António Costa anda pela primeira vez pelos corredores do 11.º piso do edifício Europa em Bruxelas, onde, pelo menos nos próximos dois anos e meio, vai conduzir o Conselho Europeu. Espreita pelas portas coloridas abertas para cumprimentar funcionários que, entre caixotes, por ali se instalam, também pela primeira vez, na manhã de segunda-feira. Por estes dias ainda vai ficar num gabinete provisório do piso, já que Charles Michel só agora desocupou o principal — uma enorme sala envidraçada com uma vista impressionante sobre a cidade. A sala está em obras para reconstruir uma parede que a dividia e que o anterior presidente tirou para ter mais espaço. Será a única barreira que Costa admite reerguer no bairro europeu.
Charles Michel sai com fama de incapacidade de gerir a relação com a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, e também em gerir o grupo de líderes europeus. António Costa parece apostado em aproveitar todos os atritos passados a seu favor, marcando as diferenças em relação ao antecessor. Nestes primeiros dias deixou um sem número de sinais de rutura com os métodos do seu antecessor e, em entrevista ao Observador, mesmo tendo fugido de polémicas com o belga, defendeu uma ação “coordenada” entre Conselho, Comissão e Parlamento. “Se é novo, mais vale tarde do que nunca”, foi dizendo o socialista.
Nos imensos corredores de Bruxelas comenta-se que a fasquia está tão baixa que não será preciso muito para o socialista português deixar uma imagem melhor do que a de Charles Michel. Mas Costa também conhece o histórico de tensões na coabitação Conselho/Comissão, por isso procurou antecipar as curvas da futura convivência e aconselhou-se com alguns dos que passaram pelos cargos no passado. Nos 15 anos em que a função existe (o cargo de presidente do Conselho só foi criado em 2009) já encheu várias páginas de episódios de tensão — que o digam não só Ursula von der Leyn e Charles Michel, mas também Donald Tusk e Jean-Clude Juncker.
A coabitação com a “rainha da Europa”
Ursula já tem a alcunha, em tom depreciativo, de “rainha da Europa”, tendo em conta o poder efetivo (e não só) que tem acumulado ao longo dos últimos quatro anos. Tem o poder executivo, o campo em que António Costa se moveu sempre nos últimos trinta anos em Portugal e que o levou a recusar tantas vezes o ser lançado como possível candidato a cargos mais limitados à simples representação política — como o de Presidente da República. Agora terá forçosamente de limitar a sua ação política e pública a este plano não-executivo.
A culpa de desacertos e sobreposições é sobretudo apontada à divisão de um tema de peso e central na União Europeia de hoje: a política externa e a segurança comum (a PESC). É uma área do Conselho Europeu (já que tem de passar pelos líderes dos 27, com quem António Costa tem a missão de negociar), mas cruza com a Comissão em alguns pontos, como o Comércio — e o mandato do novo presidente do Conselho Europeu e da renovada Comissão começará precisamente com todos estes assuntos em cima da mesa ao mesmo tempo, com a guerra na Ucrânia e a ameaça de uma guerra comercial por parte de Donald Trump.
Mas a verdade é que a história tem mostrado que nem é preciso chegar à substância orgânica da PESC para os problemas aparecerem entre estes dois top jobs da UE. No caso da dupla Ursula/Michel tudo ferveu no sofagate, na Turquia, com a presidente da Comissão relegada para um sofá lateral durante uma reunião ao mais alto nível em que Michel e Erdogan se sentaram nas cadeiras principais. do centro da sala.
Na era do duo Tusk/Juncker (entre 2014 e 2019) foram vários os desacertos, sendo o mais público e notório sobre o spitzenkandidat (o processo de escolha do Presidente da Comissão Europeia, em que cada família política do Parlamento Europeu apresenta o seu escolhido antes das Europeias).
Estas tensões nunca ficam só pelo topo, normalmente seguem pela estrutura das duas instituições abaixo, com os funcionários de cada um dos lados da Rue de La Loi (a sede da Comissão fica à frente da sede do Conselho) a espelharem o que vem de cima. Assim, depois dos últimos cinco anos, Costa tem agora pela frente, como primeira tarefa, desminar este território.
O pastel de nata da cantina e as expectativas nacionais no bairro europeu
Conhece bem a lógica dos salões (nos últimos 30 anos frequentou-os na política lisboeta), mas também a importância de trabalhar as salas que os rodeiam. É o segundo dia como presidente do Conselho Europeu, mas é o primeiro no novo edifício, já que no seu primeiro dia oficial no cargo quis marcar presença em Kiev, na Ucrânia. O avião fretado pelo Conselho que o trouxe da Polónia (fez a ligação à capital ucraniana, durante a noite de comboio) tinha aterrado pelas dez da manhã em Bruxelas e pouco depois do meio dia o português, de mochila às costas por cima do blazer verde, entrava no edifício pela primeira vez como presidente.
Fala sobretudo em francês com os funcionários mais diretos. É assim, por exemplo, com a sua porta-voz, que é polaca. É a língua onde se sente mais confortável. Mas no 11.º piso fala-se muito português, já que o presidente pôde escolher um determinado número de compatriotas para trabalharem consigo — há um limite para evitar excessos e a obrigação de ter um determinado número de nacionalidades no gabinete. Um complexo puzzle que foi preciso compor desde o núcleo duro de aconselhamento e o gabinete de comunicação até ao secretariado e equipa de seguranças.
No edifício Europa, o português tem a trabalhar consigo, no núcleo duro da equipa, Pedro Lourtie, que nos últimos dois anos foi embaixador da Representação portuguesa (REPER) em Bruxelas e passou agora a chefe de gabinete do presidente do CE. O adjunto de Lourtie é David Oppenheimer, que foi assessor diplomático de António Costa como primeiro-ministro.
O comentador e investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, Bernardo Pires de Lima, seguiu diretamente do Palácio de Belém, onde encerrou funções como assessor político de Marcelo Rebelo de Sousa na quinta-feira para se apresentar ao serviço em Bruxelas no dia seguinte. Será conselheiro e speechwriter de António Costa. Luís Rêgo, durante anos jornalista correspondente em Bruxelas, é agora o conselheiro para a economia, depois de ter sido porta-voz de Mário Centeno quando este foi presidente do Eurogrupo e, nos últimos anos, quadro da REPER. A secretária pessoal também é portuguesa, bem como o responsável das redes sociais e três polícias do corpo de segurança pessoal.
Já é final da manhã e António Costa passa pela sala, também provisória, de Lourtie e Openheimer e desafia-os para almoçar. “O pequeno-almoço do avião já está digerido“, avisa. Quer ir à cantina e ainda hesita a qual das duas. A do edifício do lado, o Justus Lipsius que é sede do Conselho da União Europeia e tem janelas, ou a que ainda não experimentou, nos pisos inferiores do edifício Europa, que é mais fechada. Quando já está dentro do elevador muda de ideias: “On va là-bas“, diz ao segurança. Acaba por experimentar a que não conhece e mal entra a primeira coisa que tira para o tabuleiro é um pastel de nata, que toma como uma cortesia para si mesmo, o português que está agora no topo — o Observador apurou depois que é comum haver pasteis na cantina.
Quando escolhe o prato ouve logo um “bem vindo” do outro lado. O funcionário é brasileiro e atende-o na língua materna. Durante o tempo que está no refeitório vai acenando para todos os cantos de onde vêm cumprimentos. Nos últimos meses — está em Bruxelas desde setembro — tem usado frequentemente a outra cantina. Isso mesmo já tinha sido contado ao Observador por um grupo de funcionárias portuguesas que, no dia da passagem de testemunho entre Charles Michel e António Costa, recordaram como se surpreenderam na primeira vez que o viram e, na brincadeira, o desafiaram para o típico cafézinho pós-refeição. “E ele apareceu mesmo na cafetaria”, comentou uma das funcionárias.
Na sexta-feira, dia em que Costa discursou no átrio principal do edifício ao lado daquele em que agora está a instalar-se, ouviu-se o cântico mais próprio dos estádios de futebol “Portugal, allez” vindo de um grupo que levou para a cerimónia a bandeira de Portugal — que ficaram muito depois, depois da cerimónia, para cumprimentar Costa e tirar selfies com o novo presidente. Em conversa com o Observador, vários funcionários portugueses falaram do “orgulho” em ter ali um compatriota, mas há também a esperança de que isso possa ajudar a contrariar a tendência de queda de funcionários portugueses por ali — é um problema que se tem avolumado nos últimos anos com a reforma de quem entrou em 86, altura da adesão do país à então CEE.
“A representação portuguesa está a precisar de mais exposição política“, afirma António Lopes um dos portugueses a trabalhar no Conselho. “É preciso funcionários portugueses, a maior parte já está na reforma“, acrescenta uma outra funcionária que prefere não ser identificada. É ainda do tempo de Costa à frente do Governo a Estratégia Nacional para as Carreiras Europeias que pretendia mudar esse quadro, mas foi criada apenas no fim de 2022.
Namoro pré-cimeiras: cartas nas 24 línguas oficiais e telefonemas individualizados
O edifício envidraçado projetado pelo arquiteto belga Philippe Samyn tem o famoso ovo gigante no meio. Na verdade é uma lâmpada, mas já ninguém o livra da fama. Seja como for, é lá no centro que se reúnem os líderes europeus à procura de uma luz consensual para avançar com conclusões. António Costa esteve lá nos últimos oito anos como primeiro-ministro de Portugal, agora a função será outra, ao comando da gigante mesa redonda.
A primeira reunião do novo presidente está marcada para dia 19 deste mês e será o fecho do ciclo de apresentações. E também de marcação de diferenças face a passado. Os últimos meses têm sido passados precisamente nestas missões. Desde setembro, Costa já se com 25 presidentes e líderes de Governo dos estados-membros (só faltou Bulgária e Roménia que estavam com situação política instável na altura). Nos últimos dias enviou cartas personalizadas com os objetivos e prioridades do mandato, conversadas nas reuniões que teve até aqui nas várias capitais, nas 24 línguas oficiais que existem no Conselho.
Quanto à relação com os líderes, o objetivo da equipa que entra agora é estreitar laços e desbravar terreno em privado, ao mais alto nível nas vésperas das reuniões. António Costa já fez saber que vai promover retiros para que os temas possam ser debatidos entre líderes sem a pressão de se se ter de chegar a uma conclusão, como nas reuniões do Conselho. Mas também quer falar com cada um individualmente nos dias antes de cada uma das reuniões.
O modelo de telefonemas em conferência com vários líderes escolhidos sem ordem, tantas vezes seguido pelo seu antecessor, está posto de parte. Os métodos de Charles Michel foram sempre alvo de algumas críticas internamente — até muito diretamente por líderes, a dado momento — e a intenção do ex-primeiro-ministro português passa por telefonemas diretos e individuais com cada um para evitar desperdício de tempo com questões paralelas entre Estados-membros, por exemplo, durante as cimeiras. O objetivo é que possam concentrar-se sobretudo em deixar uma mensagem política clara para fora.
A experiência negocial de António Costa é conhecida — e comentada nos corredores de Bruxelas — pelas várias funções que desempenhou em Portugal sobretudo entre 2015 e 2019, o período em que funcionou a “geringonça” e em que percebeu, logo na sua fundação, que a única forma de conseguir manter viva a periclitante estrutura em que apoiou o seu primeiro Governo era através de reuniões bilaterais.
O socialista reunia-se à vez com cada um dos parceiros, ainda que o acordo fosse a quatro — a recusa do PCP em sentar-se à mesma mesa que o Bloco de Esquerda não lhe deu outra saída e talvez não tinha sido totalmente prejudicial. Curiosamente, é agora comum encontrar-se em Bruxelas com duas figuras centrais desses tempos: os únicos eurodeputados eleitos nas últimas europeias pelos dois partidos, João Oliveira e Catarina Martins.
Os interlocutores a coordenar são agora muitos mais e com interesses ainda mais diversos — onde se cruzam, ao mesmo tempo, famílias políticas diferentes e também a pressão das questões internas e sensibilidades entre vizinhos. Na última sexta-feira, atrás da sua secretária, no gabinete ensolarado (um dia raro na cinzenta Bruxelas), ainda do sétimo piso do edifício Justus Lipsius, Costa apontava a planificação do ano ali toda exposta num quadro na parede. Nos próximos seis meses não há nenhum dia que não tenha várias anotações. A cor de rosa fluorescente estão os dias em que há encontros com líderes, caso da reunião do dia 19, ou do encontro sobre a Defesa, onde participarão o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, e o secretário-geral da NATO, Mark Rutte, em fevereiro.
Os temas de arranque não são leves. O bloco de líderes vai ter de encontrar uma resposta comum à animosidade com a União por parte de Donald Trump — com quem o gabinete de Costa já pediu uma primeira reunião que quer que aconteça ainda antes da tomada de posse nos Estados Unidos, em janeiro. Mas também há o reforço dos apoios à Ucrânia na agenda, onde António Costa vai já dizendo, em tom de aviso (e quando se lhe fala da oposição de Viktor Órban nesta matéria) que desde o início da guerra foi possível chegar acordo e que não há razões para ser diferente agora. Isto além do orçamento plurianual que há para negociar.
Kiev com companhia escolhida a dedo para se diferenciar do passado conturbado
Com Ursula von der Leyen já fez saber que quer reunir-se a cada 15 dias, e com a líder do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, promete encontrar-se depois de cada debate parlamentar de antecipação do Conselho para conhecer as conclusões (não tem de estar presente durante o debate, em que se fará representar pelo seu chefe de gabinete, Pedro Lourtie.
Quer igual proximidade com Kaja Kallas, a Alta Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança. Este domingo, primeiro dia em funções, levou-a mesmo consigo na visita que fez à Ucrânia — bem como à comissária do Alargamento da União Europeia aos países dos Balcãs Ocidentais, Ucrânia e Moldova.
Partiram ao fim do dia de sábado, seguiram via fronteira com a Polónia de comboio até Kiev onde chegaram de manhã. Logo nesse primeiro acto oficial, Costa quis dar um sinal de entrosamento entre as partes na sensível (pela sobreposição de funções entre Conselho e Comissão) PESC. Logo na estação de comboio, à chegada, registou uma fotografia dos três juntos que partilhou nas redes sociais a anunciar a visita preparada de forma confidencial por motivos de segurança.
A companhia foi escolhida a dedo. “Acho que ontem [sábado, dia 30] em Kiev demos uma excelente demonstração do que é trabalharmos em conjunto, porque pela primeira vez o Presidente do Conselho Europeu viajou com a Alta Representante, com a comissária para o Alargamento, e fizemos uma visita conjunta a um país candidato, para reafirmar o apoio incondicional da União Europeia em todas as dimensões”, descreveu em entrevista ao Observador, confirmando as intenções.
Uma oportunidade chamada Charles Michel (que Costa tem explorado)
Nos primeiros dias, Costa mostrou-se atento a a esses detalhes, aproveitando cada um. Foi o que aconteceu logo no dia da passagem de testemunho. A coreografia do início da tarde de sexta-feira estava preparada ao detalhe. Às 13h55 de Bruxelas, o novo presidente do Conselho Europeu apertaria a mão ao que está de saída, Charles Michel. Cinco minutos depois, Ursula von der Leyen tinha de levantar-se do pequeno sofá onde aguardava para se dirigir ao ponto combinado, junto ao prémio Nobel, no edifício-sede do Conselho da União Europeia, sem ter de ficar em pé, no meio de um corredor, à espera. Mas acabou mesmo por ficar. Charles Michel atrasou-se.
O aperto de mão gélido que os dois deram, quase sem se olharem de frente, não poderia ter contrastado mais com o abraço demorado que se seguiu entre Costa e Ursula. E o episódio de sexta deixou quem conhece os anos de coabitação Ursula/Michel com suspeitas sobre a intencionalidade do atraso do presidente de saída.
O próprio Charles Michel também não fez questão, nem na hora da despedida, de mostrar outra coisa que não fosse um corte em relação a von der Leyen. Não a referiu uma única vez na breve intervenção que fez (ao contrário de António Costa) e, antes de abandonar a cerimónia, quando desafiado a ir despedir-se da presidente da Comissão — que estava entre as dezenas de funcionários que assistiam no átrio do edifício Justus Lipsius —, não quis ir (também ao contrário de Costa).
É o fecho de um relacionamento conturbado e o nascimento de outro que jura vir a ter uma coabitação mais salutar — embora ainda esteja por fazer a prova de que a responsabilidade única da tensão dos últimos anos fosse exclusivamente de Michel. A superpoderosa Ursula von der Leyen não tem passado ao lado de críticas e acusações de controladora.
Enquanto não tira isso a limpo, Costa vai-se fiando na proximidade política e pessoal que construíram, seguindo apostado em dar alguns sinais, sendo o de paz entre as duas partes o primeiro deles. Nessa sexta-feira, sabendo que ali estavam sobretudo funcionários do secretariado-geral do Conselho, repetiu o abraço privado a Ursula à frente de todos — enquanto Michel se esquivava para trás do palco. “Vamos trabalhar em equipa”, jurou a nova parelha, de cabeças juntas, à procura de impacto não só deste lado da rua, mas também do lado de lá, no edifício Berlaymont, onde está instalada a Comissão Europeia.
O último, foi um dos poucos fins de semana em que não foi a Lisboa, coisa que tem feito até aqui e tenciona continuar a fazer sempre que for possível (dois dias antes de se estrear no cargo, estreou-se como avô). Vive a uns 15 minutos (sem trânsito) de carro do bairro europeu. Não quis ficar a viver junto à praça Schuman, onde se concentram as instituições europeias, como fazem muitos dos funcionários, para não passar o tempo apenas nesse circuito.
Preferiu repetir o que fez nos oito meses em que foi eurodeputado (entre 2004 e 2005, quando assumiu a pasta de ministro da Administração Interna no Governo de Sócrates) e estabeleceu-se no bairro de Ixelles, na zona de Châtelain, uma das mais selectas da cidade. Não é uma impossibilidade vê-lo a passear de cachecol e luvas pelas ruas, enfiando num casaco comprido, sem grande aparato e com sacos de compras na mão. Quando alguém o reconhece é sempre português. De resto, passa totalmente despercebido. Resta saber se é assim, sem chamar os holofotes europeus, que pretende continuar.