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Editora Valentim de Carvalho deverá publicar no próximo ano gravações inéditas de Amália, que são as mais antigas que se conhecem
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Editora Valentim de Carvalho deverá publicar no próximo ano gravações inéditas de Amália, que são as mais antigas que se conhecem

AUGUSTO CABRITA

Editora Valentim de Carvalho deverá publicar no próximo ano gravações inéditas de Amália, que são as mais antigas que se conhecem

AUGUSTO CABRITA

"Começa-se finalmente a falar de Amália como uma grande cantora internacional. Foi das melhores do mundo, ponto final"

Imagem da artista está a mudar perante os portugueses, diz Frederico Santiago, responsável pela edição da discografia completa, a propósito do centenário de Amália e dos inéditos que aí vêm.

Apaixonado desde adolescente pela voz de Amália, Frederico Santiago, de 42 anos, vem-se dedicando desde 2014 à edição da obra completa da artista através da editora Valentim de Carvalho. O exemplo mais recente desse trabalho aturado de pesquisa chegou às lojas nesta quinta-feira e consiste numa caixa com cinco discos sob o título Amália em Paris.

A edição pretende também assinalar o centenário da fadista (os registos oficiais dizem que nasceu a 23 de julho de 1920, mas Amália sempre comemorou o aniversário a 1 de julho). Dissemos “fadista”? Frederico Santiago diz “cantora”. Em entrevista ao Observador, explica que o centenário e a publicação da obra integral estão a levar os portugueses a uma reavaliação — da imagem de fadista portuguesa à imagem de cantora internacional no olimpo de Ella Fitzgerald ou Frank Sinatra.

A caixa Amália em Paris é composta por cinco discos com registos ao vivo de entre 1956 e 1975. Um total de 98 canções, das quais apenas 15 tinham sido editadas em disco até hoje (e mesmo entre essas há seis que têm agora origem numa das bobines originais e não da bobine de montagem, que tinha servido até agora para reprodução). Alguns temas não estavam disponíveis nesta quinta-feira nas plataformas de streaming, como o Spotify, porque presumivelmente os detentores dos direitos de autor, sobretudo o Institut National de l’Audiovisuel de França, só os cederam para publicação em disco.

Consta ainda um livro de 94 páginas com fotografias inéditas (do acervo do Museu Nacional do Teatro e da Dança ou da Coleção Zeni d’Ovar, um amigo de Amália que viveu em Pari) e um texto do historiador Jorge Muchagato. Segundo Frederico Santiago, nos próximos meses teremos mais inéditos de Amália em disco, incluindo o que supõe serem as primeiríssimas gravações.

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Amália em 1969 na Holanda

ONBEKEND/ANEFO

Como é que descobriu as gravações de Amália agora publicadas?
O recital de 1975, por exemplo, existia nos arquivos da Valentim de Carvalho mas nunca tinha sido publicado. Como desde há alguns anos tenho feito bastante pesquisa, descobri que tinha havido gravações para a Radio France e como esses arquivos ainda existiam negociámos a compra.

Há documentação escrita que o leva a seguir pistas e a descobrir material?
Parece inacreditável, mas grande parte do material que Amália gravou ao vivo encontra-se no estrangeiro. Ela gravou em Portugal, claro, sempre manteve ligação à Valentim de Carvalho, era essa a editora dos discos de estúdio, mas Amália a cantar ao vivo em Portugal é um fenómeno tardio. O primeiro recital que deu sozinha em Portugal foi em 1985. Sobretudo nas rádios estrangeiras, em França ou na Holanda, há muito material do período áureo dela, anos 50 e 60. Tenho feito uma pesquisa grande nesses arquivos.

Isso diz-nos que a carreira internacional foi muito mais forte do que a carreira em Portugal?
Sem dúvida. Começa-se finalmente a falar de Amália não como a maior fadista de sempre, que também o foi, mas como uma grande cantora internacional. Amália foi uma das melhores cantoras do mundo, ponto final. O estrangeiro reconheceu isso muito cedo e a França foi muito importante nesse caminho. Ela sempre disse “foi de Paris que parti para o mundo”. Entrou num circuito internacional que a levou a cantar em todos os lados, quase não há terra nenhuma onde Amália não tenha ido, incluindo países do outro lado da Cortina de Ferro, como a União Soviética, a Roménia, a Jugoslávia, para não falarmos no Japão ou na Austrália. Ela esteve no circuito internacional dos grandes e acho que às vezes os portugueses não têm noção disso.

Os ecos da carreira lá fora não chegavam cá naquela época ou havia alguma inveja e a correspondente falta de reconhecimento?
Talvez seja um pouco das duas coisas e mesmo ela fugia da publicidade. Muitas vezes, ao chegar ao aeroporto, os jornalistas perguntavam-lhe pelo concertos lá fora e ela dizia “correu tudo bem”.

Porque é que ela desvalorizava o êxito internacional?
Porque os grandes nunca estão contentes. É óbvio que Amália tinha muito sucesso em Portugal, mas o status que ela tinha no estrangeiro era muitas vezes olhado com desconfiança em Portugal, duvidava-se, não se tinha noção de que nos anos 50 e 60 ela tinha um nome equiparável a de Ella ou de Sinatra. A revista Variety elegeu-a em 1959 como uma das quatro maiores cantoras do mundo. Isso cá nunca passou, foi sempre associada apenas ao fado.

O que a diminuiu?
Por um lado, sim. Amália é uma fadista, claro que é, e era a rainha do fado, mas também teve a carreira que teve porque no estrangeiro tinha a inteligência enorme de não fazer recitais inteiros de fado. As pessoas não percebiam as palavras, seria difícil fazer isso. Usava toda a capacidade vocal e interpretativa que tinha para cantar outros géneros. Nisso, é muito universal e distingue-se até entre os maiores. Era capaz de cantar flamenco, inglês, francês, rancheras do México, muitos géneros, apropriando-se sempre deles. Nunca parecia estranho ouvi-la. Sempre que se fala em Amália, vem uma lista de todos os fadistas. Ora, o círculo em que ela deve estar é o dos grandes cantores e eu no fado não conheço outro intérprete do nível dela. Ela mudou o próprio fado. Antes de Amália, o fado nunca tinha subido ao palco, nunca ninguém tinha feito um recital de fado. Essa coisa performativa de estar em palco com fado foi ela que inventou. Como se tornou um cânone, parece que aquilo sempre existiu, mas Amália inventou tudo o que hoje associamos ao fado, desde o vestido preto ao cantar à frente dos guitarristas, mesmo a forma ondulada de cantar, que não se fazia e tem que ver com as raízes que ela tinha na Beira Baixa. Hoje é quase impossível alguém cantar fado sem aquela maneira ondulada.

Havia premeditação ou sobretudo instinto?
É complicado saber. Ela sempre se desculpou, dizendo que era tudo um acaso, que Foi Deus, mas sabia o que fazia e preparava-se. Não quer dizer que fosse tudo estudado, embora fosse uma pessoa muito cerebral. Havia um lado de estudo, de pensamento sobre o que fazia.

"Ela mudou o próprio fado. Antes de Amália, o fado nunca tinha subido ao palco, nunca ninguém tinha feito um recital de fado. Essa coisa performativa de estar em palco com fado foi ela que inventou."

Essa Amália nova que estamos a descobrir será um dos efeitos da comemoração do centenário, como se fosse um momento de reavaliação?Não é uma Amália nova, as pessoas é que talvez se estejam a dar conta de que o país teve uma das maiores cantoras populares de sempre, não apenas a fadista Amália Rodrigues. Acho que o centenário conta e que a reedição da obra integral também contribui para isso. No fundo, estamos a dar a conhecer a obra. É a prova daquilo que ela nos deixou. Não é alguém que diz, estão aqui as provas.

As fotos escolhidas para o livro que acompanha os cinco discos sublinham essa dimensão universal. Amália aparece com uma imagem muito sofisticada, muito cosmopolita…
Porque essa era a imagem que ela tinha lá fora. Amália estreia-se em 1956 no Olympia, em Paris, e cai ali com estrondo. A sala fazia normalmente temporadas de duas semanas com cada artista e ela foi a primeira a fazer quatro semanas. No ano seguinte já era uma vedeta e já cantava em vários teatros. Não podemos esquecer que naquela altura quase não havia emigrantes portugueses em Paris. O sucesso inicial foi totalmente francês, parisiense. Grande parte da elite francesa viu nela uma força mediterrânica, com um cunho de tragédia, o que era completamente inovador no music hall daquele tempo. A Callas só se estreou em Paris em 1958, embora depois nos anos 60 se refiram a Amália como a “Callas du fado”. Esse lado quase grego de tragédia mediterrânica, mas que é tão português ao mesmo tempo, teve muita força na imprensa francesa. Ficaram rendidos, era um lado popular e ao mesmo tempo erudito. O cantar dela é erudito, não há dúvida. Há uma preocupação com as dinâmicas, com o fraseado musical, o que não é normal num intérprete de música ligeira. Por isso, toda a carreira de Amália inclui passagem por sítios onde só se apresentava música erudita, como o Festival de Edimburgo, o Lincoln Center ou o Festival de Baalbeck, sendo que naquela época a fronteira entre erudito e popular era ainda mais definida do que hoje. Se por um lado ela tinha uma força popular enorme, por outro tinha uma maneira de fazer música que os músicos eruditos, e os escritores e toda a gente, reconheciam como muito especial e rara.

A internacionalização dá-se por influência e vontade do Estado Novo?
Ela foi a Paris pela primeira vez em 1949, quando cantou na Casa de Portugal, e aí sim. A partir de 1956 é um sucesso privado, digamos assim. Tinha cantado o Barco Negro em 1954 num filme francês [Os Amantes do Tejo/Les Amants du Tage, de Henri Verneuil] e o tema tornou-se um êxito em França. As críticas até diziam que o filme não era grande coisa, mas valia a pena por causa da artista que aparecia a cantar. Foi assim que foi convidada a estrear-se no Olympia. Foi um sucesso completamente pessoal.

Amália estava à vontade nesses meios?
Acho que que estava completamente à vontade. Quer dizer, ela sabia o que fazia. Uma pessoa que tinha a carreira que tinha, com as plateias aos pés, sabia o seu valor. Acontece que, sendo tão inteligente, tinha uma ambição quase de escritora. Precisava de voltar a si, de estar a criar, de pensar noutras coisas. Amália nunca ficou fascinada com o sucesso. A partir dos anos 60, quando começa o fenómeno dos emigrantes portugueses em França, era capaz, a seguir a um recital no Olympia ou no Bobino, de ir cantar de borla a um restaurante ou a uma festa de portugueses. Eles não tinham dinheiro para ir às salas onde ela atuava. O sucesso nunca lhe subiu à cabeça, era realmente muito inteligente. Nunca teve atitudes de diva, nada disso. Passava na rua e falava com as pessoas. Até parece inacreditável que uma pessoa tão simples e direta pudesse depois ter o nível de uma Maria Callas no estrangeiro. Parece que não bate certo, mas era mesmo assim.

"A mulher de negro aos gritos no palco nunca tinha sido vista. Podemos dizer que Juliette Gréco também é uma artista de negro e do peso da palavra, sim, mas não tinha a vocalidade de Amália. Os estrangeiros viram o valor dela, enquanto aqui em Portugal..."

Ainda em relação às fotos: são mais sofisticadas do que as dos outros artistas portugueses da mesma época?
Sim, porque ela não tinha par. Acho que o único nome comprável, mas que infelizmente viveu numa época em que não havia gravações, deve ter sido o de Luísa Todi [1753-1833]. Foi um fenómeno musical incomparável. Hoje temos talvez, no piano, Maria João Pires. A este nível de vedeta, de carisma pessoal, de criar uma imagem nova, foi muito inovadora. A mulher de negro aos gritos no palco nunca tinha sido vista. Podemos dizer que Juliette Gréco também é uma artista de negro e do peso da palavra, sim, mas não tinha a vocalidade de Amália. Os estrangeiros viram o valor dela, enquanto aqui em Portugal… Para trazer uma imagem: é como quando a nossa mãe é muito bonita e nós nunca conseguimos olhar de fora e dizer “que mulher tão bonita”. É tão nossa…

Também podemos olhar para Amália como uma artista de comportamento perfeitamente normal. Ou seja, depois dos concertos, das viagens e do glamour claro que voltava à vida comum, ao quotidiano, como qualquer pessoa.
Pois, mas por isso é que nela está sempre presente a tragédia. Era uma pessoa insegura, com problemas, com uma filosofia interior muito complicada, angustiada. Ela dizia “tive tudo e nunca consegui ser feliz”. É apanágio de quase todos os génios.

Falou do êxito de artistas portugueses lá fora. Acha que o percurso de Dulce Pontes é mais ou menos comparável ao de Amália, no sentido em que tem uma carreira internacional fortíssima e um menor reconhecimento dentro de portas?
São intérpretes completamente diferentes. Não vou dizer mal de ninguém, mas estamos a falar de artistas que não podem ser comparadas. Amália tinha uma qualidade vocal completamente fora do normal, dava notas altíssimas quase sem usar a cabeça, às vezes canta como um tenor, não conheço outra cantora assim. Tinha uma igualdade tímbrica, com aquele rouco de beleza suprema. Ela nunca faz música ligeira, vê uma frase musical e vai dar uma acentuação no sítio em que ela decide. Não vejo outra pessoa com este nível musical em Portugal. Nem em Portugal nem em Espanha.

Amália morreu há 20 anos. Porque é que a voz dela era especial?

Ficou muito surpreendido quando ouviu os temas inéditos agora incluídos na caixa de cinco discos?
Há sempre novidade por ela ser um caso exemplar de improvisação ao vivo. Cantava sempre de maneira diferente, tudo. Mesmo as coisas que achamos que já ouvimos mil vezes são sempre novas. É como ouvir o Summertime da Ella. É sempre novo, é sempre um nível musical excelso.

Que inéditos destaca?
São gravações de uma época em que ela estava no auge, temos algum reportório que ela nunca gravou em estúdio. Em 1975, por exemplo, canta uma parte do Fado do 31 e em 1957 num recital para a rádio francesa canta o Fado Madragoa e Sempre que Lisboa Canta. Naquela época cada artista tinha o seu reportório e não cantava as coisas dos outros. O Sempre que Lisboa Canta era um fado d4 Carlos Ramos. Ela, se calhar até por estar fora de Portugal, cantou.

O êxito de Amália na imprensa francesa surge documentado no livro que acompanha a caixa de cinco discos agora editada pela Valentim de Carvalho

DR

Quando é que prevê ter terminado a edição da obra integral?
É um mistério. Há gravações de estúdio e ao vivo, muita coisa por investigar e por descobrir.

Há muitos inéditos ainda?
Sim, sim. Ela gravou discos em estúdio na Valentim de Carvalho que nunca saíram e nas sessões de estúdio gravou material que depois acabou por ficar de fora dos discos.

Quando é que vamos ouvir esses inéditos?
Para breve prevemos editar um disco de ensaios de 1970, parte deles gravados na Valentim de Carvalho e outra parte em casa dela. Acho que vai ser um disco inovador, porque em Portugal penso que nunca saiu um disco só de ensaios. No fim deste ano, vamos reeditar o Busto [1962], com sessões completas e mais alguns inéditos. Depois, no próximo ano, devem sair as primeiras gravações. Amália gravou os primeiros discos em 1945 no Brasil, mas encontrei gravações ainda anteriores. É mesmo a primeira Amália.

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