No verão de 1999, o realizador António Ferreira andou em escolas de Coimbra em busca de miúdos para o filme em que estava a trabalhar. Procurava jovens adolescentes, sem experiência em representação. Viu mais de 500 até descobrir Cleia Almeida que, com 15 anos, viu o próprio rosto plasmado na tela do Festival de Cinema de Cannes, em França, onde chegou Respirar (Debaixo D’Água).
Aos 41 anos, a atriz, elemento fundamental do núcleo duro de um dos mais consagrados realizadores portugueses (João Canijo), presença habitual nos palcos, na televisão, lamenta: “Continuam pessoas a perguntar-me se ser ator é um hobby”. Para um ator português, festivais internacionais, filmes premiados, ovações ruidosas, novelas em prime time não são sinónimo de segurança, tampouco impedem que se viva no fio da navalha, com a palavra “emigração” na ponta da língua.
“Quero continuar a trabalhar como atriz até que as perninhas me doam”, diz ao Observador, numa altura em que mergulha pela primeira vez no território da encenação com Uma Vida no Teatro, de David Mamet, no Teatro Aberto, em Lisboa. A peça estreia-se esta quarta-feira no teatro lisboeta e ali fica até 26 de maio.
É a primeira vez que está no papel de encenadora. Como foi a experiência?
É uma grande responsabilidade, recai tudo sobre o encenador. Não tinha ideia da tensão que ia sentir. Senti uma grande expectativa sobre o que faria como encenadora e não era nada essa a minha intenção, afirmar-me como encenadora. Só queria fazer o espetáculo que vi há 20 anos em Londres, que achei meio comercial e que não falava de aspetos que este texto tinha. Se calhar é um bocado pretensioso, mas queria fazê-lo de outra forma.
Então não foi um convite, foi a Cleia que se propôs a trabalhar sobre este texto.
Sim, fui. Estava a fazer uma peça nos Artistas Unidos, que se chamava Cada Sopro (texto de Benedict Andrews, levado à cena no Teatro da Politécnica, em 2014). Era o John Romão a encenar. Conheci a Maria João Vaz aí e pedi-lhe para ela traduzir este texto. Depois fui pensando, mas tinha uma grande dificuldade em imaginar isto espacialmente. Conheci um arquiteto chamado David Serrão, que pensou nisso [e assina o cenário] e achei que já era o momento em que me podia atirar para uma encenação. Propus ao João Lourenço [diretor artístico do Teatro Aberto] num ato irrefletido e ele aceitou.
[Já saiu o quinto episódio de “Operação Papagaio” , o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo episódio aqui, o terceiro episódio aqui e o quarto episódio aqui]
O que é que esta peça tinha de especial que não viu no palco em Londres?
Em Londres era uma peça muito cómica, onde o público estava o tempo inteiro a rir à gargalhada. Tinha 21 anos e já na altura achei que a dimensão dramática que este texto tinha não estava ali. A demência, a agonia de um ator que tem que deixar de representar porque já não consegue decorar os textos, porque já não consegue ouvir bem… É extensível a todas as profissões a ideia de que quando começamos a ficar mais velhos os mais novos nos passam por cima. Há um ciúme de querer ser mais novo, mas uma impossibilidade, pelas leis da natureza. E eu não sentia essa carga naquele ator.
Como é que foi mudando a sua relação com este texto nestes 20 anos?
Vi muitas peças entretanto, mas esta ficou-me sempre na memória. A memória de que podia fazer diferente, não melhor nem pior, mas diferente porque aquele ator mais velho está num sofrimento profundo de ter que deixar a profissão. Depois fui conhecendo pessoas ao longo do meu percurso e vi a acontecer mesmo à minha frente, pessoas que dedicaram toda uma vida ao teatro ou à representação e que não se lembraram que isto um dia vai acabar. Não se importaram muito com a construção de um núcleo de amigos forte ou de uma família. Nada disto é obrigatório, mas no fim da vida é isso que vai contar, não é? Gostava que isto fosse um aviso para os jovens. Penso também nas gerações mais velhas, sinto que há um bocadinho uma falta de respeito, e é cada vez pior. Falo das minhas filhas e falo dos meus primos, não estou a falar de ninguém longe. Sinto que não há um respeito pela história. Contarmos o 25 de Abril aos nossos filhos, sobre o que é que o avô passou, não é a mesma coisa que o meu pai me contar a mim: olha, filha, eu fui preso pela PIDE, eu sofri isto. Quando digo “o avô foi” parece que estamos a falar dos gregos, sinto que não ligam nenhuma.
Uma Vida no Teatro arranca com dois atores a discutir sobre o espetáculo que acabaram de fazer, e com um deles a dizer: “Eu senti que foi um bocadinho ao lado esta noite”. Ser ator implica fazer as pazes com saber que não se vai fazer sempre bem?
Logo que se começa a pensar em ser ator é muito importante ouvir o outro. Há-de haver alguém que nos vai sempre dizer: não vais fazer sempre bem, e isso é mesmo assim. Tem que se fazer as pazes com isso desde o primeiro casting. Dou aulas a jovens e a crianças que querem ser atores, ou que dizem que querem ser atores, e acho que as pessoas não têm muito bem consciência do que isso é. Quando vão a uma audição depois choram muito e os pais ficam muito tristes porque os meninos não foram escolhidos. Isso está tudo errado. A primeira coisa que deve acontecer é esses jovens não ficarem, falharem. Só do erro é que vem depois a conquista, a verdadeira conquista. Se ficarem em todos os anúncios que os pais querem ou que os miúdos querem, nunca vão perceber o que é ser ator. Em 90 audições, em 100 audições, vamos ficar em 20 e já temos uma vida muito preenchida. Se fizermos 20 peças em 20 anos é imenso.
Esta peça centra-se em dois atores em fases distintas: John, um jovem cheio de ambição e deslumbramento, e Robert, mais velho, algo desencantando com o meio, esgotado pelo tempo. São olhares diferentes sobre o teatro e a vida. De qual se aproxima?
Não sou nenhuma das personagens. Acho que estou no meio destas duas gerações. O Vítor [Silva Costa, que interpreta John] é 10 anos mais novo do que eu e na peça talvez um bocadinho até mais jovem. O Alfredo [Brito, que desempenha o papel de Robert] tem 61 anos, mas faz de 70 e tal. Não creio que ele esteja desencantado, acho que ele começa a sentir uma impossibilidade de continuar no teatro, então torna-se agressivo e revoltado com a impossibilidade de ser eterno. É um bocado estranho, mas é verdade. Já vi isso em alguns atores e atrizes. Há uma revolta muito grande porque temos muita atenção durante a vida: é dos jornalistas, é do público, mas principalmente do público. E, de repente, o público já não olha para nós da mesma forma. Deve ser uma dor bastante grande, consigo entender. Sei o que é ser jovem e achar que esta profissão nos vai dar tudo. É um deslumbramento, para quem ama mesmo a representação, é uma loucura quando se consegue o primeiro trabalho, quando se consegue viver disto.
Quando é que sentiu isso?
Que conseguia viver disto? Talvez nunca [risos]. Não sei, quando comecei a fazer filmes, ou quando comecei a fazer um filme por ano ou um filme de dois em dois anos, aí comecei a perceber que isto era para sempre e que queria conseguir viver disto.
Percebeu logo à primeira experiência?
Não, não, de todo. No primeiro filme que fiz ganhávamos 25 euros por dia. A equipa ganhava toda igual, da maquilhadora ao ator protagonista. Era um filme do António Ferreira que se chamava Respirar Debaixo D’Água (2000). Esse filme foi a[o festival de cinema de] Cannes e ganhou logo muito reconhecimento. Percebi que estava a seguir as pessoas que queria, o mundo que mais a mim me interessa, que é em Portugal, mas não só em Portugal, fora dele, um certo cinema que nos faz distanciar da realidade e do quotidiano. Comecei a gostar muito dessa sensação. Depois fui andando, mas acho que o Sangue do Meu Sangue (2011) foi um filme muito marcante para o meu percurso.
Porquê?
Foi um prazer imenso fazê-lo, escrevê-lo, e o reconhecimento público que teve, os prémios todos. Na rua, ainda hoje me falam do Sangue do Meu Sangue. Foi aí que acho que começou mais a sério.
Há pouco substituiu a palavra carreira por percurso e agora voltou a hesitar na escolha de palavras. Porque tem pudor em falar numa carreira?
É uma piada entre os atores [sorri]. Já não me lembro quem é que fez esta brincadeira. Quando algum jornalista nos pergunta como é que tem sido a carreira, brincamos que carreira é…
O autocarro?
O autocarro. Lembro-me sempre, sempre disto. É uma palavra que me soa estranha, não sei porquê.
Outra das questões que esta peça levanta é o que se ganha e se perde quando se vive tanto tempo na pele de tantas personagens. Alguma lhe marcou mais profundamente?
Em mim talvez, mas conheço muitos colegas que fizeram personagens que lhes deixaram marcas para o resto da vida, marcas profundas, de quando uma pessoa se entrega a 100% a um personagem.
Nunca lhe aconteceu?
Digo marcas físicas. Já vi marcas físicas de colegas que fazem loucuras para ter aquele papel ou para fazer melhor aquele papel. Não estou a condenar isto, mas para mim isso não funcionaria. Para já há a questão da família, acima de tudo, das minhas filhas. Adoro ser atriz, mas ser mãe é que é a coisa mais importante da minha vida e disso não tenho dúvida nenhuma. Quando uma pessoa passa por cima de reprimir a vontade de ser mãe para ser atriz, acho uma coisa mesmo estúpida de fazer porque no fim da vida não vai haver público a dar-lhe a mão. Quer dizer, se calhar até vai haver alguém que seja aficionado. Mas acho mesmo importante que as pessoas pensem bem quando deixam de fazer alguma coisa por qualquer percurso profissional, não é só ser atriz. Sacrificamos demasiadas coisas por um percurso profissional, não acho que isso seja o caminho a seguir. As pessoas têm de saber equilibrar as coisas. Então quando são métodos que levam ao extremo da exaustão, ao extremo do sofrimento… Estive a fazer um filme em Vinhais, o Fátima [2017], e estive bastante tempo afastada das minhas filhas e sei o sofrimento que foi. Imagino pessoas que façam isso durante um, dois anos. Quem sou eu também para estar a julgar? Não sei, mas isso para mim não funciona.
Teve essas prioridades sempre bem definidas ou aprendeu com o tempo?
Foi uma coisa que aprendi com o tempo…
Ouvi uma história sobre uma lombalgia que teve quando preparava a peça A Cacatua Verde, de Arthur Schnitzler, uma encenação de Luís Miguel Cintra no Teatro Nacional D. Maria II, em 2011.
Sim, mas isso não foi nada de exaustão, foi mesmo o meu corpo a dizer: está aqui alguma coisa estranha nas tuas costas. Já me aconteceu duas ou três vezes, infelizmente. Porque o corpo também dá de si. Mas não foi nenhuma loucura que tenha feito na peça. Foi só o corpo a dizer para parar.
A dada altura, em Uma Vida no Teatro, Robert diz a John: “A partir de agora tens de ter muito cuidado a quem dás ouvidos. De quem recebes conselhos”. No seu percurso como atriz, teve sempre esse cuidado?
Não, não tive esse cuidado e por vezes deixei-me influenciar por comentários e críticas menos úteis, mas uma das coisas que a idade tem de bom é que agora já só ouço mesmo quem considero muito o trabalho e o gosto. Ouço toda a gente, mas só entra no meu coração e na minha cabeça aqueles com quem tive muitas conversas sobre cinema, sobre teatro, sobre representação.
Quem são essas pessoas?
São colegas com quem trabalhei e com quem já estabeleci uma relação de amizade e confiança. Pessoas que mesmo que me digam a pior coisa vai ser sempre bem recebida, porque eles querem o melhor dos meus trabalhos, até porque continuam a trabalhar comigo, então não faria sentido destruírem a minha encenação ou um filme. Por exemplo, o João Lourenço veio ver um ensaio e mandou-me uma mensagem imensa, muito cirúrgica, com coisas que ele mudaria na encenação. Ajudou-me muito. Uma coisa é vir e dizer “está horrível, que estupidez”, outra coisa é fazer uma crítica realmente construtiva de um homem que percebe imenso de teatro, que me está a receber na casa dele.
O que chama a isso: camaradagem, amizade?
Chamo amizade, carinho e gostar de mim. Considero, se calhar, as pessoas que tenho a certeza que não me abandonarão artisticamente. O que é o pior que pode acontecer se a encenação for horrível? Posso não vir ensinar nunca mais nenhum texto. Sou atriz, não me considero encenadora por encenar uma peça. Talvez sim, talvez venha a ser, talvez agora descubra 20 textos que quero encenar e fazer melhor.
Há uns anos, numa entrevista, dizia que nunca seria realizadora, mas que encenadora não era totalmente descabido.
Estava a falar desta peça já na altura. Não sei porquê, mas realizadora não me vejo mesmo a ser. Não quero, não é para mim. Como encenadora para já está a ser uma experiência muito boa, achei que iria ser muito mais difícil numas coisas e que seria muito mais fácil noutras e é exatamente o contrário.
O que achou que seria difícil e afinal foi fácil?
A direção de atores, pedir dos atores exatamente aquilo em que estou a pensar, gerir egos. Tenho uma assistente de encenação maravilhosa, que é a Constança. O Alfredo e o Vítor [atores] ouvem mesmo e reproduzem, é fantástico ver isso.
Por oposição, o que foi mais difícil?
Gerir as minhas expectativas, coordenar o tempo, organizar o tempo para que em dois meses consiga fazer tudo aquilo que queria fazer. Dois meses é imenso tempo, só que me parece sempre que ainda faltam muitas coisas.
Começou a representar aos 15 anos, quando entrou no Respirar Debaixo D’Água. Olhando para trás, era mais ou menos previsível que a sua vida viesse a dar à representação?
Impossível era fugir a isto. Parece aquelas histórias românticas, mas é verdade, desde os cinco anos que organizava os teatrinhos da minha turma. Depois as minhas professoras começaram a falar com os meus pais e eles não queriam acreditar. Acho que protelaram isso sabendo o país em que vivemos. O meu pai é brasileiro, veio de um contexto muito maior, de cinema, de teatro, de um país com 200 milhões de pessoas. Então o meu pai e a minha mãe tinham um bocado de medo sobre o que ia acontecer a uma atriz em Portugal. Mas depois foram vendo que era inevitável. Era impossível não ser.
No casting para filme, o realizador procurou em dezenas de escolas secundárias na região de Coimbra e procurava raparigas que soubessem nadar. Era boa nadadora?
Sou uma nadadora normal. Mas quem acabou por fazer de protagonista foi uma rapariga que não sabia nadar! Vê como os realizadores dão a volta às coisas? O teatro não é assim. No teatro ou nada ou não nada [risos]. A ela meteram-lhe uma caixinha e ela fingia que nadava. Fiquei sempre a pensar: “Porque é que não sou eu, que sei nadar?” Tinha 15 anos. Mas é verdade, o papel dizia “boas nadadoras e que queiram fazer filmes”.
Antes disso já se metia no autocarro para Lisboa com uma amiga para fazer figuração. Como foi fazer um papel pela primeira vez?
Foi espetacular. Foi a confirmação óbvia daquilo que já constatava há 10 anos e que os meus pais não acreditavam. Para mim foi muito importante eles perceberem que havia uma profissionalização da coisa. Que ser ator não era uma coisa a part-time. Os meus pais viam filmes, iam ao teatro e sabiam que ser ator era uma profissão. Mas não me viam a mim e para mim era muito importante saberem que nós trabalhávamos durante 12 horas para fazer um filme. Foi muito importante e foi a prova de que, dois anos depois, tinha que ir para o conservatório. As conversas que o realizador teve com o meu pai e com a minha mãe também foram importantes. Foi um abrir caminho.
Foi neste filme que ganhou os tais 25 euros por dia?
Sim. Nunca me vou esquecer disso, porque achei um máximo toda a gente ganhar a mesma coisa. Não se pode ser de esquerda e depois não se fazer o que se diz. E foi o que ele fez.
Quando é que percebe que é boa no ofício, que sabe ser atriz?
Cada trabalho é diferente, cada trabalho é uma descoberta. Posso ser muito boa e no ano a seguir ser péssima.
Por outras palavras então, quando foi a primeira vez que pensou: “fiz este papel mesmo bem”?
Nunca.
Nunca?
Nunca, mas vai acontecer. Vai acontecer. Um dia. Há sempre coisas que mudaria, há sempre tom de voz que está errado, há sempre um olhar que para mim não foi bem, ainda sou assim. É uma constante busca, uma constante procura, é uma estafadeira.
Colegas de profissão gabam-lhe a energia e o sentido do humor, como se nota nesta entrevista, mas profissionalmente nunca fez papéis cómicos.
É verdade. Tem calhado assim. Não fiz nada para não fazer comédia. Se calhar como os filmes do João são densos, dramas familiares… Depois já fui vendida aos russos logo aos 18 anos…
Para explicar, foi vendida aos russos na ficção.
No filme Noite Escura [2004]. As pessoas em Portugal colam muito o que veem ao próximo papel. Fiz umas quatro ou cinco novelas em que era a rapariga que vinha da província trabalhar para Lisboa e arranjar um trabalho para sobreviver, por exemplo. Até que houve um dia em que bati o pé e disse: por favor, não tenho nada contra a rapariga que veio da província procurar um trabalho em Lisboa, porque é o que sou, mas se pudesse fazer uma coisa diferente era porreiro. Lá fiz uma rapariga que era coxa numa novela, mas que vinha de uma família de Lisboa. As pessoas aqui têm muita tendência a colar os papéis aos que já fiz. Estou um bocado marcada como uma atriz dramática, talvez.
Participou em três filmes de António Ferreira, nos últimos anos tem trabalhado continuamente com o realizador João Canijo. O que encontra no trabalho continuado com cineastas?
Sou uma pessoa de pessoas, e ligo-me muito às pessoas com quem trabalho. Acabámos por desenvolver uma amizade pura, tanto com o João como com o António. Amizade juntamente com admiração dá inevitavelmente como resultado querer trabalhar outra vez. Esses dois nomes, por exemplo, mais o Luís Miguel Cintra também. É impensável dizer que não se eles me convidarem para trabalhar. Darei as voltas todas à minha vida que for preciso, menos deixar de ver as minhas filhas, para trabalhar com eles. Até chegar ao Almodóvar.
Está a encenar pela primeira vez, mas começou no cinema e já fez televisão. O que a move a cada trabalho, é o meio também?
O que me move são boas personagens. Neste momento é boas personagens e trabalhar fora de Portugal. São os meus dois grandes objetivos. Não vou olhar mais para que meio é, estou cansada disso. Quero lá saber se é teatro, se é cinema, se é televisão. Tudo é bom, tudo é meritório. Em todos os meios há pessoas maravilhosas a trabalhar e querem fazer bons trabalhos, que têm respeito pelos atores. E é isso que eu vou começar a priorizar em vez de: ah, isto é cinema, agora tenho que fazer cinema, não posso fazer televisão, ou isto é teatro, não posso fazer…
Já pensou assim?
Tento sempre equilibrar as coisas, sem querer. Tento sempre equilibrar teatro, agora já estou há muito tempo no teatro, quero ir para a televisão, agora já estou há muito tempo na televisão, quero ir para o teatro, fazia assim. Fazia assim e pensava assim, mas não faz sentido.
Porque o fazia?
Boa pergunta. Não sei. Não aguento rotinas e monotonia, fazer sempre a mesma coisa. Por isso é que eu estou encantada com este papel de encenadora, no sentido em que todos os dias é diferente e depois não vou repetir o mesmo texto [risos].
Sei que leu Clea, livro de Lawrence Durrell. Que tal lhe pareceu?
Foi uma descoberta muito boa. Percebi porque é que a minha mãe me quis pôr esse nome. Era uma ilusão da cabeça dela, não é?
Não se revê na personagem?
Não, de todo. É uma mulher super tudo, super dócil, que ajuda toda a gente durante uma guerra. Entendo perfeitamente a heroína que a minha mãe queria transpor para mim. Isso é muito bonito. Mas não me revejo.
Desafiada a falar sobre a Cleia, a Rita Blanco disse: “sofreu muitas partidas na vida e tem uma solidão dentro dela, e uma tristeza que ela combate com a alegria que dá aos outros” [SIC, 2023]. Revê-se nesta descrição?
Pois, fiquei assim um bocado… Até chorei um bocadinho, depois fiquei a pensar. Ela estava-se a referir-se à morte dos meus pais. Mas antes já era a pessoa alegre que sou. Não percebo o que é que as pessoas vão ganhar em eu estar: Ai, sabe lá, o meu pai… O que é que as pessoas vão ganhar ao contar a história triste da vida da Célia? Claro que tenho perdas na minha vida, irremediáveis e que são horríveis, mas não sei se é muito interessante falar sobre isso. Não estou a ver de que solidão é que ela possa estar a falar mais. Sei que ela tenta colmatar às vezes. É muito cómica, quando diz: “Pronto, é assim, a tua mãe não está aqui, mas eu estou aqui. O que é que é preciso? É ir à estreia?”. É uma grande amizade. Também é uma das pessoas que ouço e que me tem ajudado imenso a analisar o que faço. A Rita, o João Canijo. Era dessas pessoas que falava há bocado.
Tendo nacionalidade brasileira, e admitindo que um dos objetivos é trabalhar fora de Portugal, porque nunca o fez antes?
Estava a viver no Rio de Janeiro quando fui convidada para fazer uma novela. Vim fazer a novela e a minha ideia era depois voltar para o Rio de Janeiro. Só que conheci o pai das minhas filhas e engravidei, portanto o Brasil ficou adiado aí. Isto há 10 anos. Vou agora para o Rio de Janeiro e vou fazer a mesma coisa, andar à procura de um agente.
Os filhos pesam na decisão de partir?
Se calhar. É verdade que nos primeiros anos das minhas filhas uma pessoa focou-se nas filhas e em trabalhar aqui. Só agora, que a Mafalda vai fazer 10 anos, é que estou a pensar em investir mais nessa internacionalização. Faço o [programa] Passaporte, todos os anos, com muito afinco, mas acho que é uma coisa que vai acontecer. Não sei quando, acho que é preciso pedir ao Universo para acontecer.
“Quando eu nascer outra vez, quero nascer sem idade, filha da mãe que me fez e de um homem sem maldade”
Tem de cantar!
É o que canta no filme Noite Escura. Como é a relação de uma atriz com a sua voz? Porque não voltou a cantar?
Ótima pergunta. Já de cabeçalho: porque é que a Cleia não canta mais? É bom, pode pôr no cabeçalho [risos]. Não sei. Adoro cantar e adoro dançar. Ainda tenho muitas coisas para fazer, meu Deus, pensava que já estava a ficar velha. Na peça Começar [de David Eldrige, levada à cena em 2021], encenada pelo João Lourenço, eu cantava e dançava, mas por cima de uma música. Se calhar os encenadores acham que canto mal, não sei, mas eu adoro cantar.
Tento não pensar muito na minha voz porque sei que é uma voz que não agrada a toda a gente. Levei muito na cabeça no conservatório quando era miúda, porque tinha uma voz imatura, porque tinha uma voz com muitos metálicos, e então fiquei sempre a pensar nisso, é uma coisa que nos marca. Queres tanto ser atriz, vens de Coimbra para ser atriz e aos 18 anos já te estão a dizer que a tua voz tem muitos metálicos e que não serve para palco, fica-se inevitavelmente um bocado frustrada e traumatizada. Por isso tento não pensar muito na minha voz, sei que não é uma voz muito comercial, não faço muitas locuções.
O que é isso de ter uma voz comercial?
Há vozes que fazem muito dinheiro com a venda para muitas marcas. Com o decorrer dos anos vejo que não sou muito contratada para vender nada, portanto sei que não é uma voz muito comercial. É uma voz muito normal, então tento não pensar muito nisso, mas adoro cantar.
O que venderia, se pudesse?
Vendia paz, vendia felicidade, vendia sexo, que as pessoas também precisam [risos]. Vendia os sentimentos, sensações. “Rádio sensações, Cleia Almeida” [risos]. Já fiz algumas coisas de locução, mas essencialmente animais para filmes de desenhos animados. Fiz uma cadelinha. É delicioso ver, fazer aquilo.
Depois de Malviver [2023] acredito que esteja já a trabalhar no próximo filme do João Canijo.
Sim, estamos a acabar um filme e já temos o João a abraçar-nos e a dizer: “muito bem, fizeste este muito bem, o próximo…” O João é um workaholic mesmo a sério.
Em que fase do processo estão?
Estamos na fase de marcar os ensaios para a escrita de guião. Vamos escrever o guião durante o verão.
Esse labor colaborativo deu-lhe base e segurança para agora encenar?
Muito. Quando as pessoas me perguntam de onde é que veio agora a vontade, veio totalmente do João Canijo, de me deixar pôr a mão na massa totalmente. Percebo que consigo olhar para as coisas sem ser do ponto de vista só da minha personagenzinha, mas sim de um todo. E do João Lourenço, aqui nas encenações dele. O João tem um conhecimento imenso sobre atores e aceitava as minhas ideias. Então, se há duas pessoas que considero muito que aceitam as minhas opiniões e as minhas ideias, então se calhar também consigo fazer isto sozinha. Foi a partir daí.
Para um ator ter trabalho é necessário existir um casting, ser escolhido. Encenar é uma forma de tomar as rédeas do destino e não estar à mercê de uma vontade alheia?
É verdade, mas não é a primeira vez que eu agarro num texto e digo: vamos fazer. Nunca encenei, mas já tinha tido uma vez uma grande vontade de fazer uma peça sobre o que era estar grávida e ser atriz. Estava a grávida de cinco meses e encontrei-me com uma amiga e colega, que se chama Flávia Gusmão, e disse-lhe: porque é que nós não fazemos uma peça sobre estarmos sem trabalho só porque estamos grávidas? Escrevemos uma peça em conjunto chamada Consegues Ver os Teus Pés [2014], e depois escolhemos um encenador chamado Martim Pedroso para nos encenar e escolhemos o grupo de atrizes, todas muito grávidas, eu era a mais grávida de todas. Esteve no Teatro Taborda quatro ou cinco dias porque eu depois fui parir a Mafalda e aquilo esteve sempre esgotado. Foi uma das coisas que me permitiu pensar que se calhar era possível fazer qualquer coisa sozinha. Quando digo sozinha é ter esta vontade sozinha e levar esta gente ao meu lado.
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Esteve sem trabalho por estar grávida?
Eu, propriamente, não estava, mas isso não interessa nada, o que interessa é que eu queria falar sobre isso. Porque notava que a gravidez era um impeditivo para trabalhar. Isto já foi há 10 anos, as coisas têm vindo a mudar nesse aspeto.
Acha que sim?
Com o adensar do feminismo e destas conversas todas que se têm tido, acho que estamos ligeiramente melhores nesse aspeto. Mas ainda outro dia estive a fazer um trabalho em que uma atriz foi posta de lado por estar grávida. Não vou dizer nomes nem projetos, mas foi um choque para mim. Isto continua a acontecer em todo lado. “Está grávida, mas depois pode ter algum problema, pode ter uma placenta prévia”. Um homem pode espetar um pau no olho também. Isto continua a acontecer e era sobre isso que nós falávamos na peça. Era uma peça muito divertida, mas que tinha esse lado da atriz que está grávida, que não está de acordo com os parâmetros corporais que são necessários para alguns papéis. Não estou a dizer que isto acontece com toda a gente, mas acontece com muitas que eu já vi.
Essa pressão sobre as mulheres no meio é um peso na decisão de ter filhos, por exemplo?
Não, eu queria ter filhos o mais rapidamente possível. Nem sequer pensei nisso. Financeiramente tive que me organizar, isso é verdade. Eu e o meu marido na altura tivemos que fazer muitas contas. Mas nunca tive medo de trabalhar e já fiz outras coisas e não me importa nada fazer outras coisas. Faço várias vezes outras coisas.
Como por exemplo?
Tenho uma casa que alugo, tenho investimentos imobiliários, essas coisas que vamos conseguindo. Não investimentos imobiliários muito grandes, mas coisas que vamos tendo que começar a pensar porque não sei qual é o dia da manhã, não sei quando é que vou ter trabalho outra vez, nenhum ator sabe. Continuamos assim. Passei por razões pessoais bastante tempo em Paris no ano passado e há dois anos, e para eles nós somos uma piada, é horrível. Tenho vergonha às vezes de dizer que sou atriz porque para eles é uma loucura. Como é que alguém é ator em Portugal sem ter o Estatuto Intermitente? Mas cá estamos.
As alterações ao Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura agora anunciadas dão-lhe alguma esperança?
Ainda não é suficiente, de todo. Ainda por cima agora votaram todos mal, não sei como é que vamos para a frente. Mas haja esperança. A emigração é sempre uma coisa possível, é sempre uma possibilidade. As minhas filhas têm de crescer mais um bocado, mas creio que se continuarmos assim não vou viver em Portugal muitos mais anos. Mas as minhas filhas têm de ter a maioridade, obviamente. Depois elas vão ter que optar, mas não creio que passe aqui a minha idade, dos 50, 60 para a frente, não me vejo em Portugal.
Vê-se no Brasil?
O mundo é tão grande! Não vou para a República Checa, não vou para um país que não me permita trabalhar como atriz. Quero continuar a trabalhar como atriz até que as perninhas me doam, mas o mais lógico seria Espanha ou França. Até porque estive há muito tempo em Espanha e gosto muito do cinema espanhol, tenho lá amigos, e até para ficar mais perto das minhas filhas. Mas se elas forem espertas… Uma diz que quer ser bailarina e eu já disse: “Bailarina? No Conservatório de Paris? Conservatório de Londres?” O meu sonho é esse, que elas queiram ir estudar para uma faculdade lá fora e eu vá com elas. Porque eu tenho que ir com elas [risos]. A mãe tem que ir com elas. Era o sonho para o qual me estou a preparar. Mas vamos ver se assim é ou não.
Como observa a evolução da valorização da cultura em Portugal?
Vejo que mudou muito pouco dos meus 15 anos até agora, aos 41. Continuam pessoas a perguntar-me ser ator é um hobby. Fui a uma consulta de lombalgia, na altura da A Catatua Verde, e nunca mais me esqueci. O médico do hospital da Universidade de Coimbra perguntou-me porque é que eu estava tão aflita e eu disse-lhe que tinha uma peça que se ia estrear. Ele disse: mas ser ator é uma profissão? Ele perguntou-me mesmo. Estamos a anos-luz de educar as nossas crianças, os nossos jovens, para a cultura. Não consigo entender porquê. Vou-me candidatar. Ou emigro, ou candidato-me.
A quê?
A deputada. Os meus pais sempre me ensinaram: “não te metas na política, na política não”. Mas eu estou assim [gesto para “falta um bocadinho assim”], assim de o fazer. Temos que fazer qualquer coisa.