“Então ele não vem?” Na tribuna VIP improvisada do Parque Eduardo VII — onde Marcelo e Moedas assistiam entusiasmados ao Papa a subir a ‘Colina do Encontro’ — já se comentava a ausência de António Costa. O primeiro-ministro chegaria, mas depois de todas as outras entidades e já com o líder da Igreja Católica no palco. Em contraste com um menor interesse do agnóstico Costa — que se limitou a estar nos quatro eventos que o protocolo exigia –, houve momentos em que o Presidente da República chegou três horas antes do previsto e esteve em 13 eventos com o Papa.
Em seis dias de Jornada Mundial da Juventude, Marcelo foi a sombra do Papa, Costa quis manter-se na sombra e enviou para o palco a ministra Ana Catarina Mendes — que foi o rosto de Governo que teve de assistir impávido a uma crítica de um chefe de Estado estrangeiro sobre uma das conquistas da maioria socialista (a legalização da eutanásia). Como representante local, mas de olho num futuro de dimensão nacional, Carlos Moedas mostrou-se à cidade e apresentou-se ao país e impôs-se como principal anfitrião da JMJ.
Luís Montenegro esteve onde podia e foi aos eventos para o qual foi convidado (CCB e Missa do Envio) sem pretexto para ter mais palco. Ainda assim, no dia da missa, conseguiu um momento mais privado com o Papa, a quem ofereceu um presente. Já André Ventura exilou-se na Madeira perante um Chega dividido entre os pró-Igreja e os anti-Francisco. Mariana Mortágua nem apareceu; Paulo Raimundo ocupou o posto institucional que lhe competia (e que o PCP nunca despreza), tal como Rui Rocha, que viu o Papa a criticar duramente alguns dos princípios basilares do liberalismo económico e a atacar o mercado de uma forma que não envergonharia um verdadeiro socialista.
Marcelo, o católico fervoroso, em busca do eleitorado desiludido
Marcelo é um católico militante (“fervoroso”, como o próprio já se definiu) desde os 10 anos e os tempos em que integrava a Juventude Escolar Católica — no início de uma vida com ligação a dezenas de entidades com ligação à Igreja. Além disso, o Presidente é um entusiasta do Papa Francisco (que já tinha recebido como chefe de Estado em 2017) e da própria Jornada Mundial da Juventude, onde até já tinha participado numa das edições, a do Panamá, na expetativa da escolha de Lisboa. Uma fezada que se concretizou e levou o Presidente a um entusiasmo que se transformou em meme: “Esperávamos, desejávamos, conseguimos”.
Por tudo isto, o Presidente queria ser o principal interlocutor do Estado português com o Papa Francisco. Num determinado momento, Marcelo Rebelo de Sousa chegou a temer que António Costa, por razões eleitorais, lhe tentasse roubar o momento. Quando recebeu os partidos em audiência em Belém, o chefe de Estado chegou a partilhar esse receio e dizer que temia que o primeiro-ministro se “colasse” demasiado ao Papa. O que não aconteceu. Marcelo foi o principal protagonista nacional da JMJ.
A JMJ serviu também para cumprir um dos grandes objetivos de Marcelo Rebelo de Sousa no segundo e último mandato (que atinge a sua metade já dia 9 de setembro): reaproximar-se do seu eleitorado origem, a direita e o centro-direita. Aí inclui-se, naturalmente, a direita católica. Algo que, aliás, já tinha feito quando tentou obstaculizar (o mais que podia) a legalização da eutanásia, que disse promulgar por assim estar “obrigado” pela Constituição.
Além disso, há a imagem que o atual Presidente quer deixar na história, como dizia ao Observador um notável social-democrata: “Marcelo sabe que não vai ser o PS a defender o legado dele; o PS vai sempre defender os mandatos de Sampaio e Soares; se há alguém que o vai defender a Presidência dele é o PSD”. Dificilmente qualquer outro evento faria o mesmo pelo legado de Marcelo à direita do que a JMJ.
A euforia em torno da vinda do Papa a Portugal teve outro efeito: comprar uma espécie de armistício sazonal entre Belém e São Belém. Com Costa fora de cena, este foi também um período, como o Observador tinha antecipado, em que o Presidente aproveitou para dar folga ao neo-escrutínio que tem feito, desde maio, ao Governo.
A guerra Marcelo-Costa hiberna, mas acorda antes de setembro acabar
Costa discreto deixou o palco para Ana Catarina Mendes
António Costa só participou em quatro eventos que o protocolo exigia: o encontro do Papa Francisco com Altas Entidades no CCB, um encontro na nunciatura no mesmo dia, o acolhimento no Parque Eduardo VII e a missa do envio (à qual se pode acrescentar ainda o momento de despedida do Papa em Figo Maduro). O protocolo e o desenho original do evento obrigava a estas presenças do chefe de Governo. Costa cumpriu. Nem mais, nem menos do que lhe foi pedido.
Na cerimónia de acolhimento do Papa no Parque Eduardo VII, ao contrário do entusiasmo dos ministros Ana Catarina Mendes, José Luís Carneiro e do secretário de Estado Tiago Antunes — que tentaram saudar o Papa durante a cerimónia — Costa chegou já o evento decorria e saiu após umas breves declarações às televisões. Costa — que até então só tinha divulgado um tweet a informar as prendas que trocou com o Papa — disse apenas que, na conversa na Nunciatura, agradeceu ao líder da Igreja Católica o facto de ter escolhido Lisboa. E pouco mais.
Seis anos antes não tinha sido assim. Após o também breve encontro de 2017, o pequeno resumo que Costa fez na altura mostrava uma conversa mais substantiva: sobre o apoio que Portugal podia dar aos refugiados e a importância do País no desenvolvimento de África e nos contributos que podia dar na UE e na ONU para a paz mundial e para a defesa da dignidade da pessoa humana.
Outro momento em que a falta de interesse do Governo foi notada pela organização foi o facto de, na missa de abertura da Jornada Mundial da Juventude (celebrada pelo patriarca de Lisboa, D.Manuel Clemente e ainda sem o Papa), não estar qualquer membro do Governo.
No dia seguinte, as coisas também não correriam melhor ao Governo e ao PS. No discurso no CCB, o Papa Francisco perguntou aos políticos presentes: “Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar?” E, num aparte que não estava escrito no discurso, ainda fitou a plateia para dizer: “Penso em tantas leis sofisticadas da eutanásia”. Ouviram-se alguns aplausos na sala, mas o Governo gelou e não aplaudiu.
António Costa fez questão de que o rosto do Governo na Jornada fosse a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes. A governante é uma das hipóteses do PS para uma candidatura às eleições europeias e tinha aqui também hipótese de aumentar a sua notoriedade pública para o caso de ser a escolha do partido para as eleições de junho de 2024.
Apesar de ter estado em mais eventos que Costa, Ana Catarina Mendes teve sempre menos protagonismo do que Marcelo Rebelo de Sousa e, por vezes, do que Carlos Moedas. Além disso, muitas vezes foi chamada para falar sobre assuntos mais polémicos como os ajustes diretos ou, no sábado, em entrevista à RTP, sobre as falta de condições do Parque Tejo no lado de Loures (cuja autarquia é socialista). O Governo pagou a fatura (com milhões pagos via secretaria-geral da PCM), mas não se conseguiu impor como principal representante do Estado português, nem como maior anfitrião.
Esta segunda-feira, já com o Papa fora do País, outro momento delicado: António Costa convidou o cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, o Presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023, Américo Aguiar, e a Ana Catarina Mendes, para um almoço de agradecimento pela organização da JMJ. De fora ficaram os autarcas envolvidos na missão, o que, apesar da desvalorização do gabinete de Costa, causou alguma estranheza.
Carlos Moedas e a alegada “reeleição garantida”
Carlos Moedas puxou para si o papel de principal anfitrião da Jornada Mundial da Juventude. E, para isso, contou com duas grandes ajudas: a criatividade da equipa de comunicação (como o momento em que aproveitou o hype do ‘Habemus Pasta’ de Bordalo II para uma resposta à influencer–tiktoker); e com Marcelo Rebelo de Sousa, que se fez acompanhar do presidente da Câmara de Lisboa em todos os momentos em que estiveram juntos. Muitas vezes, no Parque Eduardo VII, ambos combinavam encontrar-se e faziam percursos juntos (como foi exemplo o momento em que serviram de passa-bebés entre o público e o Papa Francisco quando este seguia no Papamóvel).
O presidente da Câmara de Lisboa teve ainda um outro ponto a favor: não houve problemas de maior na organização da cidade. O caos que muitos chegaram a antecipar não aconteceu e o evento foi considerado (como já é habitual em grandes eventos em Portugal) um sucesso. Se houvesse problemas, muitos seriam imputados à autarquia.
Como foi um sucesso, a vitória cola-se à pele do autarca. E Moedas tentou, ao longo dos vários dias, capitalizar isso. Ainda faltavam dois dias para o fim da Jornada e um dirigente do PSD/Lisboa comentava com o Observador: “Está feito. Está garantida a reeleição em 2025″. Em sentido contrário, um dirigente socialista da capital negava as “favas contadas” que os sociais-democratas veem: “Isso queriam eles. Ainda muito água vai correr debaixo da ponte”.
Se Moedas conseguiu vencer na batalha da notoriedade ao Governo (foi solicitado para muito mais entrevistas e filmado/ouvido muito mais vezes do que Ana Catarina Mendes), também se destacou, de longe, dos autarcas dos outros concelhos anfitriões da Jornada. Isaltino Morais, em Oeiras, conseguiu ter uma espécie de Nos Alive de Cristo, com Álvaro Covões no terreno incluído, mas daria mais nas vistas por ter mandado retirar um cartaz sobre os abusos na Igreja (que depois recolocou). Já Ricardo Leão, na breve passagem dos eventos por Loures, teve de ouvir jornalistas a questionarem o Governo do seu partido sobre a falta de condições sanitárias da parte do Parque Tejo do concelho que lidera.
Carlos Moedas ganhou ainda visibilidade a nível nacional que pode ser útil um sonho que alimenta — que publicamente esconde, mas não nega — no pós-Montenegro: passar de Lisboa para a liderança do PSD e do PSD para o país. O conselheiro do PS e guru de António Costa na maioria de 2022, Luís Paixão Martins, não resistiu a interpretar no Twitter um comentário sobre o destaque de Moedas: “Helena Matos, da brigada do Observador, lança a candidatura de Carlos Moedas à liderança do PSD (CNN): Sai politicamente reforçado + Se tiver outras aspirações dentro do seu próprio partido + Quando se pensa num futuro primeiro-ministro + etc.”
Em entrevista ao Observador, precisamente, Moedas manteve o tabu: “Não vou divagar sobre o que é que é o futuro. Luís Montenegro está a fazer um grande trabalho e tem toda a minha ajuda e colaboração para continuar o caminho que está a fazer, que é um caminho de liderança, um caminho bom”, salvaguardou, sem se comprometer sequer com uma eventual recandidatura à Câmara de Lisboa.
Um Chega dividido com um líder que fugiu da JMJ
André Ventura já tinha dito no final de 2020, em entrevista ao Diário de Notícias, que considera que “este Papa tem prestado um mau serviço ao cristianismo”, ao mostrar “a esquerda revolucionária quase como heroica e a esquerda europeia marxista como a normalidade”. Não é, por isso, uma surpresa que o líder do Chega tenha ido para a Madeira fazer campanha durante três dias (que coincidiram com a JMJ) e que tenha falhado a receção oficial ao Papa Francisco. Mesmo sem agenda para este domingo, nem na Missa do Envio, André Ventura quis participar.
O presidente do Chega tem nas fileiras do partido elementos de uma parte da Igreja, mais conservadora, que é muito crítica do Papa Francisco. Tanto o líder do partido como o líder parlamentar foram para a Região Autónoma da Madeira em campanha para as regionais. As boas-vindas de Ventura ao Papa ficaram-se pela partilha de uma imagem da comunicação do partido (que dizia “Bem-vindo Francisco”), ao qual Ventura acrescentava: “Bem-vindo à Terra de Maria”.
Depois disso, o líder do Chega fez duas partilhas durante a semana críticas da JMJ através da rede social X (ex-Twitter): primeiro através de um vídeo onde lamentava os ajustes diretos e outro tweet em que criticava uma garrafa de vinho para o Papa que terá custado 4.300 euros. Só mesmo no último dia — já com a opinião pública largamente concordante sobre sucesso da JMJ — é que Ventura escreveu: “Um mensagem poderosa e revigorante. Que os políticos não esqueçam as palavras do Papa Francisco sobre a vida, a paz e a transparência, agora que termina esta incrível JMJ em Portugal!”
O líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, também criticou o destaque mediático dado às Jornada Mundial da Juventude, dizendo que por causa da presença do Papa no país o “centro do país estava a arder” sem que ninguém o noticiasse.
Em sentido inverso o vice-presidente do Chega Pedro Santos Frazão foi um entusiasta da JMJ e não só esteve no CCB, como partilhou diversas fotografias com peregrinos em vários eventos ao longo dos últimos seis dias. Frazão chegou a escrever no Twitter: “Podem atacar a Igreja, podem caluniar, perseguir ou tentar silenciar os cristãos… mas é Cristo que vive nos corações e percebam é Jesus quem mobiliza o mundo inteiro”. A deputada e ainda responsável da Juventude do Chega, Rita Matias, também esteve no CCB e até era voluntária da JMJ.
Mas se estes deputados do Chega estiveram no CCB a ouvir o Papa (e até a aplaudir, principalmente quando falou da eutanásia), há outros elementos como Ricardo Cardoso, autarca do Chega em Évora e dirigente distrital que comentou esta mesma intervenção do Papa (na parte da Europa “acolher outros povos”), da seguinte forma: “Chama-se a isto um discurso de merda. Sempre os podes levar para o Vaticano”.
Ninguém se está a aperceber, porque as TVs e comunicação social só falam do Papa, mas o centro do país está a arder, o IC8 está cortado, na A13 a visibilidade é reduzida por causa do fumo e estão activos diversos incêndios! Está tudo focado em Lisboa e é o deixa arder!
— Pedro Pinto (@PedroPintoLPC) August 5, 2023
Bloco ausente, PCP e IL institucionais
O Bloco de Esquerda foi o único dos partidos com assento parlamentar que deliberadamente não esteve presente no encontro dos políticos com o Papa no CCB. A postura da nova líder bloquista (Mariana Mortágua) foi a de não fazer comentários críticos sobre a vida do Papa, mas não participar no evento para o qual foi convidada.
O fundador Fernando Rosas não se conteve e, num artigo de opinião no jornal Público, que intitulou de “A agonia do Estado laico“, considerou que “o envolvimento do Estado (Governo e autarquias) no financiamento e organização da Jornada Mundial da Juventude da Igreja católica é, provavelmente, a mais grave violação do princípio constitucional da separação do Estado e das Igrejas desde que foi institucionalizada a democracia”. De uma forma mais discreta e sobre um assunto lateral, a ex-líder bloquista Catarina Martins partilhou um tweet de Carla Castelo, vereadora que tem o apoio do BE em Oeiras, a lamentar a retirada do cartaz dos abusos da Igreja por parte de Isaltino Morais.
Ao contrário do Bloco de Esquerda, o PCP fez-se representar no CCB, através de Paulo Raimundo. Os comunistas portugueses têm feito alguma aproximação à Igreja e, no verão de 2021, chegaram a emitir uma posição conjunta (com “convergência de posições”) sobre a resposta à pandemia e à crise económica e social provocada que se seguiu. O membro do comité central, atual vereador em Lisboa e ex-eurodeputado, João Ferreira, por estes dias, tem lembrado várias reflexões do Papa Francisco como a que está na encíclica Fratelli tutti: “A propriedade privada deve estar sempre subordinada ao destino universal dos bens e ao bem público”.
Na mesma linha, Rui Rocha esteve na receção ao Papa no CCB, acompanhado de Pedro Schuller, que representava os jovens liberais. Há partes dos discursos do Papa Francisco em Portugal que podem inquietar qualquer liberal, como as declarações que fez na Universidade Católica: “A sabedoria que não visa exclusivamente o lucro, mas o cuidado, a convivência, o bem-estar físico e espiritual de todos, bem como a partilha com os pobres e os estrangeiros”; “Abordar os estudos económicos com esta perspetiva é entusiasmante, tendo em vista devolver à economia a dignidade que lhe compete, para que não caia como presa do mercado selvagem e da especulação.”