Índice
Índice
Meleagro de Gadara é um nome relativamente obscuro na história da literatura ocidental. Nascido na zona mais a oriente do mundo grego, há mais de dois mil anos, Meleagro terá sido autor de centenas de poemas dos quais apenas algumas dezenas chegaram aos dias de hoje. Contudo, não foi por eles que o poeta nascido em Gadara ficou conhecido, mas sim por ter sido responsável pela mais antiga antologia de poesia que se conhece no ocidente — a Antologia Grega.
Reunidos no século I a.C., os poemas da coleção de Meleagro sobreviveram à passagem dos anos, mantendo uma popularidade difícil de igualar ao longo dos séculos. A este primeiro conjunto de poemas, foram sendo acrescentados muitos outros em edições posteriores, fazendo com que o livro de Meleagro continuasse a crescer até meados do século XIV, altura em que foi revisto por Maximus Planudes, um teólogo bizantino responsável pela última versão da antologia. Esta edição definitiva continuou a ser publicada nas décadas seguintes, ganhando uma renovada atenção nos séculos XIX e XX e influenciando autores como Fernando Pessoa ou o norte-americano Ezra Pound, que se dedicaram à tradução de alguns dos seus poemas.
Apesar da sua popularidade na Europa, a Antologia Grega nunca teve uma edição portuguesa e a maioria dos seus poemas nunca foram editados em Portugal. Até agora. Este mês de fevereiro, chega às livrarias Poemas da Antologia Grega, o mais recente volume da coleção de bolso da Assírio & Alvim, “Gato Maltês”, que editou no ano passado um livro dedicado ao poeta místico indiano Kabir. Composta por pouco mais de 50 dos cerca de 4.500 poemas da Antologia Grega, esta edição — da responsabilidade do poeta e tradutor José Alberto Oliveira — começa exatamente com um dos poucos epigramas traduzido para português: “A minha lança de freixo”, de Arquíloco, publicado na Hélade — Antologia da Cultura Grega, de Maria Helena da Rocha Pereira.
Ao contrário da antologia da classicista portuense, o novo livro da “Gato Maltês” não foi traduzido diretamente do grego. Os textos — cada um da autoria de um poeta diferente — foram adaptados para português a partir da edição da editora Penguin, The Greek Anthology, organizada em 1982 pelo inglês Peter Jay com a ajuda de cerca de 48 académicos. E é por isso que, na capa portuguesa, não aparece a palavra “traduções” mas sim “versões”, uma escolha deliberada por parte de José Alberto Oliveira, que já não é novo nestas andanças: em 2001, o tradutor publicou, também pela “Gato Maltês”, um livro de versões do poeta chinês do século IX Li Shang-Yin, Chuva na Primavera.
Oliveira decidiu voltar recentemente às “versões” por considerar que “verter/traduzir é uma forma de estimular” a “imaginação” e, por conseguinte, a escrita, mas também pelo “gozo” que lhe dá. Mas essas não foram as únicas razões: ao Observador, admitiu que acredita que o livro “pode funcionar como um estímulo para eventuais leitores e posteriores leituras”, como lhe aconteceu quando leu “as antologias de Jorge de Sena, José Bento, Joaquim Manuel Magalhães”, entre outros. Foi, de resto, isso que aconteceu durante vários séculos com os leitores da antologia de Meleagro de Gadara que permitiram que o trabalho do poeta grego não morresse.
Meleagro de Gadara, um ilustre desconhecido
Michael Tueller é uma das muitas personagens que fazem parte da longa história da Antologia Grega, que começa com um poeta obscuro nascido na atual Jordânia — Meleagro de Gadara. Professor na School of International Letters and Cultures da Arizona State University, nos Estados Unidos da América, Tueller foi responsável pela última revisão da edição da Loeb Classical Library da Harvard University Press deste conjunto de poemas, traduzidos originalmente pelo académico William Roger Paton, conhecido pelas suas traduções de obras clássicas gregas, como as Histórias, de Políbio (também publicadas pela Harvard). Esta edição foi, aliás, uma das que José Alberto Oliveira consultou para as suas “versões”, apesar de estas seguirem a tradução de Peter Jay, que editou, em 1982, uma seleção de poemas pela Penguin.
Ao Observador, Michael Tueller explicou não se conhece muito sobre Meleagro e que as poucas informações que foi possível recolher provêm da sua poesia. Além de ter vivido no século I a.C., sabe-se apenas que era de Gadara (uma antiga cidade no norte da atual Jordânia, centro da cultura grega na região) — daí o nome Meleagro de Gadara por que ficou conhecido — e que viveu em Tyre (atual Líbano) e em Cos, uma ilha grega no Mar Egeu. Ao que parece, gostava de se gabar da sua vivência cosmopolita, uma vez que terá tido contacto com diferentes culturas e línguas. Poeta e também autor de alguma prosa satírica, de acordo com um editor posterior da Antologia Grega, terá vivido durante o reinado de Seleuco VI (96–95 a.C.), da Síria, não se sabendo, porém, se será verdade.
O que é certo é que por volta do ano 100 ou 90 a.C., Meleagro decidiu compilar dezenas de poemas — epigramas — escritos por si e por 50 poetas seus contemporâneos, criando a primeira antologia poética que se conhece na tradição ocidental. Porquê, não se sabe. “Ele era um leitor muito incisivo de epigramas. Conseguimos perceber isso não só por causa da seleção que ele fez, mas também porque o trabalho dos seus antecessores foi entrelaçado de uma forma muito artística com as suas próprias composições”, referiu o professor da School of International Letters and Cultures da Arizona State University. A antologia de Meleagro de Gadara inclui mais de 100 poemas da sua própria autoria, que abordam muitas vezes temas eróticos.
Apesar desta antologia poética ser a mais antiga que se conhece, isto não significa que tenha sido a primeira. O mais provável é que, como acredita Michael Tueller, tenha sido simplesmente a mais influente e que, por essa razão, tenha sobrevivido à passagem do tempo. O seu impacto é claro: até deu origem à própria palavra antologia, cujo equivalente grego — anthologia — quer dizer literalmente “um conjunto de flores”. Apesar de nunca ter usado este termo para se referir ao seu próprio trabalho, Meleagro usou a metáfora de colher flores para o descrever, dando origem ao que viria a ser a palavra anthologia e o seu significado atual. Além disso, como explicou Michael Tuller ao Observador, Meleagro de Gadara não se limitou apenas a “colher” poemas, “também os arranjou de forma a criar um conjunto agradável no seu todo”. É por isso que o seu trabalho ficou conhecido como “a Coroa”, sendo referido muitas vezes em inglês como the Garland — “coroa de flores”. “Ele usou a metáfora de que estava a ‘tecer’ os seus poemas de forma a criar uma coroa, como uma coroa de flores que se usa na cabeça”, explicou ainda o classicista.
Depois de Meleagro
A antologia de Meleagro de Gadara continuou a ser republicada nos séculos seguintes. A segunda edição, da responsabilidade do grego Filipe de Tessalónica, surgiu no século I d.C. À edição de Meleagro, Filipe acrescentou 72 epigramas da sua própria autoria. A terceira edição foi feita pelo poeta e historiador Agathias de Myrina (uma cidade na zona de Mísia, atual Turquia). Esta versão, provavelmente divulgada durante o reinado do imperador bizantino Justino, inclui o chamado “Ciclo de Agathias”, que inclui epigramas da autoria do poeta e de outros escritores seus contemporâneos. Tal como a antologia de Filipe de Tessalónica, a coleção de Agathias de Myrina é “muito semelhante à primeira”, incluindo apenas algumas mudanças nos subgéneros. “Porém, os poemas tornaram-se tendencialmente maiores e com um vocabulário mais ornamentado”, explicou Michael Tueller.
↓ Mostrar
↑ Esconder
Aurora inconstante, és indolente,
quando outros dormem com Demo.
Porquê, quando é a minha vez,
és tão alegremente pontual?
Verte este vinho
e diz este nome: Heliodora!
Verte de novo,
repete o mesmo,
até que vinho
e nome se unam.
Coroa-me com estas
pétalas regadas
pelo perfume
que ela derrama.
Vejam — a rosa chora
(a irmã dos amantes)
dorida, porque
no peito de outros
Heliodora repousa
agora a cabeça.
A corda da minha vida, Mysicus,
tu apertas. É o teu sopro
que da minha alma resta.
Os teus olhos até os surdos ouvem.
Olha-me taciturno e
acontece o Inverno;
se os teus olhos sorriem,
a Primavera ri-se,
cobrindo-se de pétalas.
Meleagro de Gadara (versão portuguesa de José Alberto Oliveira)
Por volta do ano 900 d.C., estas coleções foram parcialmente incorporadas e distribuídas por 15 livros, divididos por temas, por um indivíduo chamado Constantino. “A criação de Constatino parte não só das três grandes antologias anteriores — Meleager, Filipe e Agathias –, mas também de uma variedade de outras coleções”, disse Tueller. Além de “coleções anónimas”, a antologia de Constantino incluía também trabalhos de figuras menos famosas da poesia grega, como Christodorus, Rufinus, Diogenianus, Palladas e Estrabão”, este último autor de um monumental tratado de Geografia, com a história e descrição de povos e lugares de várias zonas do mundo (incluindo a zona de Portugal). Terá sido esta antologia, parcialmente preservada no chamado manuscrito Palatino, que terá servido de fonte à coleção elaborada por Maximus Planudes, o último editor da Antologia Grega.
Maximus Planudes — que na verdade se chamava Manuel Planudes — nasceu em 1260, na cidade de Nicomédia (hoje conhecida como Izmit, na atual Turquia). Passou grande parte da sua vida em Constantinopla, onde morreu em cerca de 1330. Monge, académico e teólogo, foi responsável pela tradução para grego de muitas obras literárias e filosóficas latinas (como As Guerras da Gália, de Júlio César, e As Metamorfoses, de Ovídio), assim como pela divulgação da matemática árabe pelo Império Bizantino. Contudo, foi como editor da Antologia Grega que ficou famoso. Conhecida como Antologia Planudiana, a edição de Planudes saiu em 1301 e incluía muitos epigramas omitidos por Constantino.
Quase tudo o que sobrou destas versões encontra-se conservado num só documento — o manuscrito Palatino, assim chamado por ter sido encontrado na Biblioteca Palatina, em Heidelberg, em 1606. Este encontra-se atualmente depositado em dois lugares distintos: a primeira parte está na Biblioteca da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e a segunda na Biblioteca Nacional de Paris. Há depois um segundo documento — o manuscrito Planudiano, assim apelidado porque os poemas aí reunidos são os que foram compilados por Maximus Planudes –, guardado na Biblioteca Nacional de S. Marcos, em Veneza.
Este é importante porque “se sobrepõe de forma significativa” ao manuscrito Palatino, “preenchendo algumas falhas”, esclareceu Tueller, acrescentando que não é usual descrever um trabalho literário desta forma. “Os classicistas como eu, raramente deixam que um único manuscrito tenha mais ou menos a última palavra sobre o que entra ou não [na edição final], mas depois de uma história tão longa de agregação ou extração de poemas, esta estratégia é provavelmente a melhor”, garantiu o académico
A barba, a cabra e Platão
A versão “definitiva” da Antologia Grega é composta por mais de quatro mil poemas escritos por mais de 360 poetas, que vão desde o período de Alexandre, o Grande (século IV a.C.), quando o mundo grego se estendeu até oriente, até à antiguidade tardia. Além de uma mistura de autores reconhecidos — como Meleagro, Crinagoras, Calímaco de Cirene, Leónidas, Palladas e Paulo Silenciário — e de outros com menos talento, a antologia reúne também diferentes abordagens literárias, temas e ideais filosóficos, mostrando diferentes facetas da cultura grega. Era por essa razão que Pentti Saarikoski, um dos mais importantes poetas finlandeses dos anos 60, considerava que a obra era um testemunho da juventude, maturidade e declínio da cultura grega. Ezra Pound, cuja influência da Antologia Grega é bem visível na sua obra poética, tinha uma opinião diferente: numa carta para a editora e crítica literária norte-americana Harriet Monroe, de 1931, Pound escreveu que “a Antologia Grega não é uma contradição; não representa a mediocridade de uma década mas o florilegium [uma antologia] de uma longa série de décadas”.
Estes mais de quatro mil poemas são de um género só — epigramas. E o que são epigramas? O termo tem origem na palavra grega epigraphein, que significa “escrever” ou “gravar”. Um epigrama é, portanto, “alguma coisa escrita, inscrita ou gravada”, podendo também referir-se a um género de poesia inscrita, como explicou ao Observador Michael Tueller. Esta última definição foi a que se tornou mais popular e é essa que hoje em dia pode ser encontrada nos dicionários. Inicialmente, esta poesia “inscrita” era de dois géneros: podia tratar-se de uma inscrição em objetos para oferecer aos deuses ou de uma inscrição numa pedra tumular. No primeiro caso, a costumava incluir o nome da divindade a que o objeto era dedicado, quem o oferecia e também “algumas palavras sobre o motivo da oferenda”, explicou Michael Tueller. No segundo caso, o objetivo era essencialmente prático — identificar quem ali estava sepultado. Muitas vezes, a inscrição incluía também o nome de quem o enterrou “e o motivo pelo qual o defunto era digno de nota”.
Numa segunda fase, “provavelmente não muito depois de 480 a.C., os epigramas de poesia de mérito” — como os que apareciam nos túmulos — “começaram a ser copiados para coleções e a circular em forma de livro”. “Depois, por volta de 300 a.C., a moda na poesia começou a ser a da brevidade e, por esta razão, os epigramas começaram a ser compostos apenas com propósitos poéticos, sem qualquer intenção de moralizar ou de inscrever”, adiantou Tueller, acrescentando que “muitos destes ‘epigramas literários’ estavam presos a modelos antigos, isto é, eram feitos para ser incluídos em oferendas ou em pedras tumulares”. “Mas alguns seguiram novas direções.”
↓ Mostrar
↑ Esconder
Eutychides, o poeta lírico, morreu.
Fugi, ó moradores do Hades! — ele transporta odes
e ordenou que consigo queimassem
vinte liras e vinte e cinco pautas de música,
que Caron terá de transportar.
Onde se poderá encontrar refúgio,
agora que Eutychides canta pela eternidade?
Diophon, ao ver outro ser crucificado
em cruz mais alta, morreu de inveja.
Peruca, rouge, mel, cera, dentes;
com o preço de tal maquilhagem
pouparias comprando uma cara nova.
Excerto de epigrama de Lucilius (versão portuguesa de José Alberto Oliveira)
Dois dos que “seguiram novas direções” dizem respeito à poesia amorosa e à descrição de obras de arte. “Estas foram as quatro categorias em que Meleagro dividiu a sua poesia: poesia erótica (poemas de amor), dedicatórias (poemas inscritos em oferendas), poesia sepulcral (poemas inscritos em lápides) e poesia descritiva”, explicou o classicista. “Com o tempo, contudo, começaram a surgir outros subgéneros, como adivinhas, conselhos, oráculos e problemas matemáticos. Porém, os que mais se destacavam, eram os epigramas escóticos ou de escárnio.”
A Antologia Grega está cheia deles, e José Alberto Oliveira incluiu vários deles no seu livro “por razões de gosto”. Um dos mais acutilantes (e também um dos maiores) é da autoria de Gaius Lucilius, poeta latino do século II a.C. considerado por muitos o “pai da sátira”. Um outro texto, mais pequeno, atribuído a Luciano, questiona apenas: “Se pensas que a barba traz a sabedoria,/ pede à minha cabra para ser Platão”. Foi, aliás, entre os latinos que os poemas de escárnio se tornaram particularmente populares. “Quando os epigramas foram adotados pelos romanos, este era o subgénero em que geralmente escreviam”, explicou Michael Tueller, dando como exemplo a coleção de Marcial, “o epigramista latino mais proeminente”, cuja obra se encontra publicada em Portugal pelas Edições 70. “Como acontece nos dias de hoje, é mais fácil insultar alguém se o fizermos de forma rápida e se terminarmos com uma nota de conclusão. A forma breve do epigrama servia na perfeição para isso.”
A par dos poemas de escárnio, os epigramas de amor e os que falavam da brevidade da vida eram os mais populares. “A forma curta presta-se bem à exploração de emoções, especialmente o humor e a perda”, afirmou o especialista, salientando que a maioria dos poemas amorosos da Antologia Grega falam de um “amor frustrado ou perdido” e não de uma grande paixão. No que diz respeito à noção de efemeridade, esta não é novidade na poesia grega. Mimnermo, importante poeta grego do século VII a.C. considerado o criador da elegia amorosa, parece ter sido o autor de uma das formulações mais antigas desta noção de que o homem é um ser efémero (literalmente, “que dura um dia”).
Esta ideia, cultivada por muitos outros poetas, ganhou maior consistência na época arcaica, “ao ponto de se tornar característica”, como escreveu Maria Helena da Rocha Pereira no primeiro volume de Estudos de História da Cultura Clássica. E passados vários séculos, continuava a ser popular, como é possível ver pela Antologia Grega. A sua passagem para os epigramas tem a ver, de acordo com Tueller, com a sua origem nas inscrições tumulares. Um dos poemas adaptados por José Alberto Oliveira para a edição portuguesa, atribuído ao poeta do século I a.C. Automedon, fala exatamente disso: “Tu, que irás morrer, cuida da tua vida”, apela o sujeito poético.
Isto significa que, tanto na forma como no tema, a poesia da Antologia Grega é muito diferente dos poemas homéricos ou de outra literatura mais amplamente divulgada, como é o caso das tragédias de Eurípedes ou Sófocles. Um dos motivos é o facto de ter sido produzida numa altura completamente diferente. “Os poemas da Antologia Grega foram escritos num tempo diferente da maioria da literatura grega antiga. Homero é um produto de várias gerações de tradição oral e de uma civilização que estava a começar a descobrir o seu lugar no mundo”, frisou Michael Tueller. As tragédias, onde se incluem algumas das obras literárias mais famosas da Grécia Antiga, também falam sobre um mundo muito diferente do dos epigramas da antologia de Meleagro: “Fazem parte de um diálogo rico sobre civismo e religião num sistema desenvolvido de cidades auto-governadas”, onde Atenas surge em lugar de destaque. Este mundo já não existia no século I a.C.
↓ Mostrar
↑ Esconder
Tu, que irás morrer, cuida da tua vida;
não navegues na estação adversa — ninguém
vive muito tempo. Tão impaciente para alcançar
a bela Tassos, comerciar na Síria inóspita,
pobre Cleonicus, navegou no ocaso das Pleiades
e, assim, com as Pleiades se afundou.
Automedon (versão portuguesa de José Alberto Oliveira)
“Os epigramas da Antologia Grega foram escritos por gregos que tinham deixado a sua terra-natal e se tinham mudaram para um mundo cheio de não-gregos que tinha sido conquistado por Alexandre, o Grande. A literatura mais pesada era um bem cultural muito prezado, mas fazia parte do passado. No presente, as preocupações mais pesadas diziam apenas respeito aos reis. A literatura daquele tempo pode parecer mais frívola, mas a melhor maneira de a descrever será chamar-lhe mais pessoal”, disse ainda o investigador, chamando a atenção para que não se deve, porém, ignorar “que o material humorístico e paródico, juntamente com a poesia amorosa, não estava ausente nos períodos mais antigos”. “Comédias dramáticas e ofensivas eram levadas à cena lado a lado com tragédias. A poesia amorosa, muitas vezes agridoce, começou a ser composta pouco tempo depois dos poemas homéricos. A audiência era a mesma. A grande diferença era a brevidade da nova forma, que parece ter sido simplesmente uma moda estilística e defendida ferozmente pelos poetas mais influentes do início do período, como Calímaco”, poeta do século III a.C. originário da atual Líbia, “entre outros”.
Curiosamente, entre os poetas tardios da Antologia Grega, é também possível encontrar alguns clássicos. Um dos nomes que salta à vista é o de Platão. Contudo, Michael Tueller chama a atenção para o facto de “todos os poemas atribuídos” ao filósofo “serem na verdade más interpretações” porque “foram escritos depois de ele morrer”, por volta de 348 ou 347 a.C. “Acho que todos os gregos antigos adoravam inventar histórias sobre a moralidade de Platão ser, na verdade, uma cortina de fumo para as suas preocupações eróticas. Trabalhos como O Banquete deram-lhes motivos para pensarem que era verdade. Por isso, estes poemas encaixam numa imagem da sua vida que foi criada um século depois de ele ter morrido”, explicou o académico norte-americano, salientando, porém, que “isto não passa de suposição”. “Não sabemos exatamente porque é que estes poemas têm o nome de Platão.”
Dos românticos alemães a Ezra Pound e os modernistas
Apesar de as últimas alterações à Antologia Grega terem sido feitas em 1931, por Maximus Planudes, esta continuou a ser popular nos séculos seguintes. Durante o Renascimento, foi estudada, traduzida e imitada por poetas e humanistas, sendo alvo de um renovado interesse em finais do século XVIII e inícios do século XIX, sobretudo graças às traduções feitas pelos novos humanistas alemães, como Johann Gottfried von Herder. O poeta e filósofo alemão incluiu numa das suas obras, Zerstreute Blätter (Folhas Dispersas, em português), publicada entre 1785 e 1797, uma seleção de poemas da antologia. Além de Herder, sabe-se que J.W. Goethe, figura central do romantismo alemão, teve contacto com a obra: apesar de não ter traduzido nenhum epigramas, foi profundamente inspirado pela antologia.
Foi também durante este período que a Antologia Grega ganhou grande popularidade, sobretudo depois da publicação de alguns ensaios sobre o epigrama grego. No final do século XIX, começaram a surgir as primeiras edições de alguns dos poemas da antologia, de entre as quais se destaca a tradução do escocês J.W. Mackail, Select Epigrams from the Greek Anthology, publicada originalmente em 1890 e reeditada várias vezes depois disso. De acordo com H.K. Riikonen — que escreveu um artigo sobre a influência da obra começada por Meleagro em Ezra Pound — a Antologia Grega chegou até a ser estudada nas escolas. No século XIX, no Reino Unido, havia pelo menos 20 seleções de epigramas disponíveis. Riikonen acredita que foi através de uma destas antologias — mais especificamente da The Bibelot, publicada entre 1895 e 1915 por Thomas Bird Mosher — que Pound tomou pela vez conhecimento da antologia de epigramas gregos.
O interesse na Antologia Grega e na literatura clássica foi sendo alimentado por novas expedições arqueológicas, que conduziram a novas interpretações da cultura grega e romana. As escavações do inglês Sir Arthur Evans na ilha de Creta — onde, em 1878, Minos Kalokairinos descobriu o local arqueológico de Cnossos — desempenharam um papel particularmente importante na divulgação da cultura clássica, assim como a descoberta de papiros do período helenístico no Egito. Entre outras informações relevantes, estes incluíam fragmentos de poesia grega, nomeadamente de Safo. Esta descoberta não passou despercebida ao norte-americano Ezra Pound: o seu poema “Papyrus” é uma adaptação de um dos fragmentos do poeta da ilha de Lesbos, no qual apenas se conseguem ler as palavras “primavera”, “muito tempo” e “Gongula”.
A ligação de Pound com a literatura clássica é bem conhecida. O poeta foi responsável pela tradução de inúmeros textos gregos e latinos importantes, nomeadamente das elegias de Propércio. Traduziu também cerca de dez poemas da Antologia Grega, que publicou pela editora nova-iorquina New Directions (que editou, em 2017, uma edição em inglês do Livro do Desassossego de Bernardo Soares que deu que falar), com quem trabalhava regularmente. Mas a influência grega em Pound é mais profunda, e pode ser encontrada um pouco por toda a sua obra poética, juntamente com indícios de que conhecia profundamente a antologia começada por Meleagro de Gadara no século I a.C.
The Cloack
↓ Mostrar
↑ Esconder
After years of continence
he hurled himself in a sea of six women.
Now, quenched as the brand of Meleagar,
he lies by the poluphloisboious sea-coast.
Παρα θινα πολφλοισ θαλασσεεs.
SISTE VIATOR
Ezra Pound
Como referiu H.K. Riikonen no artigo “Ezra Pound and the Greek Anthology”, Pound recorria muitas vezes a inscrições, como epitáfios ou epigramas sepulcrais, para elaborar os seus poemas. Os títulos “continham, muitas vezes, palavras que estavam relacionadas com a tradição da inscrição” e eram recorrentes as referências a lugares ou objetos relacionados com esta. Os nomes de origem grega, como Arides, Leucis ou Nikoptis, também eram usados regularmente por Ezra Pound. A influência direta da Antologia Grega pode ainda ser encontrada em vários dos seus poemas. Por exemplo, “The Cloack” é, na verdade, uma paráfrase de dois epigramas de Asclepíades de Samos e de Julianus, como apontou H.K. Riikonen. A quinta parte do poema “Moeurs Contemporaines” (do livro Quia Pauper Amavi), intitulada “Stele”, não é uma tradução de nenhum epigrama da antologia, mas assemelha-se muito na forma e tema às antigas inscrições tumulares gregas. “O poema é semelhante a um epigrama sepulcral de tom satírico e uma coisa assim seria semelhante a qualquer epigrama da Antologia Grega”, escreveu Riikonen.
A Antologia Grega também influenciou outros escritores de língua inglesa do início do século XX, como Edgar Lee Masters, Virginia Woolf ou Richard Aldington. Woolf leu pela os poemas da antologia pela primeira vez em 1902, quando o irmão, Thoby Stephens, lhe ofereceu uma seleção com alguns dos epigramas. Já Aldington foi responsável pela tradução de um dos poemas — da autoria de Anite de Tegea, uma poetisa da Arcádia –, que publicou na revista modernista The Egoist, por onde também passou T.S. Eliott. A sua obra em prosa poética Spoon River Anthology — uma coleção de epitáfios dos residentes de Spoon River, uma localidade ficcionada –, de 1915, é também reminiscente da tradição das inscrições tumulares que tanto influenciou antologia. H.D., pseudónimo de Hilda Doolittle, também terá sido influenciada pela Antologia Grega.
Fernando Pessoa e a primeira edição inglesa
A primeira edição completa em inglês da Antologia Grega começou a ser publicada em meados da década de 1910. A seguir à tradução de J.W. Mackail, esta foi a que teve o papel mais importante na receção da obra entre os leitores de língua inglesa. Publicada em cinco volumes entre 1916 e 1918, pela Loeb Classical Library, a tradução da Antologia Grega inglesa foi da responsabilidade de William Roger Paton que, apesar de não ser um classicista de formação, tinha um conhecimento profundo da língua e cultura gregas. Considerada “um marco na história do epigrama em inglês” — como referiu H.K. Riikonen — continua disponível ainda hoje graças à Harvard University Press, a quem pertence a Loeb. Foi esta mesma edição que Michael Tueller reviu em 2014.
P-Há
↓ Mostrar
↑ Esconder
Hoje, que sinto nada a vontade, e não sei que dizer,
Hoje, que tenho a inteligência sem saber o que querer,
Quero escrever o meu epitáfio: Álvaro de Campos jaz
Aqui, o resto a Antologia grega traz…
E a que propósito vem este bocado de rimas?
Nada… Um amigo meu, chamado (suponho) Simas,
Perguntou-me na rua o que é que estava a fazer,
E escrevo estes versos assim em vez de lho não saber dizer.
É raro eu rimar, e é raro alguém rimar com juízo.
Mas às vezes rimar é preciso.
Meu coração faz pá como um saco de papel socado
Com força, cheio de sopro, contra a parede do lado.
E o transeunte, num sobressalto, volta-se de repente
E eu acabo este poema indeterminadamente.
Álvaro de Campos
Foi a tradução de W.R. Paton que Fernando Pessoa leu. Uma cópia desta edição — cheia de anotações — encontra-se ainda preservada na sua biblioteca pessoal, hoje na Casa Fernando Pessoa. Kenneth Haynes, num artigo que escreveu sobre Pessoa e a Antologia Grega para a revista Pessoa Plural, explicou que a edição de Paton “deixou uma impressão direta na poesia” inglesa do poeta publicada na década de 1920, nomeadamente na sequência “Inscriptions”, editada pela primeira vez em 1921, em English Poems, pela Olisipo. De acordo com Haynes, a Antologia Grega inglesa serviu de modelo para “o género, disposição, título e, muitas vezes, estilo de ‘Inscriptions’, que consiste em 14 epigramas em inglês datados de ‘Lisboa, 1920’”. Além disso, como apontou o professor da Brown University no número dez da Pessoa Plural, “muitos poemas da antologia são dedicados à morte de uma jovem ou jovem, como no poema VIII de ‘Inscriptions’”. O próprio título da sequência também parece ser uma referência à origem do epigrama grego — as inscrições.
Foi também na edição de Paton da Loeb que Pessoa se baseou para fazer a tradução de oito epigramas que publicou no número dois da revista Athena, de 1924. Apesar de conseguir ler grego, Fernando Pessoa não conhecia suficientemente bem a língua para fazer uma tradução direta. Por isso, costumava seguir um “idioma intermédio”, como o próprio explicou numa nota publicada em 2016 por Jerónimo Pizarro e Carlos Pittela Leite em Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida: “Posso traduzir, através de idioma intermédio, qualquer poema grego, desde que consiga aproximar-me do ritmo do original, para o que basta saber simplesmente ler o grego, o que de facto sei, ou que obtenha uma equivalência rítmica. Dessa maneira traduzi alguns poemas da Antologia Grega”. A coleção de epigramas gregos surge também referida de forma irónica no poema “P-Há”, de Álvaro de Campos, no qual o sujeito poético, sentindo-se perdido, decide escrever o seu próprio epitáfio. Segundo Haynes, a influência da Antologia Grega na obra de Fernando Pessoa pode ainda ser sentida nos “epitáfios heróicos da Mensagem” e “na voz horaciana de Ricardo Reis”.
Mas porque é que, ao longo dos séculos, a Antologia Grega continuou a inspirar gerações e gerações de escritores? “Penso que é fácil para nós apreciarmos literatura que se revela rapidamente e que termina com um ‘bang’”, sugeriu Michael Tueller. “Portanto, de certo modo, até os tweets virais são modelados a partir das ideias que fazem surgir os epigramas gregos. Para quem está à procura de um modelo para criar literatura deste género, dá jeito ter a Antologia Grega à mão.” Por outro lado, José Alberto Oliveira acredita que a popularidade da Antologia Grega tem a ver com o mesmo fascínio que a literatura grega clássica tem exercido ao longo dos séculos. “Para o bem e para o mal, a natureza humana não tem mudado muito”, afirmou o tradutor. “E a apreciação da beleza, felizmente, também não.”