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Xi Jinping avisou Joe Biden duas vezes. A primeira foi em novembro do ano passado, numa chamada telefónica entre os dois Presidentes. O líder norte-americano levantou preocupações sobre a atuação de Pequim face a Taiwan. O homólogo chinês respondeu-lhe acidamente: “Isso é brincar com o fogo e, se brincarem com o fogo, vão-se queimar”.
A expressão foi ressuscitada pelo próprio Xi há cinco dias. Perante a especulação de que a presidente da Câmara dos Representantes norte-americana, Nancy Pelosi, poderia visitar a ilha, o Presidente chinês voltou a fazer um aviso a Biden num telefonema: “Quem brinca com o fogo acaba por se queimar”.
Os avisos de Pequim foram suficientemente altos para que, até ao último minuto, não houvesse certeza sobre se Pelosi iria aterrar na capital Taipei esta terça-feira, na sequência da viagem de uma delegação do Congresso norte-americano a vários países asiáticos. O avião da Força Aérea dos EUA que transportava Pelosi levantou voo da capital malaica, Kuala Lumpur, às 15h42 (hora local). Quase sete horas depois, aterrou no Aeroporto Songshan e foi recebida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Taiwan, Joseph Wu.
Exatamente ao mesmo tempo, o jornal Washington Post publicava um artigo de opinião de Pelosi a justificar a sua ida a Taiwan. “Perante a agressão acelerada do Partido Comunista Chinês (PCC), a visita da nossa delegação do Congresso deve ser vista como uma declaração inequívoca de que a América está ao lado de Taiwan”, afirmou a terceira mais alta figura do Estado norte-americano.
Mas a reação chinesa não se fez esperar. Dois jatos Su-35 das forças chinesas atravessaram o estreito de Taiwan de imediato, a que se seguiu um comunicado do ministério dos Negócios Estrangeiros que fala num “sinal errado” por parte dos norte-americanos. E, novamente, uma expressão familiar, mas desta vez ainda mais inflamada do que o habitual: “Estas jogadas são como brincar com o fogo, são extremamente perigosas. Os que brincam com o fogo hão de morrer pelo fogo”.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a visita de Nancy Pelosi a Taiwan.
Habitantes de Taiwan dão boas-vindas a Pelosi com a situação da Ucrânia na cabeça
Esta quarta-feira, Pelosi deverá não apenas visitar o Parlamento de Taiwan, como também se encontrarará com a Presidente Tsai Ing-wen. O ambiente nas ruas de Taipei deverá ser em tudo semelhante ao que já se sentiu na noite da véspera: “Bem-vinda, presidente Pelosi”, podia ler-se na fachada do edifício mais alto de Taiwan, o Taipei 101. Centenas de pessoas receberam a representante norte-americana nas ruas da capital.
The moment that her convoy heads towards the hotel, with people in the crowd chanting “welcome to #Taiwan.” pic.twitter.com/UCAU6xm8QE
— William Yang (@WilliamYang120) August 2, 2022
Também nas redes sociais o ambiente era febril. A Weibo, uma das redes sociais mais populares na China, registou vários problemas de conexão ao longo da noite, devido à quantidade anormal de atividade na plataforma. Pelosi era o tópico central.
As autoridades de Taiwan têm-se mantido discretas, evitando comentar uma possível visita de Nancy Pelosi. Mas, para a maioria dos habitantes da ilha — com um governo estabelecido pelos nacionalistas liderados por Chiang Kai-shek, na sequência da guerra civil na China continental, em 1949 —, a vinda da representante norte-americana é um sinal claro de que os Estados Unidos continuam a estar ao lado da ilha perante uma possível ameaça militar de Pequim.
Um estudo recente conduzido por académicos norte-americanos e de Taiwan dá conta de que o número de residentes que acreditam que os EUA os ajudariam militarmente no caso de uma invasão do PCC desceu acentuadamente desde o início da guerra na Ucrânia. A situação na Ucrânia colocou Taiwan em evidência por várias razões: por um lado, porque levou muitos a questionar qual seria a reação norte-americana em caso de invasão de Pequim; por outro, porque é um ponto de pressão que os EUA têm usado para que a China não se alinhe totalmente com a Rússia de Vladimir Putin.
Republicanos apoiam Pelosi, Biden hesita. E as eleições intercalares estão à espreita
A viagem de Nancy Pelosi é a primeira de um representante de peso da política norte-americana à ilha desde que o republicano Newt Gingrich visitou Taiwan em 1997, quando ocupava o mesmo cargo.
E há muito que é conhecida a posição crítica de Pelosi face ao PCC. Em 1991, foi à Praça Tiananmen com dois colegas do Congresso e uma faixa que dizia “Por aqueles que morreram pela democracia na China”. Depois disso, já se encontrou com o líder tibetano Dalai Lama e continuou a fazer críticas às violações de direitos humanos no país.
28 years ago, we traveled to Tiananmen Square to honor the courage & sacrifice of the students, workers & ordinary citizens who stood for the dignity & human rights that all people deserve. To this day, we remain committed to sharing their story with the world. #Tiananmen30 pic.twitter.com/7UqiJVRS3t
— Nancy Pelosi (@SpeakerPelosi) June 4, 2019
A postura ferozmente crítica das ações de Pequim por parte desta democrata garantiram-lhe agora o apoio de vários republicanos. Esta quarta-feira, 25 senadores do partido publicaram uma carta a apoiá-la: “Durante décadas, membros do Congresso dos EUA, incluindo antigos presidentes da Câmara dos Representantes, viajaram até Taiwan”, relembraram. Entre os signatários conta-se Mitch McConnell, o líder republicano no Senado conhecido por raramente estar ao lado do Partido Democrata.
É um sintoma de como a ação de Pelosi está a ser bem recebida entre os setores mais conservadores norte-americanos. Na cadeia de televisão Fox News — onde recentemente um apresentador pediu que Pelosi fosse “algemada” —, o tom era elogioso: “Ela é ousada”, afirmou uma das correspondentes do canal no Congresso, antes de relembrar o protesto de Pelosi em 1991, na capital chinesa.
My goodness, this is a whole 73 seconds of Speaker Nancy Pelosi being praised on Fox News. Wow.
h/t @atrupar pic.twitter.com/tR0boJfOYg
— Charlotte Clymer ???????? (@cmclymer) August 2, 2022
Significa isso que há um raro momento de concórdia em Washington entre os dois partidos? Não exatamente. Isto, porque a posição do Presidente democrata, Joe Biden, tem sido ambígua. Por um lado, como lembra o Wall Street Journal, o facto de Pelosi e Biden serem do mesmo partido pode passar à China a ideia de que ambos estão alinhados relativamente a esta visita. Por outro, os esforços feitos ao longo das últimas semanas pela Casa Branca, para evitar essa perceção e se distanciar da iniciativa, valerão certamente críticas ao Presidente por parte do Partido Republicano.
A administração Biden está, por isso, numa posição precária. Oficialmente, a resposta tem sido apenas uma: “[Pelosi] toma as suas próprias decisões”, sublinhou o secretário de Estado, Anthony Blinken, esta segunda-feira. “O Congresso é um ramo independente do governo. A decisão é inteiramente da presidente [da Câmara dos Representantes]”. Já Joe Biden não conseguiu evitar dizer a certa altura que “o exército acha que [a visita] pode não ser uma boa ideia”.
No New York Times, o colunista Thomas Friedman deixou clara a posição da Casa Branca: “O Presidente não pode pedir-lhe diretamente que não vá, por receio de que possa parecer brando com a China, o que deixaria uma aberta para os republicanos o atacarem antes das eleições intercalares”, escreveu, recordando que em novembro há eleições para o Congresso. Por outro lado, a ida de Pelosi a Taiwan é, para Friedman, “uma manobra diplomática que toda a equipa de segurança do Presidente — do diretor da CIA ao presidente do Estado-Maior — considera insensata”.
China vai ficar-se pela retórica ou há risco real de conflito? Especialistas dividem-se
A verdade é que a visita de Nancy Pelosi a Taiwan pode colocar em risco a política de “ambiguidade estratégica” que os Estados Unidos têm adotado ao longo das últimas décadas face à ilha. Oficialmente, os EUA reconhecem a chamada “Política de Uma Única China” e não mantêm relações diplomáticas com Taiwan; mas, na prática, mantêm fortes relações com o seu governo, plasmadas na Lei das Relações com Taiwan (invocada por Pelosi no seu artigo de opinião do Washington Post), onde se inclui apoio militar.
Para além de sublinhar repetidamente ao longo dos últimos dias que a “Política de Uma Única China” não está em causa, a administração Biden desdobrou-se numa série de ações para tentar minimizar o impacto da visita de Pelosi. O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby, garantiu em público que Pelosi iria “viajar livrememente e em segurança”, o que indicia que poderá ter havido contactos prévios com Pequim, como aponta o Politico.
Também a rota adotada pelo avião da Força Aérea que levou a presidente da Câmara dos Representantes indicia cuidados. Ao entrar em Taiwan vindo de leste, o avião evitou sobrevoar o estreito de Taiwan, onde se concentravam as aeronaves chinesas. “A rota foi decidida por Washington. Pode ser um dos pequenos sinais de que as duas superpotências rivais não querem uma escalada”, notou a editora da BBC na zona da Ásia-Pacífico, Celia Hatton.
Muitos especialistas acreditam que, apesar da retórica inflamada, a China não tenciona agravar mais as tensões com os EUA. “A China quer muito ter Taiwan ‘de volta’, mas isso não significa que queira uma guerra sangrenta que destruiria o milagre económico chinês”, avisou recentemente William H. Overholt, investigador em Harvard.
Certo também é que no passado houve outros momentos de tensão entre os dois países por causa da região, que não redundaram num conflito militar. Em 1995, o Presidente de Taiwan Lee Teng-hui decidiu fazer uma visita aos Estados Unidos, o que levou a China a disparar mísseis para perto da costa de Taiwan. Bill Clinton, à altura Presidente norte-americano, respondeu enviando dois porta-aviões para a zona. Não se registaram novos incidentes.
Mas há quem alegue que a China de 1995, liderada por Jiang Zemin, é muito diferente da China de agora. Não só as forças armadas chinesas cresceram entretanto, como Xi Jinping é um Presidente muito mais firme no que diz respeito a Taiwan e ao papel da China no mundo. E, à beira de ter um novo mandato confirmado em novembro, não se pode dar ao luxo de parecer hesitante perante o resto do Politburo, particularmente numa altura em que a China também lida com os efeitos de uma crise económica mundial e uma pandemia de Covid-19 que não deixa de assolar o país.
Talvez por isso, Pequim reagiu em força a esta visita de Nancy Pelosi, anunciando exercícios militares no mar do Sul da China e fim de importações de vários produtos de Taiwan. E há quem ache que o risco de ir ainda mais longe é real: “Esta é uma situação excecionalmente perigosa [para os EUA], talvez ainda mais do que a da Ucrânia”, avisou Evan Medeiros, antigo conselheiro de Barack Obama para a Ásia, em declarações ao New York Times.
“Os riscos de uma escalada”, acrescentou, “são imediatos e substanciais.”