Durante décadas, Eunice Muñoz foi uma figura constante na vida cultural dos portugueses, quer fosse através da televisão, onde se tornou presença regular a partir dos anos 90, quando participou pela primeira vez numa telenovela, “A Banqueira do Povo”; no cinema, onde se estreou com apenas 19 anos; ou no teatro, onde se sentia mais à vontade. Os palcos eram o seu habitat natural — era ainda uma criança quando pisou o primeiro, o desmontável que a família carregava de terra em terra. Os pais tinham uma companhia itinerante de teatro e foi em frente a uma cortina de lona, tão diferente da pesada cortina de veludo do D. Maria II, que se tornou a sua casa, que Eunice deu os primeiros passos de uma carreira de 80 anos. Atriz de reconhecido talento, chamavam-lhe a “dama do teatro português”, título de que nunca gostou: “Gosto pouco desses epítetos”, admitiu à Notícias Magazine, em 2019. “Chamem-me Eunice.”
Morreu Eunice Muñoz. A estrela maior do teatro português tinha 93 anos
Eunice nasceu a 30 de julho de 1928, na pequena freguesia da Amareleja, no Alentejo. Filha de Hernâni Cardinali Muñoz (filho de uma italiana e de um espanhol) e de Júlia do Carmo (conhecida por Mimi Muñoz), cresceu no seio de uma família de artistas e saltimbancos e cedo se habituou a subir aos palcos. Quando era pequena, costumava atuar com os pais, que tinham uma companhia itinerante de teatro, pelas terras vizinhas. Cantava e dançava, mas nem sempre gostava do fazia — muitas vezes inventava histórias para fugir ao trabalho. “Não gostava nada, inventava muitas histórias para não fazer nada”, revelou, anos mais tarde, em entrevista à TVI. “A minha mãe, que era uma mãe excelente, estava sempre de acordo quando eu lhe dizia que ‘hoje doí-me a cabeça’, ‘estou constipada’, ou ‘dói-me a barriga’, que é uma coisa que os miúdos usam muito”, contou. “Está bem, está bem, então não trabalhas”, dizia-lhe Mimi.
Apesar da malandrice de criança, o teatro corria-lhe nas veias. Numa entrevista ao Público, em 2011, Eunice admitiu que sempre teve “um instinto enorme” para saber que era boa atriz. “Herdei-o de varias gerações da minha família e muito do lado da minha mãe.” A oportunidade de provar o que valia surgiu aos 13 anos. A família vivia em Lisboa, para onde se tinha mudado quando Eunice tinha sete anos. Costumava atuava regularmente em pequenas sociedades recreativas. Amélia Rey Colaço andava à procura de uma rapariga para entrar num espetáculo que a sua companhia de teatro, a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, ia levar à cena no Teatro Nacional de D. Maria II. Sabendo disso, a mãe de Eunice decidiu apresentar a filha à célebre atriz.
A pequena Eunice Muñoz apresentou-se sem medo na audição para a peça Vendaval, de Virgínia Vitorino. Rey Colaço ficou logo convencida e escolheu-a para o papel. Aos 13 anos, Eunice ia estrear-se no maior palco português, mas isso não parecia impressioná-la. Quando, no final da audição, a mãe lhe perguntou como tinha corrido, a jovem respondeu-lhe apenas “correu bem, o costume”. Espantada com a reação da filha, Mimi Muñoz perguntou-lhe se não estava contente. “Estou. E porque é que não me haviam de convidar?”
Aos 13 anos, o teatro já não era uma coisa estranha, era parte da sua própria identidade. “Era uma miúda que sempre vivera com atores e representara com eles. Para mim, era inevitável ter esse ar disponível e a ideia de que tudo era fácil”, disse ao Público. Mas “fácil” não era o mesmo que sem medo, como a própria veio a admitir. Apesar da certeza que mostrou, as pesadas cortinas de veludo do D. Maria II, tão diferentes das de lona dos espetáculos de saltimbancos, acabaram por a impressionar. “De repente eu ali estava, no primeiro teatro do país, com aquele maravilhoso pano de veludo que subia muito lentamente e que me metia imenso medo”, lembrou.
Eunice Muñoz era um talento nato e isso não passou despercebido. Depois da estreia de Vendaval, em 1941, Amélia Rey Colaço convidou-a para integrar a sua companhia. No D. Maria II, onde esteve durante três anos, teve oportunidade de partilhar o palco com alguns dos grandes atores portugueses de então, com os quais aprendeu muito. Trabalhou, por exemplo, com Francisco Carlos Lopes Ribeiro, o “Ribeirinho”, a quem a sua geração “deve muito”, e com Palmira Bastos, a quem chamou anos mais tarde a sua “grande mestra”, primeiro em Riquezas da Sua Avó (1943), comédia espanhola adaptada para português por Ascensão Barbosa, José Galhardo e Alberto Barbosa, e mais tarde em Espada de Fogo, de Carlos Selvagem.
Em 1944, teve oportunidade de colaborar com Maria Matos, que a dirigiu em A Portuguesa, de Carlos Vale. No verão desse ano, interpretou a primeira opereta, João Ratão, ao lado de Estêvão Amarante. Depois de terminar os estudos na Escola de Teatro do Conservatório Nacional, com uma média de 18 valores, entrou na peça Chuva de Filhos (1945), de Margaret Mayo, ao lado de Vasco Santana e Mirita Casimiro, no Teatro Variedades.
A atriz que abandonou os palcos para ser empregada de balcão no Príncipe Real
A estreia no cinema deu-se em 1946, com o filme “Camões”, de Leitão de Barros, onde fez de Beatriz da Silva. Pela interpretação, a primeira de várias no grande ecrã (cerca de dez ao longo de toda a sua carreira), Eunice Muñoz recebeu o prémio de Melhor Atriz de Cinema do ano, atribuído pelo Secretariado Nacional de Informação. O êxito abriu-lhe portas e, ainda nesse ano, entrou numa outra produção cinematográfica, “Um Homem do Ribatejo”, de Henrique Campos, e, em 1947, participou em “Os Vizinhos do Rés-do-Chão”, de Alejandro Perla.
Foi em 1947, com apenas 19 anos, que se casou pela primeira vez, com o arquiteto Rui Ângelo de Oliveira do Couto, de quem veio a ter uma filha. Farta da vida que levava desde os 13 anos, em 1951 decidiu abandonar os palcos e arranjar um outro emprego. Uma outra vida, mais “real, diferente”, que foi encontrar atrás do balcão de uma loja de cortiças no Príncipe Real, em Lisboa. Quando lhe perguntavam o porquê da decisão drástica, Eunice dizia simplesmente: “Porque me cansei”. “Tinha 23 anos mas já tinha muitos anos de teatro”, disse à TVI. “Sou, por princípio, uma pessoa muito desprendida, não fico assim apanhada por coisas que façam muito barulho e tenham muitos brilhantes. Fui sempre assim”, contou ao Público. “E a minha mãe dizia-me: ‘Pois, pois, pois. É porque estás a ganhar muito bem. Um dia estás a ganhar pouco, e vais ver’. E eu achei muita graça porque, quando estava a ganhar 800 escudos ou um conto de réis no balcão da casa das cortiças, tratava o dinheiro da mesma maneira.”
[Primeira cena de “Camões”, de Leitão de Barros:]
As pessoas também a tratavam da mesma maneira e faziam fila para verem a atriz que se tinha tornado empregada de balcão. O patrão, Mr. Cork, estava sempre a tentar convencê-la a “não fazer nada”. É que Eunice, então com 23 anos, já era uma estrela.
Eunice Muñoz esteve no Príncipe Real durante oito meses, até que foi trabalhar para uma fábrica de cabos telefónicos, a Celcat, onde serviu como secretária do diretor técnico. Esteve lá quatro anos, até que Vasco Morgado, que tinha sido seu empresário, a convenceu a regressar ao teatro para entrar na peça Joana d’Arc, de Jean Anouilh, no Teatro Avenida. Eunice, nunca se convenceu que a despedida dos palcos seria definitiva, aceitou a proposta. “A minha cabeça nunca esteve feita de que não voltaria. Estava feita para uma ausência”, admitiu. Joana d’Arc estreou em 1955. À porta do Avenida, multidões reuniram-se para conseguirem um bilhete para ver Eunice. No dia da estreia, a atriz foi aclamada pela crítica, que lhe chamou “genial”.
Para ela, foi como se nunca tivesse estado fora. Os trabalhos seguiram-se uns ao seguir aos outros, mas os anos de ausência tinham-lhe ensinado a colocar as coisas no seu devido lugar, a separar a vida profissional da pessoal e a ter tempo para si e para os outros, o que tornava tudo mais fácil. A 6 de fevereiro de 1956, casou-se pela segunda vez com o engenheiro Ernesto Borges, “companheiro dedicado”, que tinha conhecido na Celcat, e saiu Lisboa, onde vivia desde os seus seis anos. Em 1957, entrou em A desaparecida, de Luigi Pirandello. Pouco depois, juntamente com os atores Maria Lalande, Isabel de Castro, Ruy de Carvalho e Curado Ribeiro, juntou-se ao Teatro Nacional Popular, sob a direção de Ribeirinho. Noite de Reis, de William Shakespeare, Um serão nas laranjeiras, de Júlio Dantas, e Pássaros de Asas Cortadas, de Luiz Francisco Rebello, foram algumas das peças em que participou na companhia.
[Abertura de “Um Homem do Ribatejo”, de Henrique Campos:]
Na década de 1960, Eunice Muñoz tornou-se presença assídua nos grandes palcos de comédia portugueses. Trabalhou ao lado de atores como António Silva e Henrique Santana, na Companhia de Teatro Alegre, e, em 1965, fundou com Raul Solnado a Companhia Portuguesa de Comediantes, que teve o privilégio de estrear o Teatro Villaret, um dos palcos lisboetas que ainda associados à comédia. No Villaret, levou à cena peças como Verão e Fumo, de Tennessee Williams (1965), e As Raposas, de Lillian Hellman (1966), que lhe valeram os prémios de Imprensa de Melhor Atriz e de Popularidade, da revista Rádio e Televisão.
Eunice, então com 37 anos, começou a receber o maior salário algumas vez pago a uma atriz dramática em Portugal: 30 contos mensais que, na altura, era uma fortuna. Foi também nessa altura que começou a aparecer com regularidade na televisão portuguesa, que começou então a transmitir peças de teatro. Através da televisão, levar peças como A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas, ou Os Anjos Não Dormem, de Armando Vieira Pinto, a todos os cantos do país. Apesar de o teatro sempre ter sido o género em que se sentia mais confortável, a atriz percebia o fascínio que a televisão suscitava. “É interessante a televisão… Percebo perfeitamente que seja apaixonante. Mas claro que é muito diferente do teatro, onde se está ao vivo”, afirmou, em entrevista à TVI.
Em 1970, estreou-se na encenação com A Voz Humana” de Jean Cocteau, uma das quatro peças que levou em digressão pelas ex-colónias, com os atores José de Castro e Alberto Villar. Mas foi depois do 25 de Abril que fez tudo o que era “importante”. Da fase anterior, recordava sobretudo o que tinha perdido por causa da censura e que “já não podia fazer quando chegou a Revolução”.“Quando tinha idade para fazer os grandes papéis existia uma coisa que deu cabo de muitos de nós que se chamava a censura”, disse à TVI. Em 2011, em entrevista à Agência Lusa, admitiu que se sentia “profundamente roubada”, tal como a sua geração de artistas, por todas as peças proibidas que não pôde realizar.
Depois do 25 de Abril, passou a integrar a companhia residente do então reabilitado Teatro D. Maria II, que esteve fechado durante quase uma década devido a um incêndio que quase o destruiu totalmente. Nesta fase da sua carreira, entrou em peças de autores importantes, como John Murray, Hermann Broch e Athol Fuggard, trabalhou com diferentes encenadores, dentro e fora do D. Maria, como João Perry e Felipe La Féria. Uma das peças que lhe ficou na memória foi Mãe Coragem e Seus Filhos, de Bertolt Brecht, levada à cena em 1986 sob direção de João Lourenço, no Teatro Aberto.
Nos anos 80, entrou também em filmes, como “Manhã Submersa” (1980), de Lauro António, e “Tempos Difíceis” (1987), de João Botelho. Recebeu a primeira condecoração a 13 de julho de 1981, quando foi feita Oficial da Ordem Militar de San’Tiago e Espada pelo então Presidente, o General António Ramalho Eanes. Mais tarde, em 2010, foi elevada ao ao grau de Grande-Oficial da mesma ordem e, em 2018, por altura do seu 90º aniversário, foi condecorada com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito, por Marcelo Rebelo de Sousa, que a considerou “uma das mais reconhecidas e amadas atrizes portuguesas”.
A estreia nas telenovelas deu-se já nos anos 90, com “A Banqueira do Povo”, uma produção da RTP sobre D. Branca (interpretada pela própria Eunice Muñoz), uma burlona profissional que ficou conhecida nos anos 80 depois de o seu esquema “bancário” ter sido descoberto pelo jornal Tal&Qual. “A Banqueira do Povo”, de Walter Avancini e Patrícia Melo, foi a segunda “novela das sete” da RTP 1. Depois desta, Eunice participou em várias outras telenovelas, como “Todo o Tempo do Mundo”, “Porto dos Milagres” (produzida pela Globo), “Olhos de Água”, “Sonhos Traídos”, “Olhos nos Olhos”, “Mar de Paixão”.
[O genérico de “A Banqueira do Povo”, telenovela da RTP protagonizada por Eunice Muñoz:]
Trabalho, o “chá com torradas”
À medida que os anos foram passando, a presença de Eunice Muñoz nos palcos e no pequeno ecrã foi-se tornando cada vez menos regular. A última passagem pelo teatro deveria ter acontecido em 2012, na peça O Comboio da Madrugada, de Tennessee Williams, mas, num dos últimos ensaios, a atriz caiu, fraturando os dois pulsos e lesionando-se na cervical. A estreia no D. Maria II teve de ser adiada e, mais tarde, a peça cancelada. “Foi uma queda muito grave…”, afirmou à TVI. “Fiz uma fratura grave no pescoço, parti os dois pulsos, abri a cabeça. Cortei as pernas. Levou muito tempo…” No ano seguinte, foi mais uma vez obrigada a interromper o trabalho depois de diagnosticada com cancro da tiróide, foi operada em abril e submetida a tratamentos de quimioterapia. Perdeu a voz e teve de ser novamente operada no Hospital Charles Nicolle, em Rouen, França. Foi talvez o período mais difícil da sua vida, mas Eunice não desistiu. Fez terapia da fala e, em 2015, aos 87 ano, conseguiu voltar a dizer o seu próprio nome.
A voz nunca mais voltou a ser a mesma, mas isso não a impediu de sonhar em voltar aos palcos. “Sinto muita falta de trabalhar. O trabalho é o meu alimento, o meu chá com torradas”, afirmou, em tom de brincadeira, em novembro de 2013, já depois de terminado o tratamento de quimioterapia. O esperado regresso acabaria por acontecer apenas em 2016, o ano em que celebrou 75 anos de carreira, data que foi assinalada com uma conversa na sala Garrett do Teatro D. Maria II com o ator e encenador Diogo Infante, com quem contracenou várias vezes.
Depois de ter sido obrigada a abandonar as gravações da telenovela “Destinos Cruzados”, em 2013, a atriz regressou à TVI em 2016, para gravar a “A Impostora”. Interpretou o papel de Pureza Ferreira da Costa, a matriarca da família Lencastre, mantendo um ritmo moderado, para poupar as cordas vocais. No mesmo ano, viu-se obrigada a parar novamente, para se submeter a uma operação ao coração, regressando algum tempo depois, mas visivelmente debilitada. “Faço o melhor que eu posso e sei”, admitiu à TVI. “Estou sempre com receio que não se perceba o que eu digo. Penso que há uns dias em que se percebe melhor do que outros. Mas, de uma maneira geral, acho que se percebe o que digo.”
Também em 2016, em agosto, Eunice integrou o elenco de As Árvores Morrem de Pé, marcando o grande regresso ao teatro, aos 88 anos. A peça de Alejandro Casona, encenada por Filipe La Féria no Teatro Politeama, juntou em palco outros grandes nomes, como Ruy de Carvalho, Manuela Maria e João d’Ávila. Em 2021, a alguns meses de completar 93 anos, Eunice despediu-se de vez dos palcos. A peça A Margem do Tempo, um texto do alemão Franz Xaver Kroetz com encenação de Sérgio Moura Afonso, estreou a 20 de abril no Auditório Eunice Muñoz, em Oeiras, e saiu de cena a 29 de maio, em Pombal, após percorrer algumas localidades.
Em entrevista ao Observador, a atriz admitiu que saía do teatro sem tristeza porque estava a passar o testemunho à neta Lídia, de 30 anos, com quem contracenou em A Margem do Tempo. “Não sinto saudade, já fiz o que tinha que fazer. É a minha última vez”, disse, questionada sobre se a despedida era difícil. “[O teatro] deu-me tudo, deu-me tudo. Deu-me satisfações enormes, deu-me preocupações muito grandes, foi basicamente a minha vida.”
Eunice, que disse não ter certeza se gostaria ser imortal, afirmava que não costumava pensar na morte. “Quando tiver de me ir embora, terei de ir”, confessou numa outra entrevista, em 2016. “Já ninguém me tira este tempo.” Morreu esta sexta-feira, aos 93 anos, no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa. Não se arrependia de nada, porque “tudo foi uma experiência importante”, afirmou à TVI. “Todas as minhas experiências contaram para toda a minha carreira, para toda a minha existência. O que fiz, tinha de fazer. Era assim que tinha de ser.”