As amostras são trazidas por empresas de transporte, em caixas de cartão seladas que, por sua vez, protegem cubos de esferovite cheios de gelo seco. No interior de cada um deles há uma caixa cilíndrica de plástico, com tampa de enroscar, e, dentro dessa caixa, está um saco de plástico transparente comum, fechado com um nó, a proteger o tubo onde, a boiar num líquido rosado, estão preservadas as células retiradas horas antes do nariz ou da garganta do potencial doente.
Há apenas dois meses, no início do surto do novo coronavírus, todos os testes de diagnóstico para o SARS-CoV-2 eram realizados aqui, no quinto andar do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, no Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe. E apenas no laboratório de biossegurança de nível 3, de pressão negativa e onde são testadas todas as amostras suspeitas de ébola ou de antraz em Portugal: o desconhecimento em relação ao vírus e à sua capacidade de infeção era quase total, e todos os cuidados pareciam poucos.
Agora, que as autoridades internacionais de saúde sabem um pouco mais sobre o assunto, são vários os hospitais portugueses que, de forma a agilizar processos e acelerar diagnósticos, já estão a fazer este tipo de análises aos seus próprios pacientes internados — e em câmaras de biossegurança de nível 2, “que têm um fluxo de ar que impede que entre algo lá para dentro que possa contaminar as amostras ou que saia e possa contaminar o operador”, explica a virologista Raquel Guiomar.
Isso faz com que a sua equipa de cinco pessoas, que monitoriza e estuda em tempo real os vírus da gripe e outros vírus respiratórios em circulação no país, fique com mais tempo para investigar o novo SARS-CoV-2.
“Estamos a investir numa das funções que os hospitais não têm que é a sequenciação e caracterização dos vírus que estão em circulação em Portugal. Os laboratórios enviam-nos as amostras positivas e nós fazemos não só a comparação dos resultados, que é uma das funções dos laboratórios de referência, mas também a sequenciação dos vírus, que é o que nos vai permitir estudar as cadeias de transmissão aqui em Portugal — e saber quando é que o vírus foi introduzido e vindo de onde. Só a integração de toda a informação da parte clínica, epidemiológica e laboratorial vai permitir que tenhamos uma imagem total do vírus, para então podermos atuar na eliminação ou na contenção da sua transmissão”, concretiza a cientista, no corredor que interliga as várias salas do laboratório que coordena.
Desde o início do surto, fizeram-se ali pouco mais de 130 análises ao novo SARS-CoV-2 — incluindo a de Marcelo Rebelo de Sousa, que esta segunda-feira se revelou negativa: foi a própria Raquel Guiomar, na companhia de Fernando Almeida, que preside ao conselho diretivo do Ricardo Jorge, e de uma outra técnica, quem fez a zaragatoa ao Presidente da República, na sua casa, em Cascais, com uma espécie de cotonete comprido.
“O que está recomendado para este vírus é analisar duas amostras em paralelo. Uma de células da nasofaringe, da zona posterior, que é onde o vírus se multiplica, recolhidas através das fossas nasais; e outra de células da orofaringe, junto amígdalas. Para os doentes que têm expetoração ou secreções respiratórias os médicos têm também juntado uma terceira amostra, para complementar o diagnóstico. Tudo isto ajuda também a estudar onde é que este novo vírus é detetado em maior concentração”, explica a virologista.
470 pacientes testados a cada 25 horas
Na manhã em que o Observador visitou o Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe, esta terça-feira, dia 10, eram apenas oito as amostras por reanalisar —, mas o serviço, que já alargou os horários de trabalho e deu formação a vários cientistas ao serviço de outros laboratórios, está preparado para trabalhar 24 horas por dia caso venha a ser necessário.
“Em 2009, na pandemia de gripe, testámos mais de 16 mil amostras. Mas a pandemia de 2009 também teve início em abril e o número de amostras foi contido até outubro, só no inverno seguinte é que o vírus teve uma maior expressão e transmissão na comunidade”, ressalva a virologista. “Pode vir a acontecer o mesmo agora, uma vez que os vírus respiratórios circulam no inverno com maior facilidade, pois o tempo frio e a pouca humidade permitem que as partículas de secreções respiratórias, que são no fundo o veículo de transmissão destes vírus, se propaguem a maiores distâncias entre pessoas. Além disso, a baixa temperatura o vírus consegue permanecer por um período mais longo em superfícies, o que pode ser também uma fonte de infeção. Há quatro coronavírus que, todos os invernos, são agentes de infeção respiratória. O que nós não sabemos é se este também se vai adaptar de tal forma à população humana que se torne um vírus sazonal e que fique associado a uma infeção respiratória comum. O problema neste momento é que o vírus é novo, a população não tem nenhuma imunidade, e por isso está associado a casos mais graves em grupos de risco.”
No limite, se for preciso, avança Raquel Guiomar, o Instituto Ricardo Jorge tem capacidade para testar até 94 doentes de cada vez — cada tabuleiro leva 96 amostras mas é sempre necessário deixar espaço para dois controlos que validem os resultados, um negativo, outro positivo.
O problema: cada “corrida” de testes, como lhes chamam os especialistas, demora cerca de cinco horas a completar. E este é o chamado “diagnóstico rápido”: “Os anticorpos, que é o que se diagnostica no soro, não estão a ser utilizados nesta fase de análises rápidas: precisamos de duas amostras, uma da fase de doença, outra de 14 dias após o início da doença. Neste momento, e na fase de contenção, as amostras que temos analisado aqui são ainda num número ainda reduzido, mas têm um critério de grande urgência, queremos identificar rapidamente os casos suspeitos para que fiquem em isolamento e não se iniciem cadeias de transmissão na comunidade”.
Se cada dia tivesse 25 horas, isso significaria que o Instituto Ricardo Jorge, em Lisboa, teria, sozinho, capacidade para diagnosticar 470 pacientes por dia. O que nos leva de volta ao início da “corrida”, que é como quem diz ao princípio do texto.
Dois pares de luvas, máscara e viseira
Depois de chegarem ao quinto andar do Instituto Ricardo Jorge, as amostras dos pacientes suspeitos de infeção com o SARS-CoV-2 são recebidas para serem testadas e comparadas com o chamado “controlo positivo inativado” — que não é mais do que o próprio novo coronavírus despojado da sua carga infecciosa mas com o material genético intacto.
“Laboratórios especiais de alta contenção, a partir de amostras positivas, cultivaram o vírus em grande quantidade, inativaram-no e distribuíram depois o RNA — os vírus podem ser de DNA ou de RNA, este é um vírus de RNA, que é mais frágil e pode degradar-se mais facilmente, temos de ter mais cuidado —, através das redes internacionais de que fazemos parte”, explica Raquel Guiomar. Que faz questão de ressalvar: “A cultura deste novo coronavírus está completamente desaconselhada neste momento, só esses laboratórios muito especiais, que estão a fazer investigação fundamental, é que estão a fazê-lo. Está completamente desaconselhado alguém multiplicar o vírus na sua forma infecciosa, para que não seja guardado em congeladores nem em sítio nenhum”.
Esse é o primeiro passo para a análise: inativar o potencial de infeção de todas as amostras que chegam. E aí, todos os cuidados são poucos: porque o novo coronavírus se transmite, como o vírus da gripe, por gotículas e aerossóis, antes de entrarem na câmara de biossegurança de nível 2, os técnicos do laboratório têm de vestir uma bata descartável, calçar dois pares de luvas, proteger os olhos com uma viseira, e tapar o rosto com uma máscara com filtro de partículas — “São as que se utilizam para o ébola e que estavam a ser vendidas nas farmácias italianas a 200 euros”, diz-nos Patrícia Conde, licenciada em engenharia biotecnológica e com um mestrado em saúde pública, enquanto se equipa.
São precisos dez minutos para que o desnaturante de proteínas que é adicionado ao líquido que contém o material genético do paciente faça efeito: no fim do processo, a estrutura do vírus, se o houver, estará intacta — a capacidade de provocar doença é que não, mesmo que o resultado final do teste seja positivo para o novo coronavírus, a partir deste momento a amostra é completamente inofensiva.
De forma a garantir a qualidade dos resultados, quando esta primeira fase estiver concluída, explica Raquel Guiomar, vai ser preciso repetir duas vezes: “Como neste momento e para estes procedimentos novos estamos a testar três reações para cada doente, é quase como fossem três análises, que são dirigidas a três zonas diferentes do genoma. Uma das análises não influencia a análise do coronavírus: confirma apenas que a colheita foi bem feita e que há um gene humano na amostra”. As duas seguintes, sim, já vão servir para detetar o vírus: “Uma é feita numa zona do genoma que é comum a outros vírus deste grupo e até a coronavírus encontrados nos morcegos e noutros animais; e a terceira numa zona específica deste novo coronavírus, que é única e que o distingue de todos os outros coronavírus, que são um grupo muito vasto”.
Ao todo são cinco as fases deste teste de diagnóstico, feito através da metodologia que é utilizada também para as análises dos vírus da gripe e que permite a amplificação e multiplicação rápida do seu material genético, a PCR, “polymerase chain reaction” — reação em cadeia da polimerase, em português. “Por esta metodologia de PCR ser muito sensível tem um circuito que está bem definido e a que chamamos de ‘marcha em frente’: temos uma sala onde tratamos as amostras, que no fundo é um espaço contaminado; depois temos outra sala, também contaminada, onde são processadas as amostras; e a partir do terceiro passo vamos para uma sala que está no extremo oposto do corredor, onde não utilizamos sequer as mesmas batas. Essa já é uma sala limpa, onde só estão reagentes, muito sensíveis à temperatura, e onde só entra material esterilizado. Tudo para garantir que quando estamos a amplificar o RNA do vírus não se amplifique mais nada além do nosso alvo. Temos de garantir que não há contaminação“, resume a virologista e coordenadora do Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe.
Apesar de o processo ser feito através do recurso a equipamentos automáticos — como o extrator de ácidos nucleicos que, no passo dois, isola o material genético do vírus; ou o termociclador que faz os 45 ciclos de variações de temperaturas que, no final, vão gerar a informação que permitirá perceber se a amostra é ou não positiva para o novo coronavírus —, continua a ser moroso. Uma hora é quanto demora o passo número dois, uma hora e meia é quanto leva o último dos cinco a chegar ao fim — se bem que, através do programa informático a que está ligado, seja possível ir acompanhando o resultado em tempo real, pelo menos a partir dos primeiros 60 minutos.
No final, comprovámos in loco, não se acende uma luz verde a dizer negativo nem uma vermelha a gritar positivo para o SARS-CoV-2: “Aparece um gráfico, uma curva que espelha a intensidade do comprimento de onda que é emitido e que está diretamente relacionado com o número de cópias do vírus que se gerou naquela amostra”, elucida Raquel Guiomar. “Não estamos a quantificar, o resultado é negativo ou positivo, mas esta metodologia permite fazê-lo. É interessante no seguimento de casos e ao nível da investigação e da sequenciação do genoma do vírus. Neste momento é ainda precoce, mas já há grupos que estão a juntar todas as sequências que são colocadas nas bases de dados internacionais para que, de forma global, se possa avaliar em tempo real qual a evolução do vírus — e para perceber também de que forma atuar”.