Discurso de André Ventura na rentrée do Chega
“Não podemos esquecer o que aconteceu neste último ano político. E o que aconteceu e que passou de Portugal para além fronteiras foi um dado muito claro e evidente, o dado de que o bipartidarismo acabou em Portugal. O bipartidarismo que achavam que nunca ia acabar em Portugal. O domínio de dois partidos ancorados ao sistema e distribuindo entre si todas as benesses desse sistema. Esse sistema de domínio bipartidário acabou no dia 10 de março deste ano. Eu sei que já estamos em agosto, mas nós nunca devemos esquecer que houve.”
No arranque do novo ano político, Ventura fez questão de destacar o melhor resultado de sempre do Chega em eleições legislativas, o ano em que o partido alcançou 50 deputados, com uma referência especial ao Algarve por ter sido o único círculo eleitoral em que o partido venceu — e deixando a ambição de que esse seja apenas um início que se possa replicar por todos os locais do país. Em boa verdade, esse nem sequer foi o último ato eleitoral — foram as eleições europeias, em que o próprio partido assumiu um resultado aquém das expectativas, e esse não teve qualquer destaque. Aliás, o deputado João Graça ainda falou do tema, mas Ventura nem uma palavra. Em dia de festa, preferiu ignorar esse facto e enaltecer o maior feito de sempre do partido, com a recuperação de um slogan que serviu de mote: o fim do bipartidarismo e o sublinhar de que apenas um partido o conseguiu fazer em Portugal.
O que temos visto nos últimos meses é, a todos os títulos, muito exemplificativo do que é PS e PSD. Do que eles são, os dois. Todos nos lembramos da eleição do presidente da Assembleia da República. Quando acham que o Chega bloqueia, juntam-se para fazer aquilo que sabem fazer melhor, distribuir lugares, seja por quem for. Reparem que chegaram a este ponto de fazer uma espécie de presidência rotativa entre PS e PSD.”
O fosso que pretende cavar entre o Chega e o PS/PSD continua e André Ventura aproveita para ir buscar momentos dos últimos meses em que os dois maiores partidos se uniram. A eleição do presidente da Assembleia da República é um desses momentos, nomeadamente porque começou com uma alegada aproximação de PSD e Chega quando Ventura anunciou um acordo, e terminou com o Chega a virar as costas ao PSD e a deixar Montenegro nas mãos do PS. É o trunfo do ‘nós contra eles’, a teoria do ‘são todos iguais’, a necessidade de distância, de mostrar que o Chega é diferente e não alinha ao lado dos maiores adversários políticos.
É uma falta de vergonha total entre PS e PSD, como é a mesma vergonha António Costa no Conselho Europeu, apoiado pelo Governo do PSD. O homem que não servia para Portugal serve agora para liderar os governos da Europa e por isso não se espantem quando veem nas televisões todos os dias homens e mulheres do PS a dizer que o PS deve aprovar o Orçamento de Estado do PSD. É simples de perceber, é o tráfico de influência que sempre houve na República portuguesa. É o conluio do jogo entre os dois que não para de acontecer. Eu apoio António Costa para a Europa, António Costa diz para se aprovar o Orçamento do Estado para que Montenegro sobreviva.”
No seguimento das “vergonhas” apontadas no discurso, Ventura não perdoa a opção de o Governo ter apoiado António Costa para a presidência do Conselho Europeu, mas vai mais longe e usa o caso como prova de que se trata de uma moeda de troca e de um conluio entre os dois partidos, agora para aprovar o Orçamento do Estado. É um dos poucos momentos em que fala do Orçamento do Estado durante o discurso, mas fá-lo para colar PSD e PS e para se colocar fora das contas, apontando que é Pedro Nuno Santos quem está “encurralado” pelos seus próprios companheiros de partido, quando surgem a dizer que os socialistas devem viabilizar o documento.
Este partido nunca foi contra os imigrantes porque isso é estruturalmente contra a nossa matriz cristã de abordar os problemas de Portugal. Mas sabemos que não há país que resista a portas completamente escancaradas. Que não há país que resista a não ter portas nem janelas. E uma casa que não as tem, deixa de ser uma casa, passa a ser um terreno a céu aberto. O que nós queremos não é um país que anda a perseguir ou que ande atrás de pessoas por serem de outras nacionalidades, queremos é um país onde haja lei, ordem e critério, que não seja a república das bananas no acesso aos seus serviços sociais e públicos. E, por isso, Luís Montenegro, não vamos voltar atrás naquilo em que acreditamos.”
André Ventura tem dito que Luís Montenegro recuou em matéria de imigração quando chegou ao Governo e defende que o Chega é o único que pretende controlar a imigração. No discurso, procurou um equilíbrio entre a promessa de que o partido não persegue imigrantes e a necessidade de haver lei e regras. E dirige-se diretamente a Luís Montenegro para deixar claro que não recua, sublinhando que o Chega vai continuar a insistir nas mesmas políticas e a ter as mesmas exigências — procurando deixar tudo nas mãos do Governo e de Luís Montenegro. Ainda assim, Ventura já esclareceu que a proposta do referendo à imigração, apesar de ser importante, não é definitiva para a aprovação do Orçamento do Estado. Mas promete não recuar e não largar o tema nem por nada — esperançoso de que a persistência vai sair vitoriosa — por entender que a insegurança está instalada nas ruas. Antes do discurso na rentrée, Ventura foi confrontado com a entrevista de Hugo Soares ao Expresso em que o líder parlamentar e secretário-geral do PSD afasta a hipótese de viabilizar o referendo à imigração e limitou-se a dizer que quer ouvi-lo de Luís Montenegro.
“Este Governo tem sido uma desilusão nos últimos meses. Recordo-me de estar com Luís Montenegro nos debates que tivemos para as legislativas e de o líder do PSD concordar connosco encarecidamente em algumas matérias como a forma como o Estado socialista e como o PS engordou a Administração Pública, como engordou os tachos do Estado e como engordou o número de lugares em Portugal. E por isso eu tinha a ideia de que havia este consenso à direita, que era o emagrecimento destas estruturas de uma despesa incalculável do Estado. Portugal nunca teve tantos assessores, tantos cargos políticos e tantos cargos diretivos em julho. (…) Assim, doutor Luís Montenegro, não há quem à direita possa dizer em consciência que viabilizará qualquer Orçamento do Estado.“
André Ventura foi deixando todos os avisos e este foi mais um, o facto de estar contra a estratégia seguida por Luís Montenegro no que toca aos gastos com cargos. Mas disse mais, ao referir que este é um dos pontos em que considera que a direita devia estar alinhada e que o facto de não estar afasta os partidos naquela que é possibilidade de viabilizar um Orçamento do Estado.
Este Governo transformou-se rapidamente naquilo que era um governo socialista ou próximo de um governo socialista. Esta história das pessoas que menstruam. Já não se diz mulheres, agora diz-se ‘pessoas que menstruam’. E a ministra da Juventude veio dizer que está muito bem assim. Deixámos de ser homens e mulheres para sermos caracterizados por outro tipo de funções biológicas, pessoas que menstruam. (…) Não deixaremos que qualquer linguagem inclusiva ou exclusiva venha a impedir as pessoas de usarem a única linguagem que deve ser usada, a do bom senso, da razoabilidade e daquilo que é comum para todo o cidadão. (…) Nem mais um cêntimo em Portugal para a ideologia de género que destrói as nossas escolas e as nossas crianças.”
Ventura levou ao discurso de rentrée a polémica da utilização do termo “pessoas que menstruam” para argumentar que o Governo está cada vez mais próximo do PS. Nesse seguimento, o regresso da narrativa contra a ideologia de género que foi tema na última convenção do Chega e a promessa de que o partido não alinha em qualquer tipo de linguagem que impeça o bom senso. E chega mesmo a adaptar o slogan criado na campanha para a imigração para este tema, frisando que não haverá “nem mais um cêntimo” para a ideologia de género — um assunto que o partido cavalga há muito tempo e que tem sido um cavalo de batalha contra a esquerda, agora transformado num ataque ao Governo.
Somos acusados de votar às vezes ao lado de partidos de esquerda e só quem anda muito desatento é que não compreendeu a natureza do Chega desde o seu momento inicial. Sempre votámos ao lado das pessoas. O Chega não defende só o fim das portagens no Algarve ou em algumas zonas do interior do país, ou em Bragança, ou em Viseu. O Chega defende o fim das portagens, ponto. (…) Tenho uma má notícia para o Parlamento, vamos voltar à carga. Não aceitamos portagens que penalizam o país e não quero saber se o PS fica melindrado, se o PSD fica melindrado.”
Ventura voltou a justificar-se, mais uma vez, pelo voto ao lado do PS no tema das portagens (e também da descida do IRS) para jurar que não há qualquer colagem ou proximidade aos socialistas. Disse que o Chega vota ao lado de qualquer um dos partidos com assento parlamentar se isso for para bem dos portugueses — e ainda usou as portagens para atirar novamente ao PS e ao PSD ao dizer que o dinheiro é gasto para encher os bolsos do Estado e encher os bolsos dos amigos. E disse mais: o que foi alcançado não é suficiente e o Chega irá insistir em mais descidas de portagens, sendo que a abolição é um dos objetivos do partido.
O que se passou no último ano em Portugal foi a todos os títulos assustador. Quando é para os outros não há problema nenhum, mas quando bate à porta de PS e PSD o país entra em imediato sobressalto. Como bateu à porta de António Costa, o país entrou em total sobressalto. O Ministério Público já não servia, a Polícia Judiciária já não servia, campanhas e campanhas, horas e dias a fio de ataque à Justiça, às instituições policiais e ao Ministério Público. O mesmo Ministério Público que era bom quando acusava o líder do Chega, deixou de ser bom quando anda a investigar o primeiro-ministro, deixou de ser bom quando tinha diligências sobre o PS ou sobre o PSD. Dizem que nós somos um perigo para o sistema. O perigo verdadeiro, de onde vêm as ditaduras, é destes aprendizes de ditadores que, à primeira hora que a Justiça lhes bate à porta, amordaçam-na, tranquilizam-na e procuram destruí-la. (…) Vamos voltar com a prisão perpétua e a direita fará o que entender, mas agora temos uma maioria à dita direita. E o resto da direita tomará a sua decisão.”
No arranque do novo ano político, Ventura recuperou o tema da Operação Influencer, que levou à queda do governo de António Costa, para defender a Justiça e acusar PS e PSD de utilizarem a Justiça a seu bel prazer e de apenas a elogiarem quando esta não lhes bate à porta. Pelo caminho, ainda fez uma pequena referência ao caso das gémeas, ao referir que o filho do Presidente da República pediu ajuda porque “a burocracia é um inferno”. Ainda na Justiça, André Ventura recuperou o tema da reforma nesta área e utilizou o exemplo de um crime cometido em Portugal para argumentar que a Justiça não pode permitir que criminosos repitam os atos. Mais do que isso, um novo anúncio requentado: o regresso da prisão perpétua como proposta na Assembleia da República, uma medida já apresentada e chumbada no passado.
Nós não somos dos mais radicais. Somos é os únicos que os têm no sítio para dizer o que era preciso dizer, o que é preciso fazer em Portugal. (…) Vocês querem-me para poder dizer o que ninguém tinha coragem de dizer e agora temos coragem de dizer e é por isso que por muito que achem que temos medo se o Orçamento passa ou não passa, que temos medo de ir a votos ou que temos medo do cenário eleitoral, é porque eles não conhecem o ADN que nos move e a força que nos move. Nós amanhã estaríamos prontos para ir a eleições, amanhã estaríamos prontos para sair de casa e fazer uma campanha eleitoral, amanhã estaríamos prontos para ganhar Portugal.”
É outra das poucas referências ao Orçamento do Estado e na vertente de quem está preparado para o chumbar. André Ventura quis deixar claro que o Chega não tem medo de ir a eleições — sendo que este é um tema porque o partido correria o risco de perder uma representação parlamentar de 50 deputados. E assegura que o partido estaria pronto, já amanhã, para sair para uma campanha eleitoral, dando a entender que não tem nada a perder, já que o objetivo está longe de estar cumprido. Mais um ano, mais uma ressalva: Ventura assegura que a ambição está longe de ser cumprida, porque só lá chegará quando vencer as eleições.