Os meses que se seguiram à eleição do Papa Francisco, em março de 2013, deixaram antever, até pelos pequenos gestos simbólicos do novo pontífice, que a Igreja Católica estava a começar um novo período na sua história. Muitos falaram em revolução. Aliás, essa tem mesmo sido a palavra mais usada para descrever o pontificado de Francisco — também devido à incontornável comparação com o predecessor, Bento XVI, rosto de uma Igreja Católica tradicional cujo desaparecimento tem vindo a ser decretado ao longo das últimas décadas.
Em seis anos, praticamente todos os temas quentes estiveram, em algum momento, em cima da mesa, abertos a discussões tidas como impossíveis noutros tempos, como a homossexualidade, o aborto ou a ordenação de mulheres.
Muitos anteciparam uma revolução total na doutrina católica, classificando essas reformas como a adaptação, por fim, da Igreja ao século XXI. Mas nada disso aconteceu. O discurso de Francisco, provavelmente o Papa mais querido de sempre entre os não-católicos, não se refletiu em mudanças doutrinais sobre praticamente nenhum destes assuntos chamados “fraturantes” — nem o Papa alguma vez o quis. As posições da Igreja sobre a homossexualidade, o aborto ou a ordenação das mulheres continuam hoje as mesmas que há dez ou vinte anos.
Após seis anos de Papa Francisco, e perante um certo desencanto de católicos e não-católicos perante a Igreja — muito aprofundado pela crise dos abusos sexuais —, a tal revolução pode agora surgir num momento e num lugar inesperados: o Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia.
Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia começa este domingo no Vaticano
A reunião magna, que está a decorrer no Vaticano, é já a quarta sessão do Sínodo presidida pelo Papa Francisco (após duas assembleias gerais ordinárias, em 2015 sobre a família e em 2018 sobre a juventude, e uma extraordinária, em 2014, também sobre a família), mas pode tornar-se no momento definidor do seu pontificado — e, caso sejam aprovadas algumas das ideias que estão em cima da mesa, da história recente da Igreja Católica. Em certos aspetos, uma revolução comparável à levada a cabo pelo Concílio Vaticano II, que na década de 60 modernizou a Igreja, acabando com as missas em latim e estabelecendo os preceitos pelos quais os católicos se regem hoje em dia.
De uma só vez, está oficialmente em cima da mesa a possibilidade de desafiar dogmas milenares da Igreja, como o celibato dos padres, a ordenação exclusiva de homens e a impossibilidade de adaptar os ritos litúrgicos às diferentes culturas. Ainda que, para já, se restrinja à região da Amazónia (que tem características muito particulares, nomeadamente a grande expressão do catolicismo aliada a uma grande falta de sacerdotes), a aprovação de normas que permitem ordenar homens casados como padres ou atribuir papéis de liderança a mulheres vai abrir um precedente que nunca foi aberto na Igreja Católica.
E isso já está a causar muitas resistências entre os mais conservadores.
O Sínodo e a doutrina
Criado em 1965 pelo Papa Paulo VI no contexto do Concílio Vaticano II, o Sínodo dos Bispos é um dos órgãos mais importantes do governo da Igreja Católica. A assembleia geral ordinária do sínodo é composta por bispos de todo o mundo, escolhidos pelo Papa consoante o tema a que cada encontro é dedicado, e reúne-se em Roma, sempre sob a presidência do Papa, de tempos a tempos (habitualmente de três em três anos, embora esta periodicidade não tenha sido sempre mantida). Entre 1967 e 2018 já houve quinze reuniões ordinárias, a última das quais sobre a juventude, já sob a presidência de Francisco.
Além destas reuniões, podem existir assembleias gerais extraordinárias, convocadas sobre temas específicos pelo Papa; e ainda assembleias especiais. Estas últimas são edições particulares do sínodo, que se debruçam sobre regiões específicas do mundo e na qual participam apenas bispos dessas zonas geográficas, com o objetivo de analisar e dar resposta aos problemas específicos da Igreja nessas regiões. É o caso do atual Sínodo sobre a Região Pan-Amazónica (conhecido apenas como Sínodo da Amazónia). A última destas assembleias havia sido convocada em 2010 pelo Papa Bento XVI, para discutir os problemas da Igreja no Médio Oriente.
Com 6,7 quilómetros quadrados de área, a Amazónia é a casa de perto de 30 milhões de pessoas — das quais cerca de 2,7 milhões pertencem a tribos indígenas, com práticas religiosas ancestrais próprias. Em simultâneo, a Amazónia ocupa partes consideráveis dos territórios do Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana Francesa, Suriname e Guiana, onde a religião maioritária é o Cristianismo, particularmente a Igreja Católica, mas onde escasseiam os padres e bispos e onde as dioceses são tão grandes que não são raras as comunidades católicas que só têm missa uma vez por ano. Aliás, são muitos os relatos de padres e bispos que estão responsáveis por áreas enormes de território de floresta e que para celebrarem missas em algumas das suas comunidades têm de fazer grandes deslocações de barco, que duram dias.
É deste contexto de grande dificuldade de subsistência da Igreja Católica na Amazónia que surge a vontade do Papa Francisco — ele próprio um latino-americano — de organizar uma edição especial do Sínodo sobre aquela região do mundo. A premissa inicial (“Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral”) era precisamente a de perceber como é que a Igreja pode dar resposta aos milhões de católicos que vivem na Amazónia e que não têm acesso aos sacramentos, ao mesmo tempo que busca conciliar-se com as tradições indígenas com as quais convive naquele território único.
Porém, a reunião, convocada em outubro de 2017, tornar-se-ia rapidamente num momento de expectativa face a uma revolução que transcende as fronteiras da Amazónia. Um dos primeiros passos na preparação do encontro, que vai decorrendo agora discretamente em Roma, foi a publicação do Instrumentum Laboris, ou “documento de trabalho”, distribuído a todos os participantes e destinado a apresentar as linhas de discussão a ser seguidas durante o sínodo.
Nesse documento, a secretaria-geral do sínodo debruça-se sobre vários problemas que deverão ocupar as discussões deste mês e propõe alguns caminhos a ser equacionados para os resolver. E foi a partir desse documento que a reunião, inicialmente pensada para dar resposta às dificuldades da evangelização católica na Amazónia, se tornou numa bomba relógio à espera de, potencialmente, dinamitar ideias antigas que até aqui pareciam imutáveis — até mesmo impossíveis de discutir.
A certa altura, no ponto 129 do documento, são deixadas sugestões concretas para a falta de acompanhamento sacerdotal das comunidades católicas, recuperando “aspetos da Igreja primitiva, quando ela respondia a suas necessidades criando os ministérios oportunos”. É logo ali que aparecem duas das propostas mais polémicas:
- “Afirmando que o celibato é uma dádiva para a Igreja, pede-se que, para as áreas mais remotas da região, se estude a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idosas, de preferência indígenas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que já tenham uma família constituída e estável, com a finalidade de assegurar os Sacramentos que acompanhem e sustentem a vida cristã”;
- “Identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido à mulher, tendo em consideração o papel central que hoje ela desempenha na Igreja amazónica”.
Mais à frente, “propõe-se inclusive que às mulheres seja garantida sua liderança, assim como espaços cada vez mais abrangentes e relevantes na área da formação: teologia, catequese, liturgia e escolas de fé e de política”. E ainda: “Também se pede que a voz das mulheres seja ouvida, que elas sejam consultadas e participem nas tomadas de decisões e, deste modo, possam contribuir com sua sensibilidade para a sinodalidade eclesial”.
Sobre este último ponto, não deixa de ser curioso notar que da lista de participantes constam 185 homens e 35 mulheres — e apenas os homens, todos clérigos, chamados “padres sinodais”, têm direito de voto, já que todas as mulheres surgem apenas como convidadas especiais ou especialistas.
Aberta a discussão sobre a possibilidade de ordenar homens casados e de atribuir ministérios específicos às mulheres, a Igreja fica a um passo de acabar com duas das suas maiores e mais históricas proibições. E o Sínodo da Amazónia arrisca-se mesmo a ficar na história, não propriamente por resolver os problemas da Igreja naquela parte do mundo, mas por ter sido o momento de viragem e de verdadeira revolução numa Igreja Católica que pode mudar a forma como se relaciona com o celibato e com o papel das mulheres.
“Heresias e erros teológicos”
Claro que, para já, nada disto é certo. Entre abrir estes temas à discussão e aprovar as novas normas ainda vai uma grande distância. O próprio Papa Francisco já veio dizer, no discurso de abertura do sínodo, que o documento preparatório é um “texto mártir, destinado a ser destruído, porque é um ponto de partida para o que o Espírito Santo vai fazer em nós”. O que é certo é que a mera possibilidade de discutir a ordenação de homens casados e de mulheres já abriu um precedente que está a servir de pretexto à mobilização das forças mais conservadoras da Igreja Católica, que não têm poupado nas palavras para chamar herege ao Papa.
Uma das vozes mais críticas da agenda deste sínodo foi o cardeal alemão Walter Brandmüller — um dos quatro cardeais que, em 2016, assinaram as dubia contra o Papa Francisco a propósito da comunhão dos recasados —, que classificou o documento preparatório do encontro como “herético”.
Num ensaio publicado em junho, Brandmüller faz duras acusações, afirmando que o Instrumentum Laboris representa uma “grave quebra” quer do Papa Francisco quer do colégio dos bispos no que toca ao depositum fidei (o “depósito da fé”, ou o conjunto de toda a doutrina católica produzida ao longo de dois mil anos), que tem como consequência “a auto-destruição da Igreja ou a transformação do Corpus Christi mysticum [Corpo Místico de Cristo, ou a Igreja] numa ONG secular com um mandato ecológico-social-psicológico”.
“Tendo em conta que até o facto da Revelação Divina está aqui a ser questionado, ou mal entendido, temos de falar também de apostasia”, acrescentou o cardeal alemão, sublinhando que o documento “contradiz a doutrina da Igreja vigente em pontos decisivos e, por isso, tem de ser qualificado como herético”.
Quem também se mobilizou contra a agenda do sínodo da Amazónia foi a imprensa católica conservadora, um conjunto de jornais, sites e blogues que funcionam habitualmente como a voz pública da ala mais tradicionalista da Igreja. Dois dias antes do arranque oficial do sínodo, um grupo de leigos conservadores chamado “Voice of the Family” organizou um debate em Roma com o sugestivo título “Our Church — Reformed or Deformed?” [A Nossa Igreja — Reformada ou Deformada?], no qual participaram alguns dos principais críticos do Papa Francisco, incluindo responsáveis editoriais de algumas destas plataformas conservadoras como o LifeSite News ou o Church Militant.
Estes sites, de resto, têm servido de plataforma para a publicação de dezenas de opiniões — muitas vezes com assinaturas de peso — contra o sínodo. Abundam as opiniões com acusações de heresia infiltrada no sínodo e até notícias contra o convite ao ex-secretário-geral da ONU Ban Ki-moon e ao economista norte-americano Jeffrey Sachs para intervirem na reunião, classificando-os como pró-aborto.
A intervenção de maior peso foi a do cardeal conservador norte-americano Raymond Burke, que já há muito ganhou o estatuto de líder da oposição ao Papa Francisco. Burke, conhecido pela sua luta tradicionalista e pela defesa da missa antiga (chegou, inclusivamente, a celebrar missa em latim e de costas para o povo no Santuário de Fátima), juntou-se a outro conhecido tradicionalista, o bispo auxiliar de Astana, Athanasius Schneider, para escrever uma carta de oito páginas a denunciar todas as “heresias e erros teológicos” do sínodo e a pedir uma “cruzada de oração” para impedir que as propostas do documento sejam aprovadas.
Na carta, Burke e Schneider explicam, ponto por ponto, porque é que o documento é herético — e confrontam-no com excertos de documentos da doutrina católica.
“Convidamos todo o clero católico e os leigos a participar numa cruzada de oração e jejum para implorar ao nosso Senhor e Salvador, através da intercessão da Sua Virgem Mãe, pelas seguintes intenções: que os erros teológicos e as heresias inseridas no Instrumentum Laboris não sejam aprovados durante a assembleia sinodal; que particularmente o Papa Francisco, no exercício do ministério petrino, possa confirmar os seus irmãos na fé através de uma rejeição inequívoca dos erros do Instrumentum Laboris e que não consinta na abolição do celibato sacerdotal na Igreja Latina, introduzindo a ordenação de homens casados, os chamados ‘viri probati’, no Santo Sacerdócio”, lê-se na carta assinada pelos dois prelados.
“Os erros teológicos e as heresias, implícitas e explícitas no Instrumentum Laboris da próxima Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazónia, são uma manifestação alarmante da confusão, do erro e da divisão que atormentam a Igreja nos nossos dias”, continua a carta, que detalha as seis heresias do documento: o “panteísmo implícito”; as “superstições pagãs enquanto fontes da Revelação Divina”; o “diálogo intercultural em vez da evangelização”; a “conceção errónea da ordenação sacramental” ao abri-la a mulheres e homens casados; a “ecologia integral que menoriza a dignidade humana”; e por fim um “coletivismo tribunal que mina a singularidade e a liberdade pessoal”.
Perante estas heresias, argumentam Burke e Schneider, “ninguém se pode demitir de estar informado sobre a gravidade da situação e de agir de forma adequada pelo amor a Cristo e à sua vida connosco na Igreja”. Por isso, os dois propõem uma cruzada de 40 dias de oração e jejum. Todos os fiéis que se quiserem associar devem rezar uma dezena do rosário por dia e jejuar (ou seja, tomar apenas uma refeição completa e até duas mais pequenas) um dia por semana. A cruzada começou a 17 de setembro e prolonga-se até ao dia 26 de outubro, penúltimo dia do sínodo.
“Acima de tudo, todos os membros do Corpo Místico de Cristo [a Igreja Católica], perante tal ameaça à sua integridade, devem rezar e jejuar pelo bem eterno dos seus membros, que correm o risco de ficar escandalizados, isto é, conduzidos à confusão, ao erro e à divisão por este texto para o Sínodo dos Bispos”, explicam Burke e Schneider.
Argumentando que o Papa João Paulo II já se pronunciou definitivamente sobre as duas questões mais polémicas — a ordenação de homens casados e a extensão do ministério sacerdotal às mulheres —, Burke e Schneider criticam a ideia expressa no documento de trabalho do sínodo de “costurar à medida os ministérios ordenados aos costumes ancestrais dos povos aborígenes”.
Revolução
É certo que, mesmo que seja aprovada para a região da Amazónia, a existência de padres casados não será completamente nova para a Igreja Católica. Atualmente, por exemplo, um padre anglicano casado que se converta ao catolicismo pode continuar casado e a exercer o ministério sacerdotal enquanto padre católico. Porém, a possibilidade de a própria Igreja Católica latina ordenar homens casados será uma novidade e vai abrir um precedente, colocando em questão o princípio fundamental do celibato dos sacerdotes, que a Igreja tem, historicamente, recusado abandonar.
O mesmo se passa relativamente à questão das mulheres. A decisão final da Igreja Católica sobre a possibilidade de haver mulheres a receberem a ordenação sacerdotal remonta a 1994, a um documento assinado pelo Papa João Paulo II: “Para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos, declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”.
O Papa Francisco fez um primeiro desafio, ainda que cauteloso, a esta decisão definitiva quando instituiu, em 2016, uma comissão teológica destinada a estudar o papel das mulheres na história da Igreja. Na altura, a comissão foi interpretada como um primeiro passo num caminho, que se previa longo, rumo à possibilidade de ordenação sacerdotal de mulheres. Porém, desde então, poucos avanços houve nessa matéria.
O Sínodo da Amazónia traz agora uma nova oportunidade para a discussão do tema. O próprio documento reconhece que as mulheres ocupam, na espiritualidade cristã amazónia, um “papel central” — e que por isso a Igreja deve “identificar o tipo de ministério oficial” que lhe pode ser conferido. Quando o documento, mais à frente, se refere à liderança das mulheres e à possibilidade de participarem nas tomadas de decisão e na “sinodalidade eclesial” — que até agora tem estado reservada aos homens do clero — fica aberta a porta à possibilidade de integrar as mulheres no próprio clero.
Mesmo dentro do Sínodo, estas inovações deverão encontrar resistências. Nos primeiros dias, o tema tinha aparecido apenas ao de leve, e sempre sem que se chegasse a qualquer tipo de conclusão. Se o documento final que emergir do Sínodo no dia 27 não incluir a aprovação de normas para a ordenação de mulheres e de homens casados, ficará na história apenas como mais uma tentativa falhada de dar um passo nessa direção — que muitos dentro da Igreja consideram ser inevitável. Se incluir, esta inesperada reunião sobre a Amazónia poderá representar a maior revolução na Igreja Católica em décadas.