A revelação de que a Polícia Judiciária teria impedido, em dezembro de 2019, uma transferência de 10 milhões de euros de uma conta do Millennium BCP aberta em nome do general Leopoldino Nascimento, ‘Dino’, sócio de Isabel dos Santos na operadora Unitel, para uma conta russa colocou novamente na agenda a importância do sistema de combate ao branqueamento de capitais que vigora em Portugal. Foi esta transferência para a Rússia congelada em Lisboa que esteve na origem do arresto milionário à empresária decretado em Angola. E que colocou em evidência o sistema de comunicações entre os bancos e a Justiça.
Esta não, aliás, a primeira vez que altos dirigentes angolanos tiveram problemas com as autoridades judiciais portuguesas devido às suas contas bancárias. Já em 2012 e 2013 o Ministério Público tinha sido obrigado a abrir diversos processos administrativos para pedir explicações à própria Isabel dos Santos, à sua meia-irmã Tchizé dos Santos, aos generais Manuel Dias Vieira, ‘Kopelipa’ e Leopoldino Nascimento, ‘Dino’, e também a Manuel Vicente, então vice-presidente de Angola, sobre a origem dos capitais milionários que circulavam pelas respetivas contas.
Afinal, como funciona esse sistema de informação entre a Justiça e as instituições de crédito? Como foi possível suspender temporariamente a transferência de 10 milhões do general ‘Dino’ que depois acabou por ‘atingir Isabel dos Santos? Eis as respostas.
O 11 de setembro e a revolução no combate ao branqueamento de capitais
Com o ataque às Torres Gémeas em 2001, os Estados Unidos impulsionaram uma mudança global no combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. A União Europeia apressou-se a criar diretivas que impunham aos Estados-membros uma cooperação judiciária internacional mais ágil e eficiente e um novo sistema de comunicação entre os bancos e a Justiça de cada país.
Em primeiro lugar, os bancos foram obrigados a aplicar a chamada política “know your customer”. Ou seja, passaram a ter de identificar todos os protagonistas das transações financeiras, independentemente da nacionalidade ou da utilização de sociedades offshore ou de empresas com ações ao portador — o tipo de sociedades que costumam ser utilizadas para esconder a identidade dos beneficiários. Tal como ficaram com o poder de exigir informação aos seus clientes sobre os negócios que estão subjacentes às respetivas transações.
Por outro lado, as instituições financeiras foram igualmente obrigadas a monitorizar as transações dos seus clientes e, mais importante do que isso, a detetar e a comunicar às autoridades judiciais movimentos considerados como suspeitos. Desde a década passada que todos os bancos nacionais têm os chamados departamentos de compliance que existem apenas para aplicar as regras da legislação de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento de terrorismo.
Segundo dados do Relatório de Segurança Interna de 2018, só nesse ano foram instaurados 5.711 procedimentos administrativos devido a comunicações de operações suspeitas com origem no sistema financeiro, tendo sido decretadas 143 suspensões de operações bancárias no valor total de 156,9 milhões de euros.
O que faz a Unidade de Informação Financeira da PJ?
Quem faz a análise dessas comunicações emitidas pelos bancos é a Unidade de Informação Financeira (UIF), um órgão de que muitos portugueses, provavelmente, só ouviram falam em 2014, com a detenção de José Sócrates no âmbito da Operação Marquês e quando se percebeu que o processo contra o antigo primeiro-ministro tinha começado com um relatório sobre uma transferência bancária.
A 7 de fevereiro de 2012, entrou na UIF uma comunicação da Caixa Geral de Depósitos por causa de um cheque depositado sem que se conhecesse o negócio que dera origem à sua emissão. Em causa estavam 600 mil euros que tinham sido sacados da conta que Carlos Santos Silva, o empresário amigo de Sócrates, tinha no Banco Espírito Santo. Depois de depositado na conta de uma empresa chamada Codecity, ligada a Rui Pedro Soares — antigo administrador da PT, próximo de José Sócrates, e agora presidente da SAD do Belenenses —, o cheque deu lugar a outros dois, emitidos no mesmo dia: 196.800 euros para a Belenenses SAD e 370 mil para a Beira Mar SAD.
A UIF desconfiou. Na informação enviada, em março de 2012, ao DCIAP, dizia que a operação “não é de todo transparente” e que “a conta da Codecity foi apenas conta de passagem, não sendo perceptível o que estará subjacente”. Logo depois, outras transferências avultadas, também ligadas a Carlos Santos Silva, motivariam novas informações. E aqui, do outro lado da operação bancária, já estava a mãe de José Sócrates e o próprio ex-primeiro-ministro. As informações da UIF dariam lugar a uma averiguação preventiva na Unidade Nacional de Combate à Corrupção. Seriam também as primeiras páginas do primeiro volume do processo da Operação Marquês, que acabaria a acusar Sócrates — e outros nomes como Ricardo Salgado, Zeinal Bava ou Henrique Granadeiro — por crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
O exemplo retrata bem aquela que é a principal função da UIF. Criada em 2002, foi incluída na estrutura orgânica da Polícia Judiciária em 2008, ainda que tenha um funcionamento autónomo. Segundo a lei, podem fazer parte das equipas da UIF “trabalhadores da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, da Direcção-Geral dos Impostos e de outras autoridades de supervisão ou serviços e estruturas governamentais”.
O seu trabalho tem dois eixos principais: receber e analisar as comunicações dos bancos relativas a operações ou fundos suspeitos de poderem estar relacionados com crimes de branqueamento de capitais ou financiamento de terrorismo; e assegurar a difusão de informação importante sobre tendências atuais deste tipos de crime, principais preocupações, novos métodos ou riscos, por exemplo.
Foi no âmbito da primeira competência que esta unidade recebeu e analisou uma comunicação do BCP, que acabaria por incluir o nome da Polícia Judiciária na sentença do Tribunal Provincial de Luanda que arrestou as contas bancárias e as participações sociais de Isabel dos Santos.
O caso dos 10 milhões do general ‘Dino’ e novo inquérito contra Isabel dos Santos
Em concreto, foi devido ao dever especial de diligência que a lei de branqueamento de capitais impõe a todos os bancos que o Millennium BCP alertou a UIF da Polícia Judiciária em dezembro de 2019 que o seu cliente general ‘Dino’ se preparava para realizar uma transferência de 10 milhões de euros para uma conta de um banco em Moscovo titulada pela Woromin Finance Limited, sociedade alegadamente controlada por Isabel dos Santos. ‘Dino’ não só é sócio de Isabel dos Santos na operadora angolana Unitel, como é um dos grandes aliados militares do ex-presidente José Eduardo Dos Santos, pai de Isabel.
A lei oferece uma grande discricionariedade aos bancos para concluírem que determinada operação pode ser suspeita. Por exemplo, basta o facto de a Woroming nunca ter recebido transferências do general ‘Dino’, e ter contas bancárias num país sinalizado como frágil no combate ao branqueamento de capitais, para fazer soar as campainhas vermelhas do departamento de compliance do Millennium BCP ou de qualquer outro banco português.
Como Angola avançou contra Isabel dos Santos (e atingiu também o pai)
A partir do momento em que a UIF recebeu a informação, analisou os antecedentes do general ‘Dino’ — já anteriormente investigado e denunciado por suspeitas de branqueamento de capitais — e propôs ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) a suspensão da operação bancária.
Foi o procurador Rosário Teixeira, que coordena no DCIAP a relação com a UIF, quem tomou a decisão de abrir um inquérito criminal. A lei estipula que o Ministério Público tem um prazo de seis dias para suspender temporariamente a operação, extrair uma certidão, instaurar um inquérito e apresentá-lo ao juiz de instrução criminal para que este confirme no prazo de dois dias a suspensão da operação suspeita.
De acordo com o Correio da Manhã, terá sido isto que ocorreu em dezembro de 2019. Ou seja, Isabel dos Santos e o general ‘Dino’ deverão ser os visados nesse novo inquérito que o Ministério Público terá aberto na sequência da comunicação do Millennium BCP. O Observador solicitou à Procuradoria-Geral da República a confirmação da abertura dessa investigação mas não recebeu qualquer resposta até à publicação deste trabalho.
Tendo em conta que tudo terá ocorrido na primeira quinzena de dezembro de 2019, é surpreendente no entanto que a Procuradoria-Geral da República (PGR) de Angola tenha tido um conhecimento tão rápido das decisões das autoridades portuguesas. Isto porque a providência cautelar de arresto a Isabel dos Santos interposto pela PGR de Angola no Tribunal Provincial de Luanda foi decidido a 23 de dezembro de 2019, sendo mencionadas nas págs. 5 e 11 as atividades da UIF tomadas poucos dias antes.
A investigação com mais de oito anos contra Isabel dos Santos que ainda perdura
Mas esta não é, como já se disse, a primeira vez que o sistema financeiro alerta a UIF da PJ para transações suspeitas de familiares de José Eduardo dos Santos e de altas figuras políticas angolanas. Entre 2012 e 2013, diversos alertas envolveram transações suspeitas de Isabel dos Santos, da sua meia irmã ‘Tchizé’ dos Santos, de Manuel Vicente (então vice-presidente de Angola e ex-presidente da Sonangol) dos generais Leopoldino Nascimento, ‘Dino’, e Hélder Dias Vieira ‘Kopelipa’ (ex-chefe da Casa Militar de José Eduardo dos Santos) e até do então procurador-geral angolano João Maria de Sousa.
Os procedimentos então seguidos foram exatamente os mesmos aos que detetaram a tentativa de transferência de 10 milhões de euros para a Rússia: os respetivos bancos nacionais envolvidos entenderam que estavam perante transações suspeitas devido à alegada origem ilícita dos fundos e informação a Justiça portuguesa.
Por exemplo, ‘Tchizé’ dos Santos teve de justificar uma transação de 1,2 milhões de euros que tinha recebido em 2008 de uma sociedade offshore chamada Westside Investments, SA. De acordo com a revista Sábado, a filha do então presidente José Eduardo dos Santos terá apresentado um contrato estabelecido com o Governo para a formação e gestão privada dos conteúdos do segundo canal da Televisão Pública de Angola.
Outro caso, noticiado pelo Expresso, relacionava-se com o então procurador-geral João Maria de Sousa que se considerava vexado pelas autoridades judiciais portuguesas por ter de explicar a origem de uma transferência de 70 mil euros da sociedade offshore Spiral Enterprises para uma conta sua no Santander Totta em Portugal. A Spiral estava ligada à importação de produtos de Portugal, sendo que Maria de Sousa seria sócio de uma das sociedades que se dedicavam a essa atividade.
Não foram só transferências bancárias que estiveram em causa. Também a compra de imóveis num empreendimento de luxo no Estoril construído por um fundo imobiliário levou a Comissão de Mercados de Valores Mobiliários a fazer participações ao Ministério Público. Em causa estão as transações relacionadas com a compra de três apartamentos por valores totais de cerca de 5,6 milhões por parte de Manuel Vicente e dos generais ‘Kopelipa’ e ‘Dino’. O processo foi entregue ao procurador Orlando Figueira e acabou arquivado — sendo mais tarde um dos casos que esteve na origem do caso Fizz, que levou à acusação e condenação de Figueira por ter sido alegadamente corrompido por Manuel Vicente para arquivar os mesmos autos.
As nove mentiras de Orlando Figueira — segundo o acórdão da operação Fizz
Todas estas comunicações deram lugar à abertura de procedimentos administrativos para avaliar a origem dos fundos usados, sendo que alguns deles foram transformados em inquéritos criminais. Um deles deriva da queixa de 2013 que o ex-embaixador angolano Adriano Parreira e o jornalista Rafael Marques apresentaram contra Isabel dos Santos e os generais ‘Dino’ e ‘Kopelipa’. Os inquéritos contra estes três ex-responsáveis angolanos continuam abertos e poderão conhecer novo fulgor em breve.