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Antes da invasão, os apoiantes de Donald Trump ouviram o seu discurso numa manifestação que já estava convocada desde 19 de dezembro. "Vai ser wild!", disse Trump à altura

BRENDAN SMIALOWSKI/AFP via Getty Images

Antes da invasão, os apoiantes de Donald Trump ouviram o seu discurso numa manifestação que já estava convocada desde 19 de dezembro. "Vai ser wild!", disse Trump à altura

BRENDAN SMIALOWSKI/AFP via Getty Images

Chegou a hora de os republicanos abandonarem Trump? Para uns é tarde demais, mas ainda há quem lhe jure lealdade

Após ouvirem Trump a dizer "nunca desistiremos", uma turba invadiu o Capitólio e sequestrou até o vice-Presidente. Trump defendeu-os: "Amamos-vos". Já poucos falam com ele, mas nem todos o abandonam.

Primeiro, um suspiro. A seguir, um riso desconfortável. Depois, uma pergunta que tenta fazer deste dia um dia como qualquer outro: “Tudo bem por aí?”. O problema é que nada do que se passou esta quarta-feira foi normal.

Pouco tempo depois de o Capitólio dos EUA ter sido invadido por uma turba de apoiantes pró-Trump, enquanto as duas câmaras do Congresso iniciavam a certificação da vitória de Joe Biden, falámos com três veteranos da política norte-americana ligados ao Partido Republicano. As reações foram muito distintas — entre a crítica desmedida ao Presidente à relativização dos incidentes desta quarta-feira, passando pela incredulidade.

A fita do tempo é clara.

Primeiro, Donald Trump falou perante uma multidão de apoiantes que já tinham sido convocados para aquela manifestação a 19 de dezembro. “Vai ser wild, previu na altura. Agora, perante os seus seguidores, disse: “Estas pessoas não vão aguentar isto muito mais tempo, não vão suportar isto muito mais”. E deixou uma promessa: “Nunca desistiremos, nunca concederemos. Não acontece, não se concede quando há roubo envolvido. O nosso país já teve que chegue, não vamos suportar mais isto”.

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Depois, começaram as duas sessões no Congresso. E, de seguida, o vice-Presidente Mike Pence, que presidia à sessão no Senado, emitiu um comunicado onde deixou claro que não iria fazer o que Donald Trump lhe exigira publicamente: anular o resultado das eleições.

Nesta altura, os manifestantes pró-Trump já ocupavam a escadaria do Capitólio. E, pouco depois, invadiam o edifício. Já com a turba instalada e as sessões interrompidas, Donald Trump reagiu no Twitter — não para condenar (ou sequer referir) a invasão, mas para atacar o seu vice-Presidente. “Mike Pence não teve coragem”, escreveu. Quando este tweet foi publicado, o Congresso já estava nas mãos do grupo de revoltosos pró-Trump.

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Após invadir o Capitólio, um apoiante de Trump senta-se à secretária de Nancy Pelosi, democrata e líder da Câmara dos Representantes

SAUL LOEB/AFP via Getty Images

Foi pouco depois — e ainda com os manifestantes dentro do Capitólio — que falámos com Geoffrey Kabaservice, o entrevistado com quem ocorreu o momento descrito no início deste texto — o longo suspiro, o riso desconfortável, o cumprimento de circunstância. Já depois de ultrapassadas estas barreiras, o diretor de estudos políticos do think-tank de centro-direita Nisknanen Center não hesitou em responder afirmativamente que a culpa deste incidente é de Donald Trump. “Sim!”, disse três vezes, pondo para trás o torpor inicial da chamada.

"Isto é totalmente culpa de Trump. Ele tem instado os seus apoiantes a agirem, sem especificar como, de forma extrema como sinal de apoio a ele próprio. E o que está a acontecer neste momento é que estas pessoas levaram para a frente as palavras do Presidente."
Geoffrey Kabaservice, diretor de estudos do Niskanen Center

“Isto é totalmente culpa de Trump. Ele tem instado os seus apoiantes a agirem, sem especificar como, de forma extrema, como sinal de apoio a ele próprio. E o que está a acontecer neste momento é que estas pessoas levaram para a frente as palavras do Presidente”, disse Geoffrey Kabaservice.

Christopher Nicholas, estratega do Partido Republicano no estado da Pensilvânia, também não hesita em apontar o dedo a Trump.

“Tudo o que está a acontecer hoje é da responsabilidade dele”, diz, pausadamente. Quando perguntamos que ações em específico acredita terem servido como incentivo para a invasão do Capitólio, Christopher Nicholas refere toda a janela temporal que decorre desde as eleições presidenciais: “Todas as ações de Trump desde as eleições de novembro levaram aos problemas que estamos a ver agora. A falta de capacidade de simplesmente aceitar a derrota e de se comportar com elegância teve agora consequências muito verdadeiras e muito graves”.

Nicholas diz ainda, com uma ponta de orgulho nostálgico, que “uma das exportações mais importantes da América tem sido a transferência pacífica de poder entre fações opostas e partidos adversários”: “Hoje, isso foi terrivelmente prejudicado.”

"Uma das exportações mais importantes da América tem sido a transferência pacífica de poder entre fações opostas e partidos adversários. Hoje, isso foi terrivelmente prejudicado."
Christopher Nicholas, estratega do Partido Republicano na Pensilvânia

A partir do Michigan, o estratega republicano Dennis Lennox tem uma interpretação diferente do que se passou. Numa troca de mensagens com o Observador, o estratega aliado de Donald Trump procura dissociar as bandeiras e causas políticas do Presidente do grupo de manifestantes que irrompeu pelo Capitólio num gesto inédito.

“Estes insurretos não são patriotas, não são republicanos, não são apoiantes do America First”, garantiu, referindo-se ao movimento iniciado por Donald Trump em 2015, quando lançou a sua candidatura vitoriosa à Casa Branca. “Nós acreditamos na república americana, na Constituição, na lei e na ordem. Todos os que cometeram estes atos devem ser presos e julgados em todo o alcance da lei.”

"Estes insurretos não são patriotas, não são republicanos, não são apoiantes do America First. Nós acreditamos na república americana, na Constituição, na lei e na ordem. Todos os que cometeram estes atos devem ser presos e julgados em todo o alcance da lei."
Dennis Lennox, estratega republicano do Michigan

Quando confrontado com as acusações de Donald Trump ter sido responsável, Lenox atalhou que “toda gente de todos os lados — democratas e republicanos — tem a culpa da divisão que existe entre americanos há vários anos”.

“Também é importante lembrar os motins, os saques e os incêndios em cidades americanas neste verão, levados a cabo por esquerdistas e que não foram condenados pelos democratas”, apontou.

O que sobra do Partido Republicano depois disto?

Perante Donald Trump e a sua ascensão para a política em 2015, a pergunta tem sido feita e refeita várias vezes: que efeito tem esta personalidade sem par nos EUA neste partido essencial para a política norte-americana? Já muito se escreveu sobre isso, desde os tempos em que Trump monopolizou o debate das eleições primárias do partido de Ronald Reagan em 2016 até à antecâmara da sua derrota em 2020 à frente de um partido que já era o de Donald Trump.

As circunstâncias agora são, porém, muito diferentes — mesmo inéditas. Até aqui, o Capitólio dos EUA tinha sido atacado apenas uma vez, no ano de 1814, pelas tropas do Reino Unido, que, à altura, recusava reconhecer a independência daquela sua ex-colónia. Embora com consequências menos gravosas do que então (em 1814, os soldados britânicos chegaram a pegar fogo ao Capitólio), o facto é que, desta vez, foram cidadãos norte-americanos, política e ideologicamente alinhados com o Presidente em funções, a irromper por aquelas portas.

Capture and Burning of Washington by British, in 1814 , Engraving from Our First Century by Richar Miller Devins, 1876

Gravura da invasão e tomada de Washington D.C., pelo exército britânico, em 1814

History Archive/Universal Images Group via Getty Images

Tanto Geoffrey Kabaservice como Christopher Nicholas têm vindo a criticar o Partido Republicano de Donald Trump — o primeiro de forma mais assumida, admitindo que passou a votar no Partido Democrata; o segundo com mais recato, recusando dizer se votou no ainda Presidente.

“Hoje é um dia muito triste para o país”, diz Nicholas. Que, depois, acrescenta também: “E é um dia muito triste para o GOP”. Por “GOP” entenda-se “Grand Old Party”, nome clássico para o Partido Republicano.

A partir da Pensilvânia, Christopher Nicholas prefere não fazer previsões para o futuro do partido, cujos candidatos tem trabalhado para eleger ao longo de várias décadas. “É muito cedo para falarmos sobre isso”, disse. E repetiu: “É um dia muito triste”.

Para Geoffrey Kabaservice, que estuda de forma preocupada a radicalização do Partido Republicano desde o surgimento do movimento Tea Party, o momento da invasão do Capitólio por parte de apoiantes de Donald Trump pode tornar-se num duro golpe para o trumpismo.

“O trumpismo teria sempre, em qualquer caso, nas suas mãos um segmento do Partido Republicano nos próximos tempos. Possivelmente, até poderá ser um segmento maioritário. Mas, a partir de hoje, essas pessoas terão muito que explicar.”

"O trumpismo teria sempre, em qualquer caso, nas suas mãos um segmento do Partido Republicano nos próximos tempos. Possivelmente, até poderá ser um segmento maioritário. Mas a partir de hoje essas pessoas terão muito que explicar."
Geoffrey Kabaservice, diretor de estudos do Niskanen Center

Entre essas pessoas, Kabaservice inclui os republicanos no Congresso que, até aqui, têm estado assumidamente ao lado de Trump, veiculando as suas acusações sem provas de que as eleições foram roubadas a favor de Joe Biden. À cabeça desse grupo estão os senadores Ted Cruz e Josh Hawley. “O que se passou hoje é mortífero para Cruz, para Hawley e para o resto deles todos”, afiança o diretor de estudos do Niskanen Center. “O plano cínico que cada um deles tinha para chegar ao poder e de promoverem os seus interesses esbarrou hoje no perigo das suas propostas.”

O Partido Republicano sob a alçada de Donald Trump é, também, o Partido Republicano que perdeu em pouco mais de dois anos o controlo dos três centros de poder nos EUA: a Câmara dos Representantes, nas eleições intercalares de 2018; a Casa Branca, nas eleições presidenciais de 2020; e o Senado, com a vitória histórica do Partido Democrata nas eleições na Geórgia desta terça-feira.

“Perante isto, as pessoas que estão à volta do Partido Republicano, desde os grandes contribuidores para as campanhas políticas aos grupos de interesse, vão começar a exercer pressão para uma mudança absoluta dentro do partido“, disse Geoffrey Kabaservice.

Esta mudança, admite, pode representar um regresso a um Partido Republicano mais moderado, menos populista e mais clássico. “O Partido Democrata também teve, a seu tempo, vários defensores da segregação racial. Felizmente, eles conseguiram apagar essa nódoa, tomando uma série de medidas”, referiu. “Para o Partido Republicano, também poderá ser possível apagar a nódoa do trumpismo. Mas, para fazer isso, terá de haver um afastamento claro e inequívoco de tudo o que Trump representou.”

Tudo o que Geoffrey Kabaservice deseja é o oposto do que Dennis Lennox quer para o seu Partido Republicano, que é o partido de Donald Trump.

Congress Holds Joint Session To Ratify 2020 Presidential Election

Getty Images

“Agora que o mandato do Presidente Trump terminou e os democratas vão controlar a Casa Branca e o Congresso, seria insensato os republicanos desconsiderarem os milhões de eleitores que votaram no programa político do America First do Presidente Trump”, escreveu numa SMS enviada ao Observador. “Regressar ao Partido Republicano que existia antes de Trump não vai ajudar o partido a vencer eleições no futuro.”

Aos “milhões de eleitores” que votaram em Donald Trump, e, em especial, aos que se manifestaram em seu nome em Washington D.C., o Presidente dos EUA deixou um vídeo no Twitter. “Conheço a vossa dor”, disse, pedindo-lhes ainda assim (e numa declaração que demorou a ser feita) para “irem para casa”. “Nós amamos-vos, vocês são especiais”, rematou.

“Neste terrível cenário de hoje, cada republicano, democrata e independente da nação tem de se aperceber de que temos de estar à altura (...). Por isso, Presidente Trump, esteja à altura."
Joe Biden, Presidente eleito dos EUA

Mais tarde, essa mensagem viria a ser temporariamente apagada pelo Twitter, que tomou a decisão inédita de suspender por 12 horas a conta do Presidente. Líderes de vários países da Europa, incluindo António Costa, viriam a condenar a violência — mas poucos fizeram menção a Donald Trump. No Senado, já com a sessão retomada, senadores republicanos que, antes da invasão, tomaram a decisão de bloquear a vitória de Joe Biden, decidiram, depois, que deixariam de bloquear-he o caminho. Da Casa Branca, surgem relatos de que alguns membros da administração e funcionários destacados estão a discutir, em surdina, a possibilidade de ser aplicada a 25ª Emenda, que destitui um Presidente em caso de incapacidade para desempenhar o cargo e cumprir a Constitução. No Pentágono, o secretário de Defesa decidiu convocar a Guarda Nacional para fazer frente à invasão do Capitólio, após reunião com o vice-Presidente e os líderes do Congresso — uma lista de figuras de Estado onde só faltava uma, a mais importante de todas, que é Donald Trump.

Porém, a este, já poucos dirigiram a palavra no dia em que o Capitólio foi invadido pelos seus apoiantes.

Exceção seja feita a Joe Biden.

“Neste terrível cenário de hoje, cada republicano, democrata e independente da nação tem de se aperceber de que temos de estar à altura”, disse o Presidente eleito dos EUA — e que, daqui a 13 dias, apesar de tudo, será o 46.º do país. “Por isso, Presidente Trump, esteja à altura.” Pouco depois das 3h30 da manhã, o Congresso, entretanto de volta à sessão, confirmava a sua vitória.

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