Durante quase um ano de julgamento, o coletivo de juízes escutou atentamente a versão do magistrado do Ministério Público, acusado de ter sido corrompido pelo ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente. Orlando Figueira alegou sempre que abandonou o Ministério Público aliciado por um contrato com uma empresa angolana, de nome Primagest, que lhe pagou, à cabeça, um ano de salários. Contrariando a tese da acusação, confirmou também que pediu um empréstimo ao Banco Privado Atlântico Europa (BPAE), justificando assim uma parte dos 763.429,88  euros que entraram de forma suspeita nas suas contas. O coletivo, presidido por Alfredo Costa, deixou-o sempre falar, mesmo quando se pensava que já tinha dito tudo. No final, acabou por condená-lo a uma pena de prisão efetiva num acórdão arrasador para o seu testemunho: “É demonstrativo que a verdade nem sempre é o caminho por si escolhido”, escreveram.

Nas 537 páginas em que os magistrados resumem as sessões de julgamento, os depoimentos, os testemunhos e as provas que constam no processo, o coletivo afirma mesmo que tanto Figueira como o também arguido e advogado do Estado angolano, Paulo Blanco, tentaram “sem êxito, realce-se, pôr em causa a matéria factual essencial vertida na acusação”. O tribunal, por isso, “não teve quaisquer dúvidas em não atribuir qualquer valor às suas declarações que se apresentam à revelia de toda a prova produzida, e que o tribunal apreciou segundo as regras da experiência comum e da realidade da vida, respeitando sempre os princípios da livre apreciação da prova e presunção de inocência dos arguidos”, lê-se.

Os juízes não tiveram dúvidas que os contratos de trabalho celebrados por Figueira (contrato promessa de trabalho, contrato definitivo e acordo de revogação do contrato de trabalho) “são fictícios, elaborados com o único propósito de justificar o recebimento, por parte do arguido Orlando Figueira, de avultadas quantias que este recebeu para praticar actos contrários às suas funções”. “Há coisas que, por tão evidentes e objetivas, à luz da verdade e da isenção só poderão ter uma perspetiva de entendimento”, acrescentam.

O tribunal deu como provados os crimes de corrupção qualificada, branqueamento, violação do segredo de justiça e falsificação de documento. Orlando Figueira foi condenado a uma pena única de seis anos e oito meses de prisão e proibido de exercer funções na magistratura durante cinco anos. Já Paulo Blanco viu a pena de quatro anos e quatro meses de prisão ser suspensa por igual período, podendo continuar a exercer funções como advogado. O terceiro arguido no processo, Armindo Pires — procurador de Manuel Vicente em Portugal —, foi absolvido de todos os crimes. O Observador resume em nove pontos quais foram as versões do magistrado que não convenceram os juízes e porquê.

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O contrato

Dias antes de enviar ao Conselho Superior de Magistratura um pedido de licença sem vencimento, em dezembro de 2011, Orlando Figueira já tinha trocado vários e-mails com o advogado Paulo Blanco, com a minuta de um contrato de trabalho com uma empresa angolana. Ainda assim, à então diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, onde trabalhava, garantiu que o sítio para onde ia trabalhar não colidia com os interesses dos processos-crime que tinha em mãos, como a própria Cândida Almeida contou em tribunal, como testemunha. Este foi um dos pormenores que o tribunal fixou, sobretudo tendo em conta que a versão de Figueira foi contraditada pelo seu amigo juiz Carlos Alexandre. O magistrado garantiu em tribunal que o amigo lhe contou que iria abandonar a magistratura para trabalhar numa empresa do universo Sonangol. E que ele próprio o avisou de que essa decisão poderia trazer-lhe um problema de conflito de interesses, uma vez que investigava o ex-presidente da petrolífera angola, Manuel Vicente.

Aos juízes, Figueira alegou que viu no “Google” uma ligação da Primagest à Sonangol, mas que, na realidade, este contrato fora celebrado, sim, com o banqueiro luso-angolano Carlos Silva, presidente do BPAE. Uma versão que deixou o tribunal de pé atrás. Mas houve mais. É que esse contrato, assinado com a Primagest, significou um depósito de 210 mil dólares na sua conta numa altura em que tinha acabado de arquivar um dos processos que tinha em mãos contra Vicente. Por outro lado, a versão definitiva desse contrato de trabalho só seria assinada dois anos depois, já Figueira tinha prestado serviço no Millennium BCP e estava no ActivoBank — ambos com participação da Sonangol — desrespeitando a cláusula de exclusividade com os angolanos.

Na versão de Figueira, o valor inicial serviu como pagamento de um ano de remunerações, como garantia para deixar o Ministério Público. O que Figueira não conseguiu explicar ao tribunal, ou o tribunal não entendeu, é como é que os valores que recebeu dois anos depois, na altura em que efetivou o contrato, lhe foram pagos se não tinha prestado qualquer serviço. Não tem “nexo lógico”, lê-se.

“Estranha-se, por contrário às regras da experiência comum, que uma sociedade angolana tenha disponibilizado ao arguido o elevado montante de 210 mil dólares para a prestação de um alegado serviço de consultoria, cuja realização nunca exigiu ao arguido e, como se tal não fosse suficientemente estranho, continuou nos anos seguintes a efetuar pagamentos em numerário e através de transferências bancárias, sem que nunca tenha exigido o cumprimento da prestação devida pelo trabalhador”, lê-se no acórdão.

Tribunal acredita que empresa que contratou Figueira era do ex-vice-presidente angolano, Manuel Vicente (direita)

Os despachos “tecnicamente irrepreensíveis”

O magistrado Orlando Figueira repetiu várias vezes ao longo do julgamento que era um magistrado “exemplar” e que os seus despachos eram “tecnicamente irrepreensíveis”, tanto que a sua superior, Cândida Almeida, concordava sempre com ele. Mas o tribunal não teve o mesmo entendimento.

Figueira foi condenado por ter sido subornado para arquivar dois processos-crime em que Manuel Vicente estava a ser investigado. Num deles, aberto em junho de 2011, investigava-se a compra de várias frações no Estoril Sol Residence, vendidas a grandes personalidades angolanas e russas, entre elas Manuel Vicente. Problema: havia empresas a pagar vários apartamentos, quando os seus beneficiários nem sequer eram os futuros proprietários daquelas casas. Uma das empresas suspeitas era a Portmill, ligada a Vicente. Figueira extraiu uma certidão para o investigar num processo à parte, recebeu documentos justificativos dos 3,31 milhões de euros que ele gastou e arquivou o caso sete dias depois, ordenando que o nome de Manuel Vicente fosse apagado. A funcionária judicial acabaria por cortar o nome do ex-governante com um x-ato. Cândida Almeida, a diretora, lembra-se de ele ter referido que era período eleitoral em Angola e que era urgente tratar do caso. Mas revelou em tribunal não ser comum esta forma de apagar o nome dos investigados do processo.

“Como pode ser sindicável um despacho de arquivamento cujos fundamentos assentam em documentos desentranhados dos autos sem que ali tenha sido deixada qualquer cópia? Como se justifica a separação de processos e o arquivamento precipitado relativamente a um dos denunciados e a manutenção da investigação com realização de diligências normais de investigação em relação aos restantes?”, interrogam os juízes no acórdão conhecido na última sexta-feira.

Já antes, Figueira tinha arquivado um inquérito em que Manuel Vicente era investigado por usar a Portmill para comprar 24% do BESA. Neste caso, Orlando Figueira chegou a mandar uma carta rogatória às autoridades angolanas a pedir informações sobre aquela empresa. Mas sem sequer saber a resposta, e após um requerimento de Paulo Blanco a negar a ligação entre Vicente e a Portmill, o caso acabaria arquivado. Este inquérito seria reaberto, depois de terem surgido novos elementos de prova, e conduzido por outro procurador que substituiu Figueira. Seria arquivado (de novo) já em março de 2013.

Figueira aproveitou este segundo arquivamento como arma de defesa — nada havia a apontar ao seu despacho de arquivamento e por isso o procurador que o sucedeu deu-lhe igual destino. Mas, para os juízes, “não obstante se ter chegado ao mesmo resultado, ou seja, ao arquivamento do processo, a metodologia seguida na investigação diferiu bastante”. O tribunal considerou que o procurador que se seguiu a Figueira esgotou todas as “diligências” a fazer. Enquanto Figueira nem sequer o tinha feito.

“Os factos não examinados e investigados representam um imobilismo da investigação que só pode dar um resultado: o arquivamento”, lê-se.

O tribunal deu como provado que Orlando Figueira, dessa forma, teve “interesse direto em beneficiar o Eng.º Manuel Vicente”.

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Os subornos

Foram 763.429,88 euros que o Ministério Público diz que Orlando Figueira recebeu para se corromper. Em tribunal, Figueira pareceu sempre muito à vontade na explicação que deu aos valores recebidos: 130 mil euros corresponderam a um empréstimo que pediu para pagar as tornas à ex-mulher, na sequência do processo de divórcio; 210 mil dólares (cerca de 185 mil euros) foram um ano de salários adiantados pela Primagest; e os restantes valores, transferidos em 2014 e 2015, correspondiam aos impostos que teve que pagar (com multa) quando declarou o valor recebido às Finanças, e à indemnização por perdas e danos relativos ao incumprimento do contrato de trabalho.

O tribunal, no entanto, não acreditou nas suas justificações. O crédito foi concedido pelo BPAE e entrou na conta de Figueira no dia em que deu despacho positivo a Manuel Vicente, dando-lhe mais dez dias para poder entregar documentação útil à investigação e que justificava de onde vinha o dinheiro com o dia adquiriu um apartamento no Estoril Sol.

Por outro lado, esse crédito bancário foi concedido, nas palavras dos juízes, em “condições anormalmente favoráveis ao arguido”. Isto porque não lhe foram exigidas garantias, quando nem sequer tinha histórico no banco, nem foi constituída qualquer hipoteca sobre a sua casa (a qual até já estava hipotecada). Figueira insistiu sempre que ficou acordado que, caso vendesse a casa, informaria o banco. Mas esta foi mais uma história que não conquistou os magistrados. “Para quem conhece minimamente os princípios que norteiam a atividade bancária, a explicação dada pelo arguido é desprovida de qualquer razoabilidade”. O tribunal considera-se mesmo “surpreendido” por não lhe ter sido exigido nem fiador, nem a contratação de seguros, ou sequer uma livrança.

Para esta conclusão muito contribuiu o testemunho de Graça Proença de Carvalho, filha do advogado Proença de Carvalho, que à data trabalhava no BPAE. “A testemunha acusou algum desconforto quando o tribunal lhe colocou a questão se este tipo de contrato era usual no BPA. Respondeu que não, mas que o Banco tem como função o risco”, recorda o tribunal.

O banqueiro luso-angolano, presidente do Banco Privado Atlântico, é referido várias vezes no acórdão

Figueira chegou a ser avisado pelo banco que tinha de pagar o crédito. E mais que uma vez: em 2016, em janeiro de 2017 e a terceira três meses depois. O arguido usou isso em tribunal para mostrar que, de facto, aqueles 130 mil euros se deveram a um empréstimo por si contraído no banco. Mas, mais um vez, o tribunal não acreditou.

“Questiona-se porquê o envio de duas cartas de interpelação com mais de um ano de intervalo entre as mesmas, sendo certo que na 1ª interpelação, tal como na 2ª interpelação, é dado o prazo de 10 dias sob pena do acionamento dos mecanismos legais para o pagamento coercivo. Como dar credibilidade valorativa a tais cartas enviadas pelo BPAE? Na perspetiva do tribunal, a credibilidade dessas cartas não existe”, concluíram os juízes.

Também não convenceu a explicação que o arguido apresentou ao tribunal para ter declarado às Finanças, só três anos depois, os 210 mil dólares que recebeu como sinal do contrato de trabalho a celebrar com a Primagest. Recorde-se que, apesar de ter recebido esse valor em 2012, o magistrado só o declarou em 2015, corrigindo a declaração que tinha apresentado anteriormente. O arguido alega que, como o contrato nunca se concretizou, aquele valor corresponderia ao pagamento de um sinal de um contrato-promessa que não foi cumprido. Logo, não teria que o declarar. Para os juízes, no entanto, se o procurador considerasse realmente que aquele valor era um sinal e que o contrato não seria cumprido, não o teria formalizado já em 2014. Para o juiz, o procurador só declarou ao Fisco porque soube que estava a ser investigado. “Essa falta de declaração fiscal só poderá significar uma tentativa de ocultação do montante da esfera patrimonial do arguido”.

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As empresas centrais do caso: Portmill e Primagest

São duas empresas fundamentais no caso que ficou com o nome de “Operação Fizz”. Por um lado, a Primagest que contratou Orlando Figueira. Por outro, a Portmill, a empresa que o próprio Figueira investigou, quando estava no Departamento Central de Investigação e Ação Penal, e que pertence a várias figuras angolanas que a terão usado em Portugal para branquear dinheiro.

Por isto, ao longo do julgamento, as defesas tentaram desmontar os verdadeiros detentores destas duas empresas. “Foram sempre duas sociedades colocadas nos dois pratos da mesma balança, com níveis de importância iguais para os arguidos, os quais elegeram nas suas estratégias de defesa a importância de não estabelecerem qualquer sinalagma [relação recíproca] com o engenheiro Manuel Vicente”, lê-se no acórdão.

Os advogados dos arguidos insistiram e mostraram provas que atiravam a Primagest para a esfera de Carlos Silva, o banqueiro luso-angolano que preside o Banco Privado Atlântico Europa (BPAE) — onde Figueira abriu a conta em que recebeu 210 mil dólares e onde conseguiu o tal crédito de 130 mil euros sem apresentar qualquer garantia. Para que as agulhas fossem viradas a Carlos Silva, era também preciso provar que a empresa Portmill não tinha qualquer ligação ao ex-vice-presidente angolano.

Para o tribunal, no entanto, essa tentativa falhou, “não obstante, as dificuldades criadas ao sentido da perceção real dos factos e o esforço argumentativo das defesas dos arguidos Orlando Figueira e Paulo Blanco”.  Não restaram dúvidas ao coletivo de juízes que a Primagest estava na esfera da Sonangol, até porque participou num consórcio liderado pela petrolífera angolana num negócio de aquisição das ações da sociedade Coba. Isto apesar de os arguidos terem referido que essa informação provinha de um comunicado então emitido à comunicação social, em que o nome da Sonangol só ali vinha para dar crédito à operação.

Já quanto à Portmill, os arguidos trouxeram à barra do tribunal outra tese: a Portmill que comprara 24% do BESA não era a mesma que tinha sido usada nos negócios do Estoril Sol. O Ministério Público tinha confundido as duas. O advogado Paulo Blanco referiu mesmo que num dos processos-crime arquivados por Figueira representou Manuel Vicente e no outro a Portmill. E, por mais de uma vez, fez questão de as distinguir: a Portmill – Investimentos e Telecomunicações, SA, que comprou parte do BESA, é uma empresa de direito angolano, então acionista de referência da Unitel; e a Portmill-Limited que está sedeada num país estrangeiro e é acionista da Movicel. A distinção, porém, não fez mudar as ideias dos juízes.

O coletivo concluiu que os cidadãos que detinham a Portmill, referindo-se a Helder Vieira Dias, Manuel Vicente e Leopoldino, foram os mesmos que beneficiaram das transferências da Portmill na aquisição dos tais apartamentos. “Isto é bom de ver que a Portmill Limited, que fez as transferências em causa para a aquisição dos apartamentos do Estoril Sol Residence, tem necessariamente de ter ligação ao engenheiro Manuel Vicente. Ninguém beneficia de transferências pecuniárias dos valores em causa, sem existir um vínculo, por mais ténue que seja. No entender do tribunal esta questão é óbvia, e não enferma de qualquer confusão, até para quem não tem conhecimentos técnicos na área dos crimes económicos – financeiros, o que não é o caso manifesto dos arguidos Orlando Figueira e Paulo Blanco”, argumenta o coletivo.

“Embora formalmente se tratem de duas empresas distintas, materialmente diluem-se quando se trata de estabelecer ligações quanto aos seus beneficiários diretos”, acrescenta à justificação. Mais — diz o tribunal que esta distinção é “uma falsa questão” e que pouco importa “para a sucessão dos factos essenciais”.

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A “postura processual” do arguido

No resumo do acórdão lido na última sexta-feira, ao longo de quatro horas com dois pequenos intervalos, o juiz presidente Alfredo Costa fez questão de sublinhar a “postura processual” do arguido. O juiz lembrou que sua a versão em primeiro interrogatório judicial foi uma, que já depois da abertura de instrução apresentou um memorando ao processo onde apresentou outra e que durante o julgamento “foi sendo alterada de acordo com as circunstâncias”. “Fator de grande relevância, como não poderia deixar de ser, foi a postura processual que o arguido Orlando Figueira assumiu durante todo o seu percurso processual, e que é manifesto, não o favorece”, disse o juiz.

Refere-se no acórdão que, só depois de apresentar o tal memorando, Figueira apontou o dedo a Carlos Silva, como tendo sido ele o responsável pelo contrato que o levou a abandonar o Ministério Público, e ao advogado Proença de Carvalho, a quem acusa de lhe ter pedido para nunca revelar o nome de Carlos Silva, com a promessa de lhe dar trabalho no futuro.

Figueira justificou sempre esta mudança de versão com um “acordo de cavalheiros” que fez com o empresário e com o advogado para nunca referir os seus nomes. “Mas, para o tribunal ficou sempre por esclarecer o que despoletou a mudança de atitude processual do arguido Orlando Figueira. Então, o que foi determinante para mudar a defesa do arguido Orlando Figueira concretamente na altura em que apresenta a sua exposição/memorial, e traz à discussão os nomes e envolvimento dos Drs. Carlos Silva e Proença de Carvalho?”, interrogou o coletivo.

Recorde-se que Carlos Silva e Proença de Carvalho desmentiram, em tribunal, mesmo em acareação, esta tese. Ainda assim, os seus nomes foram sendo referidos ao longo de todo o julgamento. Aliás, a procuradora Leonor Machado, que acompanhou o julgamento, ficou mesmo convencida que ambos teriam tido alguma intervenção neste processo e, já em alegações finais, anunciou mesmo que iria mandar extrair certidões em seu nome para que os dois fossem investigados.

O coletivo, por seu turno, teve outro olhar sobre estas declarações. “Durante o decurso do julgamento, tal questão sempre foi vista pelo tribunal como minimamente estranha, pois se estas personalidades intervieram efetivamente nos contratos em causa, e nos termos em que os arguidos Paulo Blanco e Orlando Figueira explicitam, e não havendo qualquer conduta ilícita por parte destes intervenientes, qual a razão para os Drs. Proença de Carvalho e Carlos Silva não reconhecerem a sua participação nos referidos contratos de trabalho?”, questionam, mais uma vez.

“O tribunal não consegue vislumbrar qualquer tipo de motivação, ou razões, para os Drs. Proença de Carvalho e Carlos Silva esconderem tais factos”.

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Orlando Figueira enviou carta a revogar contrato quando soube que estava a ser investigado

O próprio arguido Orlando Figueira viria a pedir, em abril de 2015, a rescisão do contrato de trabalho que o levou a abandonar a magistratura, por nunca se ter concretizado. Na verdade, Figueira nunca chegou a partir para Luanda e permaneceu em Portugal a trabalhar como advogado e ao serviço primeiro do Millennium BCP, depois para o ActivoBank. Mais uma contradição, na ótica do tribunal, uma vez que numa das intervenções que fez em tribunal, Figueira chegou a afirmar ter feito alguns trabalhos de consultoria para a Primagest.

Por outro lado, para o tribunal, a data em que pediu a revogação do contrato também tem uma explicação. É que Figueira soube que estava a ser investigado através de uma carta que os investigadores enviaram para o ActivoBank, porque desconheciam que o magistrado ali prestava serviço.

Outro ponto curioso é que a rescisão do contrato foi enviada em abril de 2015 para Manuel António Costa, administrador da Primagest, mas, curiosamente, nunca foi referida pelo arguido em tribunal — embora pudesse abonar a seu favor. O tribunal perguntou a Figueira porque nunca falou desse documento, enviado aos juízes pela própria Primagest já depois de o julgamento começar. Figueira referiu que nunca o mencionou porque não tinha ficado com cópia e não tinha provas dele.

“Ora, esta explicação é no mínimo curiosa, estranha e incongruente com as regras da experiência comum. Na verdade, não é curial, mais ainda, no caso do arguido magistrado experiente com vários anos de carreira no Ministério Público, que um documento, como esta missiva, que representa um elemento importante para corroborar a sua versão, nunca tenha sido referido ao tribunal”, escrevem os juízes.

O juiz Carlos Alexandre é amigo de Orlando Figueira e foi uma das testemunha do processo

Os mistérios da conta em Andorra e da agenda pessoal que só explicou depois

O tribunal notou também que a conta que Orlando Figueira tinha em Andorra, que só foi descoberta já depois da sua detenção, na sequência de documentos apreendidos na sua casa em Cascais, nunca sequer foi referida pelo arguido em primeiro interrogatório judicial. No entanto, já em julgamento, foi usada como justificativo dos pagamentos que Figueira diz terem vindo de Carlos Silva, como forma de não pagar impostos sobre ele.

“Isto é um facto de muita relevância, pois um dos objetivos inerentes à abertura de uma conta bancária na Banca Privada d’Andorra é dar prevalência à ocultação de rendimentos, condição sine qua non no que concerne à prática de crimes relacionados com fraude e evasão fiscal, e demais criminalidade económico financeira”, diz o tribunal.

Ainda para mais, lê-se, quando o titular dessa conta é um procurador do Departamento Central de Investigação e Ação Penal que se dedica à investigação da criminalidade económico-financeira “de referência”, nas palavras do próprio. “E melhor que outros sabe que as mudanças de versões apresentadas sobre os factos imputados fragilizam a credibilidade de quem os apresenta”, volta a dizer o tribunal.

Os juízes recordam ainda, para justificar que Figueira não foi claro noutros temas, as sessões de julgamento em que foram lidas as notas pessoais que escrevia numa agenda que lhe foi apreendida. Na altura o magistrado mostrou alguma dificuldade em ler a sua própria ortografia e quando o juiz lhe perguntou quem eram o “Ricky Martin, a Loira e o Meia Branca”, o arguido disse não se recordar. Só noutra sessão, quando Paulo Blanco esclareceu a quem pertenciam estes nomes de código, é que Orlando Figueira teve um rasgo de memória e falou. “O que, manifestamente, também, não lhe foi favorável em termos de credibilidade”, referem.

Figueira teve também algumas dificuldade em reproduzir as suas notas sobre um encontro no Central Park, a 24 de novembro de 2011. O arguido referiu que tal encontro teria ocorrido em Lisboa, quando afinal foi registado em Linda-a-Velha, e não conseguiu explicar porque é que escreveu na agenda sobre um requerimento feito pelo empresário “Álvaro Sobrinho relativo ao processo em que estava a ser investigado, uma Mega fraude ao tesouro angolano”, assim como a sua relação com o arguido Paulo Blanco: “Dizem que estou feito com ele e com o estado angolano”.

“Expressões com manifesto interesse para o objeto do processo, e que foram produzidas pelo próprio punho do arguido Orlando Figueira”, volta a insistir o coletivo. Só numa outra sessão de julgamento, o arguido acabaria por pedir a palavra e explicar que o encontro no Central Park foi com o juiz Carlos Alexandre que lhe passou informações que corriam na PJ sobre ele. Falou também  nos nomes de código.

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A relação com Paulo Blanco

Nos corredores do Campus e Justiça, antes, depois e nos intervalos das sessões, era normal ver os arguidos Orlando Figueira e Paulo Blanco a trocarem palavras um com o outro, mas perante o coletivo de juízes ambos tentaram afastar a tese de que mantinham uma relação próxima.

O Ministério Público referia na acusação que Paulo Blanco circulava com grande à vontade nos corredores do DCIAP e que era frequente passar algum tempo no escritório do magistrado Orlando Figueira. Mesmo nas buscas ao seu escritório, em Entrecampos, foram encontrados documentos do DCIAP sem assinaturas ou carimbos. Em tribunal ambos justificaram que a circulação de advogados nos corredores do DCIAP era normal, desvalorizando qualquer intimidade.

Mais uma vez o tribunal não ficou convencido. No acórdão, o coletivo lembra que Orlando Figueira teve em mãos vários processos relacionados com capitais angolanos e em que Paulo Blanco ora intervinha como representante do estado angolano, ora intervinha como representante dos denunciados. E Figueira “sufragava integralmente todos os requerimentos do arguido Paulo Blanco”. “A situação, por si só, não é relevante do ponto de vista processual, mas no que tange à globalidade dos factos ora em discussão é deveras muito relevante, como é manifesto.

Para formar a sua convicção, o coletivo lembra um e-mail enviado a 4 de fevereiro de 2012, que tinha como assunto “transferência recebida do estrangeiro”, em que Blanco convida Figueira a pernoitar na sua casa de campo. “É elucidativo da relação de amizade e proximidade que ambos os arguidos mantinham”. O testemunho da mulher de Paulo Blanco, a advogada Cristina Portela Duarte, também viria a corroborar esta intimidade entre ambos, quando disse que era frequente o magistrado frequentar a sua casa. Num outro e-mail, desta vez trocado com o então Procurador Geral angolano, João Maria de Sousa, de quem Blanco era próximo, o advogado refere mais um processo que calhou nas mãos de Figueira, pelo que garante: “um rápido andamento da investigação aqui em Portugal, atento o relacionamento existente connosco”.

“Assim, a versão dos arguidos Orlando Figueira e Paulo Blanco no sentido de que a relação entre ambos era estritamente profissional não tem qualquer cabimento, nem suporte fáctico, antes pelo contrário”, escrevem os juízes.

O arguido e advogado Paulo Blanco também foi condenado, mas com pena suspensa

Ligação Carlos Silva / Manuel Vicente

Durante o julgamento, os arguidos também tentaram convencer o coletivo que quem contratou Figueira foi Carlos Silva, e não Manuel Vicente. O próprio foi chamado a depor em tribunal, afastando qualquer ligação próxima do ex-vice-Presidente angolano. Mas para o tribunal a ligação entre ambos é clara e o nome do banqueiro luso-angolano é várias vezes referido ao longo da decisão.

Para dar um exemplo dessa ligação, o tribunal refere um e-mail que Paulo Blanco enviou a Carlos Silva dando conta que as declarações de rendimentos enviadas aos processos-crime a correrem em Portugal eram “confidenciais”. “Ora, é manifesto que tal informação só poderia interessar ao Eng.ºManuel Vicente”, diz o tribunal, que acredita que aquela informação era para ser entregue ao próprio ex-governante. “Não existem dúvidas para o tribunal que existe ligação entre o Dr. Carlos Silva e o Eng.º Manuel Vicente”, consideram.

O tribunal também desvalorizou uma carta enviada pela Sonangol ao processo, em que recusar qualquer ligação à Primagest e um documento que consta no processo com a inscrição das empresas participados pela Sonangol — em que não consta a Primagest “O tribunal acabou por formar uma convicção forte, fundamentada em todos os elementos probatórios de valor diferenciado, de diversa documentação junta aos autos”, explicam os juízes.

Quanto aos documentos, os juízes dizem: “valem o que valem e não são corroborados com a vária e vasta documentação e troca de emails juntos aos autos, no que concerne à aquisição da sociedade COBA”.