No final do debate uma governante comentava, nos corredores parlamentares, o momento insólito em que não havia mais inscritos para falar numa moção de censura ao Governo com minutos ainda disponíveis em várias bancadas. Aconteceu a dada altura do debate e, sem surpresa, foi André Ventura quem acabou por preencher esse vazio com uma intervenção que fez rir muito o primeiro-ministro, que estava a assistir de bancada à rajada de ataques entre a oposição à direita, numa marcação clara do terreno eleitoral na Madeira — as eleições são no domingo.
André Ventura nem disfarçou no seu objetivo, chegando a referir diretamente o combate eleitoral na região autónoma, no despique com o PSD. Por fim, a história do debate poderia ser resumida numa frase sintomática sobre as pretensões de Ventura: “Às vezes penso que deveria liderar o Chega e o PSD ao mesmo tempo“. Como era mais do que previsível, a moção de censura seria chumbada — votos a favor da IL e do Chega, abstenção do PSD. Mas Ventura tinha cumprido o seu objetivo: atacar o PSD.
À esquerda a moção de censura do Chega foi vista como uma “brincadeira”, no PS como uma oportunidade para vincar que não tem oposição — nem sequer precisou de trazer grandes novidades a este debate para desviar atenções (processo de privatização da TAP e recauchutagem de medidas pré-anunciadas foram suficientes). Também não se livrou de ouvir a acusação, vinda da IL, de ser “o grande responsável pelo crescimento do Chega”.
Chega e IL disputam a oposição com PSD (quase) ausente
Se o resultado da moção de censura estava mais do que anunciado, o mesmo não se podia dizer sobre a postura do PSD neste debate depois de revelar que se iria abster. E se o Chega tinha mesmo como objetivo “entalar” o PSD (o que Ventura chegou a negar), a verdade é que conseguiu roubar o palco num debate em que os sociais-democratas pouco ou nada fizeram para tentar desmontar o discurso do Chega — à distância, em Santarém, Montenegro ia dizendo que Costa e Ventura eram o “casal de namorados da política portuguesa”, “unidos no propósito de darem um beijinho um ao outro e o mesmo significa atacarem o PSD”.
No entanto, ainda que a disputa à direita tenha acontecido em plena Assembleia da República, o cenário é evidente: as eleições da Madeira estão mesmo à porta e tanto Chega como IL (que estão a investir muito nesta ida às urnas) conseguiram chamar a si as atenções e deixar o PSD praticamente fora desse debate. Aliás, tanto João Cotrim Figueiredo, ex-líder da IL, como André Ventura, presidente do Chega, fizeram questão de puxar pelo tema da Madeira — e usaram-no para se acusarem mutuamente de não dizerem que não a acordos com o PS no arquipélago.
Foi pela voz do ex-presidente (Rui Rocha não falou e esteve sentado atrás de Cotrim Figueiredo) que a Iniciativa Liberal defendeu a posição do partido na moção de censura — a favor — mesmo quando consideravam uma “criancice” do Chega. Tudo para evitar que Ventura fizesse “uma das suas birras favoritas” — “Ou de fanfarronice, [como] ‘eu é que sou o líder da oposição’, ou a birra do Calimero, [do] ‘ninguém vota as nossas propostas’”. “Queremos um Governo novo e queremos o Chega longe desse Governo”, resumiria Cotrim.
Ora, André Ventura também foi respondendo à IL, até mais através de apartes, mas o alvo estava bem definido: o PSD. Chegou a dizer que lhe “destrói o coração” que o PSD diga ser uma alternativa e que não vote a favor da moção de censura e acusou o partido liderado por Luís Montenegro de preferir “puxar o lençol” e “deitar-se com o PS”.
Intervenção após intervenção, a bancada do Chega não só atacava os socialistas como atirava ao PSD: “É o PSD dos três F: frouxo, fraquinho e fofinho”, apontava Pedro Pinto; um “PSD que se tem resignado”, completava Rui Afonso. Houve um momento em que, perante as críticas socialistas ao PSD, André Ventura fez questão de se levantar para defender o partido de Montenegro. “Às vezes penso que deveria liderar o Chega e o PSD ao mesmo tempo.”
Do início ao fim do debate, o PSD foi tentando esquivar-se das críticas (tanto do PS como da direita) e mudar a agulha da moção de censura: “O PSD não é o partido das moções, é o partido das soluções”, chegou a sintetizar Miranda Sarmento. Mas, na antecâmara de umas eleições da Madeira em que o PSD (com CDS) faz de tudo para manter a maioria absoluta, Cotrim e Ventura pressionaram (e muito) os sociais-democratas.
A defesa socialista. Recostar e assistir ao “embaraço do PSD” ou o “xeque” ao seu líder
O Governo e o PS estiveram essencialmente sentados a assistir — o líder parlamentar socialista havia de dizer a dada altura que “o PS nem precisava de falar”. Mas o debate deu a oportunidade a António Costa de esclarecer notícias incómodas (como a da possibilidade do pagamento de IRS por quem recebe o salário mínimo) e ainda avançar outras (caso do processo de privatização da TAP). Entre uma coisa e outra os socialistas foram aproveitando o espaço que o despique Chega/PSD deixa livre na oposição ao Governo, disparando sobre uma direita que não se entende: “Se não se entendem sequer sobre a censura ao Governo a que se opõem como é que se podiam entender para apresentar alternativa aos portugueses?”, perguntava António Costa a dada altura já depois de ter manifestado saudades do CDS ao dizer que “Paulo Portas tem razão quando diz que desaparecimento do CDS não trouxe mais ideias ao país, só mais gritaria”.
“Os problemas da direita e a disputa do espaço da direita não interessam nada aos portugueses que vivem um momento de dificuldade”, atiraria também João Torres da bancada do PS, enquanto o líder parlamentar concluía que “extrema-direita decidiu fazer xeque ao rei da oposição”.
O que é certo é que o palco providenciado pelo Chega tem servido aos socialistas para irem insistindo na sua ideia de uma linha que separa aquilo que “entretém a bolha política e mediática” e o que “é importante para as pessoas”. Sem surpresa o PS coloca-se estrategicamente do lado das pessoas, amesquinhando a iniciativa do Chega que diz apenas servir para “embaraçar o PSD e levar de arrasto a IL”. E nisto é ajudado pela esquerda à sua esquerda que classificou a moção de “brincadeira” — foi Pedro Filipe Soares, do Bloco de Esquerda, já que a líder, Mariana Mortágua não interveio em sinal de desgraduação de um debate promovido pelo Chega.
Sinal da pouca pressão que esta moção de censura (a quinta da era Costa, a terceira desta legislatura e a segunda vinda do Chega) veio colocar sobre o Governo esteve na governante que o primeiro-ministro indicou para fechar o debate. A ministra Elvira Fortunato fechou sem chama política e como um inventário de feitos na sua área a tarde parlamentar.
O outro sinal da descompressão foi quando André Ventura pediu a palavra para falar — perante um pouco comum vazio de inscrições para tal quando ainda havia minutos disponíveis nas outras bancadas — e disparou sobre o PSD provocando risos não disfarçados de António Costa que assistia de bancada à rajada de ataques entre opositores. Nessa fase, aliás, o pior ataque que recebeu de Ventura é um que agradece: “Cortaria as duas mãos se alguma vez governasse com o PS. E cortaria muitas outras partes do corpo”.
Além de tudo ainda ficou uma acusação — que surgiu sobretudo à esquerda — às consequências de surgir agora uma moção de censura. O debate veio fazer adiar o regresso dos debates quinzenais que, por causa deste debate agora com o primeiro-ministro, só poderão voltar no final do ano. Outro motivo para Costa e o PS sorrirem.
Medidas em marcha. TAP, mínimo de existência e habitação
O primeiro-ministro aproveitou as respostas à esquerda para deixar as poucas novidades (algumas recauchutadas) que trazia no bolso. A mais fresca foi sobre a TAP a intenção de aprovar na próxima semana o diploma que vai enquadrar a privatização da companhia, ou seja, o avanço do processo de reprivatização de uma parte ou da totalidade do capital. Mas ainda não adiantou coisa nenhuma sobre esse diploma, garantindo apenas que não irá ser vendida “a qualquer privado” e que tudo ocorrerá “tendo em conta interesses da companhia e dos portugueses”.
A outra garantia que deixou foi sobre o mínimo de existência e o afastamento de uma ideia que vinha ganhando espaço: o aumento do salário mínimo vir colocar em risco a isenção de IRS de quem o recebe. Mas Costa diz que “com grande probabilidade” o Governo vai “atualizar o mínimo de existência em conformidade com o aumento do salário mínimo”, preservando a isenção para os salários mais baixos de todos.
Também abordou as medidas que vai aprovar esta quinta-feira, em Conselho de Ministros, nomeadamente os novos apoios a quem tem crédito à habitação que coloca como formas de “eliminar imprevisibilidade” e “devolver segurança às famílias”. Ainda se desvinculou da linha de aumento de juros seguida pelo BCE, em resposta ao PCP que lhe perguntava se não achava “imoral” os lucros da banca numa altura de especial sofrimento das famílias afectadas pelos sucessivos aumentos dos juros.
Ainda entre as respostas à esquerda, a quem foi sempre jurando não se ter afastado da linha iniciada em conjunto em 2016 — e que BE e PCP recusam estar presente neste Governo –, António Costa ainda prometeu dar uso a uma eventual folga orçamental. A dada altura comprometeu-se com “orçamentos equilibrados” onde, “tal como aconteceu no ano passado, em que se desenvolveu em apoios sociais o aumento da receita fiscal prevista” terá uma “alocação equilibrada entre a redução da dívida, a melhoria dos rendimentos e a redução da fiscalidade sobre o trabalho” — e isto em concreto quando olhar para “os saldos orçamentais”.