Magalhães, vice-presidente da USF-AN.
Em causa está um despacho do governo, publicado no início do ano passado, e que serviu para “definir as regras de organização e os mecanismos de gestão referentes ao Registo Nacional de Utentes (RNU), assim como as regras de registo do cidadão no SNS e de inscrição nos cuidados de saúde primários”.
Governo adia “limpeza” da lista de utentes do SNS para depois das eleições
Na prática, o despacho determina que saiam do estado “ativo” do RNU os utentes que não tenham os 10 ou 11 elementos obrigatórios preenchidos na ficha. No caso dos cidadãos nacionais, trata-se do nome; sexo; data de nascimento; país de nacionalidade; país de naturalidade; distrito, concelho ou freguesia; tipo de documento de identificação; número de documento de identificação; número de identificação fiscal; morada de residência. No caso dos estrangeiros, a estes dados soma-se o documento de autorização de residência em Portugal válido.
Falta de um elemento na ficha (como o NIF) está a levar à exclusão de utentes
Em caso de falta de qualquer um destes elementos, os centros de saúde têm indicação para alterar o utente para o estado “inativo”, o que significa que o utente continua a figurar do RNU mas deixa de estar inscrito no centro de saúde, ou seja, sai das listas.
É precisamente isso que está a acontecer. E a limpeza não tem afetado apenas as pessoas sem médico, mas também a que têm médico atribuído há anos, diz Luz Pereira. “Muitas vezes conhecemos os utentes, alguns têm consultas marcadas“, diz o médico, que trabalha na Unidade de Saúde Familiar da Prelada, no Porto.
De acordo com os dados oficiais, foi na região de Lisboa e Vale do Tejo que mais doentes foram retirados das listas: 225 mil em apenas dois meses. No entanto, a realidade não é similar em todo o país, uma vez que as regiões Norte e Centro até registaram um aumento de quase 100 mil inscritos no mesmo período. Uma realidade que não surpreende a Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiares (USF-AN), que lembra que muitas unidades (principalmente na zona de Lisboa) não têm recursos humanos em número suficiente para fazer os contactos necessários com todos os utentes com elementos em falta — ao contrário do que acontece a norte do Tejo.
Centros de saúde não conseguem contactar todos os utentes com dados em falta
“A comunicação com os utentes está a falhar, porque muitas unidades de saúde estão assoberbadas com trabalho e não têm secretários clínicos suficientes. Não têm capacidade de resposta”, explica o vice-presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiares. Para Nelson Magalhães, deveria ser o estado central, através da Administração Central do Sistema de Saúde (um organismo do Ministério da Saúde) a fazer os contactos com os utentes e atualizar as fichas. O ónus está, assim, do lado das unidades que têm vindo a contactar os utentes com dados em falta por email, SNS ou chamada. Nas zonas onde os recursos humanos escasseiam, o contacto direto por chamada é pouco frequente, o que diminui a probabilidade de os utentes transmitirem aos centros de saúde os dados em falta e faz aumentar o número de utentes retirados do sistema. Inicialmente, os centros de saúde tinham até 19 de janeiro para proceder à limpeza das listas, um prazo que, entretanto, foi alargado até 31 de março.
Os utentes mais afetados são a população mais frágil, sublinha o médico e vice-presidente da APMGF António Luz Pereira: os idosos, uma vez que muitos ainda têm bilhete de identidade e não cartão do cidadão (o que dificulta o acesso aos números de identificação fiscal, por exemplo); os recém-nascidos, já que, muitas vezes, os pais não têm oportunidade de fazer o registo completo; e os migrantes, que não têm a ficha completa, uma vez que muitos não têm a documentação necessária.
Existem também pessoas que têm morada fiscal no estrangeiro mas que passam grande parte do ano em Portugal e que estão a ser retirados das listas, adianta a presidente da FNAM, uma situação confirmada por Luz Pereira, que alerta para a necessidade de “garantir que não é retirado nenhum utente que existe e que recorre às unidades”. “Está a ser um trabalho árduo dos secretários clínicos, que têm estado a contactar os utentes de forma a completar esses dados. No caso dos migrantes, essa atualização não depende deles”, lamenta, porque em muitos casos não possuem autorização de residência, apesar de usarem os serviços de saúde.
O objetivo da limpeza das listas é, diz a tutela, numa resposta enviada ao Observador, melhorar “a qualidade dos dados que constam do RNU, críticos para a partilha eficaz da informação entre sistemas e para a identificação e comunicação com os utentes”, de modo, a por exemplo, retirar os RNU utentes que já não vivem em Portugal, que morreram ou cujo registo está duplicado. O Ministério estima que cerca de 300 mil pessoas possam ser retiradas das listas, por se encontrarem numa destas situações.
Ministério contraria informações do terreno e diz nenhum utilizador é excluído
No terreno, os responsáveis admitem que a atualização do RNU é importante — até para libertar espaço das listas de utentes dos médicos de família — mas criticam o excessivo rigor do despacho do governo, que está a levar a que sejam excluídos doentes que, de facto, acedem aos cuidados. “Entre outubro e janeiro foram retiradas centralmente pessoas que não contactavam os serviços há mais de cinco anos, o que se percebe. Agora, cortar vínculos a pessoas que estão emigradas e a pessoas que recorrem aos serviços” cria desigualdade no acesso, alerta o vice-presidente da USF-AN Nelson Magalhães. Uma ideia secundada por Joana Bordalo e Sá. “Entendemos que a atualização tenha de ser feita (para doentes que faleceram ou que estão emigrados) mas corremos o risco de retirar pessoas que existem e que ficam sem o médico, por falta de um dado administrativo — isso é inaceitável. Olhamos para isto com preocupação”, salienta a Presidente da FNAM, acrescentando que as orientações do Ministério da Saúde são “excessivas”.
No entanto, o Ministério da Saúde contraria os relatos de quem trabalha nos centros de saúde e adianta, ao Observador, que “este processo [de limpeza das listas] tem decorrido de forma muito cuidadosa, precisamente para assegurar que não são postos em causa os direitos dos utentes”. A tutela garante também que “nenhum utente que seja utilizador dos serviços será excluído da lista dos utentes ativos por faltar um elemento de identificação, não tendo chegado ao Ministério qualquer reporte”. Para além disso, o ministério liderado por Manuel Pizarro coloca ainda parte da responsabilidade do lado dos utentes, sublinhando que estes “devem procurar manter os seus dados atualizados, contribuindo para um funcionamento mais eficiente dos serviços”.