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Era um homem pacato que trabalhava num pequeno hotel na Suíça. Como tantos portugueses, tinha emigrado para terras helvéticas com a sua mulher em busca de melhores condições de vida. Trabalhador e atento a novas oportunidades, Paulo Murta — assim se chama o nosso protagonista — conheceu no final dos anos 90 um suíço chamado Michel Joseph Ostertag, um financeiro da confiança de Ricardo Salgado. Quase sem dar por isso, Murta tinha nas mãos um convite para ir trabalhar na Gestar, uma sociedade de gestão de fortunas do Grupo Espírito Santo (GES). Não olhou para trás e entrou no mundo da alta finança. Algo que mudaria a sua vida para sempre.
Avancemos um pouco mais de 10 anos. Paulo Murta já vive no Dubai, é o braço direito de Michel Ostertag na ICG Wealth Management, uma sociedade semelhante à Gestar, e passa a vida entre os Emirados Árabes Unidos e a Suíça. Pelo meio, faz algo que lhe desagrada de sobremaneira: viaja inúmeras vezes para Caracas, a capital da Venezuela. Para quê? Para tratar diretamente com os verdadeiros titulares das estruturas (leia-se sociedades offshore) que Ostertag, o ‘fininho’ como era conhecido entre a família Espírito Santo, criava para os clientes venezuelanos que Ricardo Salgado escolheu para o ajudarem, na fase de puro desespero na salvação do GES. Muitos desses clientes não só eram membros dos Governos de Hugo Chávez e do seu sucessor Nicolas Maduro como faziam parte da elite política e económica da Venezuela — um país onde as duas esferas tinham sido alvo de fusão com o patrocínio da revolução bolivariana.
O papel de Paulo Murta era recolher assinaturas para a documentação de criação das sociedades offshore, assim como para as transferências bancárias entre diferentes instituições financeiras — como as do GES e de outros grupos bancários europeus — que criariam um pequeno carrossel financeiro entre o Dubai, a Suíça, a Madeira e o Texas, nos Estados Unidos. Praticamente todos os clientes de Murta escolhiam familiares como testas-de-ferro das sociedades sediadas em paraísos fiscais, para ocultarem o verdadeiro proprietário. Estávamos em 2012. A Venezuela estava longe da crise económica e humana dramática em que está hoje mergulhada e o GES era, à primeira vista, uma rocha financeira — sólida e segura. Contudo, todo o cuidado era pouco, apesar da crença de que todas aquelas empresas e transferências seriam secretas para sempre.
Mas, como esta história revela, não só a crença estava errada, como é difícil guardar segredos quando as justiças de Portugal, Espanha e Estados Unidos cooperam de forma eficiente. Como tem acontecido no envolvimento de Ricardo Salgado e do GES no alegado desvio de mais de 3,5 mil milhões de euros da empresa Petróleos da Venezuela, que o Observador noticiou em exclusivo. Pelo meio, há malas de dinheiro a partirem de Caracas com centenas de milhares de dólares para financiar em Buenos Aires a campanha da futura presidente Cristina Kirchner e a prisão preventiva dos alegados principais cabecilhas venezuelanos nos Estados Unidos e em Espanha. Em Portugal, depois do fim da prisão domiciliária de João Alexandre Silva (ex-diretor do BES Madeira) ninguém está detido. Nem a acusação do processo Universo Espírito Santo estará terminada antes do final de 2019.
Salgado e BES envolvidos em esquema de corrupção de 3,5 mil milhões de euros na Venezuela
Os fundamentos para o crime de associação criminosa
As autoridades norte-americanas e espanholas não só ajudaram a equipa do procurador José Ranito, titular do inquérito Universo Espírito Santo, a identificar os beneficiários venezuelanos que receberam somas avultadas da sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso saco azul do GES, como deram informação essencial para reconstruir o alegado esquema de corrupção e branqueamento que tem a Venezuela como centro da ação.
Pior: Ricardo Salgado passou a ser suspeito da alegada prática do crime de associação criminosa.
Quem o diz é o procurador José Ranito que constituiu Paulo Murta como arguido em dezembro de 2017, tendo voltado a interrogá-lo em setembro de 2018. Tido por Ranito como um dos principais operacionais do alegado esquema de corrupção do BES na Venezuela, Murta foi constituído arguido pelo crime de associação criminosa por uma prática continuada e duradoura de alegado branqueamento de capitais como forma de apoio a alegados crimes de corrupção de políticos e funcionários públicos venezuelanos. Tudo com base numa alegada cadeia de comando que seria liderada por Ricardo Salgado — sendo que a organização, alegadamente o BES, estava dispersa por várias jurisdições internacionais para facilitação do alegado plano criminoso.
Paulo Murta, por exemplo, é suspeito da alegada prática de 14 crimes de branqueamento do produto de corrupção no comércio internacional, sendo que onze deles terão por base alegados atos de corrupção com prejuízo no comércio internacional que alegadamente terão sido decididos por Ricardo Salgado e de inúmeros alegados crimes de falsificação de documento.
O Observador enviou um conjunto de perguntas a Paulo Murta mas o seu advogado, Henrique Salinas, recusou responder, invocando o segredo de justiça. “Os factos sobre os quais são pretendidos os esclarecimentos estão, todos eles, abrangidos pelo segredo de justiça relativo a processo pendente, pelo que a prestação de esclarecimentos ou a publicação dos mesmos traduz a prática do crime de violação de justiça”, justificou.
As mesmas questões foram enviadas a Ricardo Salgado que, através do seu porta-voz, afirmou que “não comenta inquéritos em curso.”
Como o Observador já tinha noticiado, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) tem na sua posse uma lista de 30 sociedades offshore alegadamente criadas por Michel Ostertag que pertencem a Pessoas Politicamente Expostas (PEP) venezuelanas — um conceito da legislação europeia contra o branqueamento de capitais que, em parte, se refere a todo e qualquer responsável público ou político e aos seus familiares mais diretos. As 30 sociedades offshore tinham todas contas no Espírito Santo (ES) Bankers Dubai — e, algumas delas, no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça — e receberam pagamentos regulares da ES Enterprises, alegadamente a mando de Ricardo Salgado.
Três dos nomes dos titulares das offshore acima descritas já foram revelados pelo Observador:
- Margarita Mendola Sanchez — ex-procuradora-geral da Venezuela e atualmente ministra conselheira da Embaixada da Venezuela em Lisboa que será a titular da offshore The Paratus Investments Ltd que recebeu transferências num valor total de 6,8 milhões dólares americanos (cerca de 5,8 milhões de euros) entre 16 de março de 2009 e 26 novembro e 2012.
- Rafael Cure — pai de Rafael Alfredo Cure Lopez, gerente das operações internacionais da Petróleos da Venezuela (PDVSA), titular da sociedade offshore Golden Captive que terá recebido cerca de 10,8 milhões dólares americanos (cerca de 9,2 milhões de euros ao câmbio atual) entre 16 de março de 2009 e o 2 de fevereiro de 2012.
- Arnoldo Cardenas Hernandez — tesoureiro do Banco del Tesoro que terá recebido uma transferência de 330 mil euros da ES Enterprises no dia 15 de junho de 2009 através da sociedade offshore AC [Arnoldo Cardenas] Chacal Investiments, Ltd.
Assim, como Domingo Galán Macias, chefe da Divisão de Engenharia Financeira da PDVSA, que terá recebido cerca de 3 milhões de euros como alegada contrapartida por ter favorecido o GES num concurso público para a gestão de um fundo de pensões da PDVSA.
O papel de Salgado, a investigação dos EUA e a nova offshore da ex-PGR da Venezuela
Em causa, estão duas situações diferentes:
- O GES começou a pagar alegadas luvas a titulares de cargos políticos e aos responsáveis por empresas públicas venezuelanas para que empresas como a PDVSA e suas filiais comprassem dívida da ESI e de outras holdings do GES — que já nessa altura tinham problemas graves de liquidez;
- Numa segunda fase, o BES terá servido de intermediário dos pagamentos de luvas que o grupo de Roberto Rincon e Abraham Shierra faziam a responsáveis da PDVSA no já referido esquema de corrupção que terá levado ao desvio de mais de 3,5 mil milhões de euros da PDVSA. O BES terá ajudado a branquear esses valores com a compra títulos de dívida e de outros valores mobiliários do GES.
A primeira situação já foi noticiada pelo Observador em junho e consistiu no pagamento de alegadas comissões num valor total de mais de 124,5 milhões de dólares (cerca de 105 milhões de euros ao câmbio atual) em alegadas comissões a figuras centrais do regime venezuelano. Esse valor foi pago às 30 sociedades offshore com contas no ES Bankers Dubai e representam, no entender do DCIAP, de alegadas contrapartidas pelo investimento em dívida do Grupo Espírito Santo e/ou depósitos de fundos de valor significativo no BES por parte de um conjunto de entidades públicas venezuelanas como a PDVSA e as suas sociedades subsidiárias (a PDVSA Finance e a PDVSA Insurance), o Banco del Tesoro (banco público que geria o importante fundo soberano Fonden — Fundo Nacional de Desenvolvimento), o Banco del Desarollo e Desenvolvimiento Social e diversas empresas da área da energia como a Corporación Eletrica Nacional, Eletricidade de Caracas, a Eletricidade del Caroni e sociedades mineiras como a Carbozulia. No total, o investimento venezuelano no BES e no GES terá alcançado um pico de 8,2 mil milhões de euros em junho de 2009.
Com as informações enviadas pelas autoridades norte-americanas e espanholas, o DCIAP conseguiu identificar mais 10 beneficiários das 30 sociedades offshore, sendo que estes novos nomes são mais relevantes que os três anteriores. A saber:
- Nervis Villalobos — vice-ministro de Energia Eléctrica de Venezuela entre 2001 e 2006, titular da offshore Canaima Finance Ltd;
- Javier Alvarado Ochoa — ex-vice-ministro do Desenvolvimento Elétrico e ex-presidente da empresa Bariven e da Electridade Caracas, ambas entidades filiais da PDVSA, titular da sociedade offshore ConstellationVentures;
- César Rincon Godoy — ex-diretor-geral da Bariven — uma filial da PDVSA que importava os bens alimentares que a Venezuela necessitava, titular ;
- Luis de León — ex-diretor financeiro da empresa Electricidade de Caracas, filial da PDVSA, titular da offshore Andean Financial;
- Rafael Reiter — ex-responsável pela polícia interna da PDVSA: a Prevenção e Controle de Perdas (PCP), titular da offshore Safe Leader
- Abraham Ortega Morales — ex-responsável pelo financiamento e operações internacionais da PDVSA, titular da offshore Linux que tinha o nome de código de “o peras das terras dos chacais” para Paulo Murta;
- Eudomario Carruyo, “o velho” — ex-diretor financeiro da PDVSA, titular da offshore Benyor Finance Ltd;
- Maria de Los Angeles Hernandez — administradora financeira do banco BANDES, titular da offshore Santa Cecilia Investment Ltd;
- Angel Pereira — financeiro que apresentou Maria de Los Angeles Hernandez a João Alexandre Silva do BES Madeira e que é titular da APMT Investments Ltd;
- Rita Gonzalez Bello — diretora da Eletricidad de Caracas, titular da Aurea Finance Ltd.
Também terá sido descoberta uma nova sociedade offshore a Margarita Mendola Sanchez, ex-procuradora-geral da Venezuela e atualmente ministra conselheira da Embaixada da Venezuela em Lisboa. Chama-se Daventer e terá recebido em fevereiro de 2013 cerca de 608 mil dólares (cerca de 537,4 mil euros ao câmbio atual) da ES Enterprises. Ou seja, Margarita Mendola Sanchez terá recebido um total de cerca de 6,3 milhões de euros do saco azul do GES entre 16 de março de 2009 e fevereiro de 2013. As razões para estes pagamentos, no que a Mendola Sanchez diz respeito, ainda não estão totalmente esclarecidas.
Paulo Murta, por seu lado, é suspeito na da alegada prática de inúmeros crimes de falsificação de documento a propósito da criação das sociedades offshore acima descritas. Nas suas viagens a Caracas, os verdadeiros donos dessas empresas indicavam-lhe o nomes de familiares ou amigos como testas-de-ferro. Ou seja, nos registos de constituição das sociedades, o ultimate beneficial owner nunca era o real. Eis vários exemplos:
- A Canaima Finance Ltd. que pertence a Nervis Villalobos mas que estava registada em nome da sua mulher: Milagros Coromoto.
- A Santa Cecilia Investment Ltd, estava registada em nome de um jovem advogado chamado Jorge Hernandez Gonzalez que teria feito fortuna com uma cadeia de lojas de roupa de criança na Venezuela mas que era um familiar da verdadeira dona: Maria de Los Angeles Gonzalez de Hernandez.
- A Aurea Finance Ltd pertencia a Rita Gonzalez Bello (diretora da Eletricidad de Caracas) mas estava em nome da sua mãe Rosa de Bello Gonzalez, que teria recebido uma herança do marido.
- A Safe Leader de Rafael Reiter estava em nome de Samark Lopes Bello;
- E a Daventer de Margarita Mendola Sanchez estava em nome Michel Ostertag.
Eis a lista das 30 sociedades offshore com ligações ao poder político e económico da Venezuela:
A prática de indicar nomes de familiares como titulares de contas bancárias ou de sociedades offshore para receber fundos da ES Enterprises foi igualmente seguida por diversos altos funcionários do BES em Lisboa, como o Observador noticiou em janeiro e em fevereiro de 2018.
No centro destes pagamentos estará o todo-o-poderoso Rafael ‘Rafa’ Ramirez, ex-braço direito de Hugo Chavez. Foi nomeado pelo ex-presidente como ministro da Energia e Minas em 2002, tendo passado a ministro da Energia e do Petróleo em 2005. Entre novembro de 2004 e setembro de 2014 foi presidente da PDVSA em estreita ligação com Chávez.
As figuras mais próximas de Ramirez, e apontadas como seus testas-de-ferro, são Nervis Villalobos, Javier Alvarado Ochoa, César Rincon Godoy, Luis de Léon e Rafael Reiter. Quase todos, com exceção de Alvarado Ochoa (que tinha o nome de código de “Ravier” para Paulo Murta), são suspeitos numa investigação criminal aberta em Houston, Estados Unidos, por suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal.
Em Espanha, existem também várias investigações relevantes. A mais conhecida foi revelada pelo El País em dezembro de 2017 e está relacionada com os cerca de 2 mil milhões de euros que este grupo de dirigentes venezuelanos alegadamente liderados por Nervis Villalobos e Alvarado Ochoa tinham na Banca Privada d’Andorra. José Salazar, primo de ‘Rafa’ Ramirez, é também suspeito nessa investigação e foi detido na Venezuela.
Os documentos do ‘saco azul’ do GES: 20 milhões a mais de 50 altos funcionários
Presos em Espanha e extraditados para os Estados Unidos
Por exemplo, César Rincon Godoy, 50 anos foi preso em Espanha em outubro de 2017, tendo sido extraditado para os Estados Unidos a pedido do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e à ordem do processo de Houston. Depois acusado de corrupção, conspiração para branqueamento de capitais e de branqueamento de capitais, Rincon Godoy fez um acordo de colaboração premiada (“plea bargain” nos Estados Unidos) com as autoridades federais e declarou-se culpado, tendo confessado que tinha conspirado para branquear cerca de 7 milhões de dólares (cerca de 6 milhões de euros ao câmbio atual) em subornos.
Luis de León, 42 anos, foi diretor financeiro da empresa Electricidade de Caracas, filial da PDVSA, tendo sido preso em Espanha na mesma altura que Godoy. Sendo igualmente cidadão norte-americano, foi também extraditado para os Estados Unidos e seguiu os mesmos passos que Rincon Godoy: declarou-se culpado em julho de 2018. Ambos aguardam julgamento.
Já Nervis Villallobos e Rafael Reiter, igualmente presos em Espanha, ainda aguardam extradição para os Estados Unidos. De acordo com as autoridades norte-americanas, são as figuras mais próximas de Rafel Ramirez e assumem uma particular importância numa acusação contra o ex-presidente da PDVSA — que também está a ser investigado na Venezuela depois de ter caído em desgraça junto de Nicolas Maduro.
De acordo com a investigação norte-americana, todos eles tinham nomes de código para comunicarem entre si. Nervis Villalobos era o “Enano”, Ricon Godoy era o “Primo” e Reiter era o “Nadal”. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos ainda não conseguiu localizar Alejando Isturiz Chiesa, ex-assistente de César Rincon Godoy na Bariven que também é conhecido por “Piojo”.
A investigação foi aberta em Houston, cidade do estado do Texas por a PDVSA ter ali a sede da sua filial norte-americana. Roberto Rincon e Abraham Shiera, dois empresários venezuelanos radicados nos Estados Unidos, são dados como autores de um esquema de corrupção que terá levado ao desvio de mais de 3,5 mil milhões de euros entre 2007 e 2012 que pertencerão aos cofres da PDVSA. Ambos foram detidos em dezembro de 2015 — Rincon no Texas e Shiera em Miami — e no respetivo mandado de detenção, segundo o New York Times, pode ler-se que um deles tinha movimentado cerca de 750 milhões de dólares (cerca de 627, 6 milhões de euros ao câmbio actual) entre 2010 e 2013.
De acordo com o mesmo jornal, aquando da detenção de Roberto Rincon no Texas, este alegadamente teria sido detido dentro de um avião privado onde também estaria Hugo Carvajal, ex-líder dos serviços de informações venezuelanos. Carvajal terá sido autorizado a regressar à Venezuela, escusando-se assim a responder perante a Justiça dos Estados Unidos sobre alegações de que estaria envolvido com redes de tráfico de droga.
Nos inquéritos que já foram disponibilizados à comunicação social, que pode consultar aqui, Rincon e Shiera declararam-se culpados de ter pago cerca de 27 milhões de dólares em subornos que foram transferidos para contas na Suíça abertas em nome de Nervis Villalobos e Luis de León.
O filho e a mulher de Roberto Rincon foram também detidos em Espanha em junho último por suspeitas de branqueamento de capitais. Tudo porque a PDVSA, apresentou através do ex-juiz e hoje advogado Baltazar Gárzon uma queixa criminal a 8 de junho de 2017 contra Rincon e os seus familiares, além de diversos ex-funcionários da petrolífera venezuelana que terão desviado fundos dos cofres daquela empresa.
O BES e Ricardo Salgado tiveram um papel importante nos esquemas investigados nos Estados Unidos e Espanha. Pelos cofres do banco da família Espírito Santo passaram uma parte relevante desses 3,5 mil milhões de euros alegadamente desviados da PDVSA, mais concretamente por contas bancárias do BES Madeira, do BES Luxemburgo, do Banque Privée Espírito Santo, na Suíça, e do ES Bankers, no Dubai.
Tal como o Observador noticiou em exclusivo, foi este inquérito do estado do Texas que levou o Departamento de Justiça dos Estados Unidos a acionar os mecanismos de cooperação internacional com o DCIAP. Diversos investigadores norte-americanos, nomeadamente um inspetor da Agência Federal de Imigração e Alfândega (U.S. Immigration and Customs Enforcement’s Homeland Security — o órgão de polícia criminal da investigação de Houston), já estiveram em Lisboa onde inquiriram nas instalações do DCIAP diversas figuras-chave nas relações de Ricardo Salgado com a Venezuela. Entre outros, João Alexandre Silva, ex-responsável do BES Madeira foi um dos inquiridos. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos solicitou ainda o envio de documentação bancária que fazem parte dos autos do Universo Espírito Santo, tendo também entregue documentação judicial que faz da investigação aberta no Texas.
O envolvimento do BES no esquema de Rincon e Shiera
Ricardo Salgado e a sua estrutura terá tido conhecimento entre 2010 e 2011 do alegado esquema de corrupção liderado por Roberto Rincon e Abraham Shiera e que estava centrado em Bariven. Esta entidade, exclusivamente financiada pela PDVSA, importava praticamente todos os produtos alimentares que a Venezuela necessitava, sendo que os titulares de cargos políticos venezuelanos e os gestores públicos da Bariven (e de outras entidades) recebiam comissões por cada contrato que fosse executado pelas empresas de Rincon e Shiera, domiciliadas em Houston e Miami, nos Estados Unidos. As comissões eram pagas no momento em que os fornecedores recebessem o valor da faturação feita à Bariven.
O ex-presidente executivo do BES e João Alexandre Silva, o então responsável pelo BES Madeira e pela Sucursal Financeira Exterior (SFE) do banco na Zona Franca da Madeira, perceberam que havia ali um negócio a explorar: o banco da família Espírito Santo poderia servir de intermediário e assegurar linhas de crédito à PDVSA para financiar o pagamento das faturas que a Bariven devia ao grupo de Rincon e Shiera — sendo que muitas delas tinham valores claramente empolados para financiar o pagamento das alegadas ‘luvas’ a responsáveis venezuelanos.
Ao que o Observador apurou, a equipa de José Ranito acredita que Nérvis Villalobos, ex-vice-ministro de Estado da Energia e um dos homens de mão de Rafael Ramirez, foi o intermediário de Ricardo Salgado nos contactos com o Grupo Rincon e Shiera. Villalobos terá sido indicado pelo próprio presidente da PDVSA a Salgado. ‘Rafa’ Ramirez e o ex-presidente executivo do BES tinham uma boa relação, existindo mesmo vários encontros dos dois em Lisboa que estão documentados nos autos do Universo Espírito Santo.
Rincon e Shiera usavam três instituições financeiras suíças para realizar os pagar os alegados subornos aos titulares de cargos públicos venezuelanos:
- O Julius Baer — uma das instituições financeiras mais antigas da Suíça
- O Credit Suisse —um colosso juntamente com a Union des Banques Suisses
- E uma pequena instituição financeira obscura chamada Eagle Managment e operacionalizada por uma católica nascida nas Ilhas Fiji chamada Daisy Rafoi.
Foi a esta concorrência que Ricardo Salgado conseguiu ‘roubar’ os clientes Roberto Rincon e Abraham Shierra com alegada influência de Nervis Villalobos e a alegada aprovação de ‘Rafa’ Ramirez.
Numa primeira fase, o BES ter-se-á limitado a ser o intermediário entre alegados corruptores e os alegados corrompidos, deixando que as contas bancárias fossem utilizadas para pagamentos de subornos e para que os respetivos fundos passassem pelos diferentes bancos internacionais da família Espírito Santo.
Assim, foram utilizadas as contas bancárias do ES Bankers Dubai, que já eram utilizadas por alegadas ordens de Salgado para fazer os pagamentos da ES Enterprises como contrapartida pelos investimentos das entidades públicas venezuelanas em títulos de dívida do GES e do BES. Essas contas passaram a ser utilizadas igualmente para que Roberto Rincon e Abraham Shiera pagassem as alegadas comissões pelas adjudicações da Bariven.
Os primeiros pagamentos e o homem da mala para Cristina Kirchner
Em março de 2012, Paulo Murta forneceu por email a Rincon e a Shierra os dados da conta da sociedade offshore Constellation Ventures no ES Bankers Dubai. Como já referimos, esta sociedade offshore pertencerá a Javier Alvarado Ochoa, mas também há dados que dão Nervis Villalobos, ex-vice-ministro de Energia Eléctrica de Venezuela entre 2001 e 2006, como co-titular da Constellation.
A conta da Constellation Ventures terá recebido cerca de 7,5 milhões de dólares (cerca de 6,6 milhões de euros) entre 25 de fevereiro de 2011 e 21 de agosto de 2012. Ou seja, a maior parte dos montantes recebidos nesta conta corresponderá a pagamento feitos pela ES Enterprises ‘por conta’ dos investimentos feitos pelas entidades lideradas por Alvarado Ochoa em títulos de dívida do GES, enquanto que uma pequena parte estará relacionada com os pagamentos de alegadas ‘luvas’ por parte de Roberto Rincon e Abraham Shiera.
O mesmo aconteceu com Luis de León. Isto é, Murta também terá indiciado a Rincon e Shierra os dados da conta que o ex-diretor financeiro da Electricidad de Caracas tinha aberto no Banque Privée Espírio Santo, na Suíça.
Ainda em 2012, Paulo Murta comunicou a Nervis Villalobos e a Javier Alvarado Ochoa a ativação da estrutura e conta bancária usada por Rafael Reiter na Gestar: a Safeleader. Reiter era o responsável pela segurança do próprio ‘Rafa’ Ramirez mas também liderava a chamada polícia interna da PDVSA, ironicamente intitulada de Prevenção e Controle de Perdas (PCP).
De acordo com as suspeitas do DCIAP, a Safeleader terá recebido contrapartidas do grupo Rincon e Shierra por alegadamente proporcionar reuniões com o presidente da PDVSA mas, acima de tudo, para ficar ‘quieto e calado’ enquanto responsável pelo escrutínio interno dos mecanismos da PDVSA.
O facto de Paulo Murta ter comunicado os dados de diversas contas bancárias de venezuelanos a Nervis Villalobos e a Javier Alvarado Ochoa indicia que existia um controle centralizado na PDVSA sobre os pagamentos feitos por Rincon e Shierra.
Rafael Naider, é como Villalobos e Ochoa, mais uma figura próxima de ‘Rafa’ Ramirez. Filho de uma dirigente marxista destacada na Venezuela e deputada do partido de Chávez, Reiter esteve envolvido num caso que chegou às páginas dos jornais espanhóis.
Hugo Chavez usava a PDVSA para os mais diversos fins, sendo que um deles era financiar partidos ou políticos amigos na América Latina. Foi assim que, de acordo com o El País, Rafael Reiter ficou conhecido por, a mando de Ramirez, ter alegadamente transportado para a Argentina várias malas com mais de 800 mil dólares (cerca de 705 mil euros ao câmbio atual) em dinheiro vivo para financiar a campanha de 2007 de Cristina Kirchner — a viúva do antigo presidente Nestor Kirchner que ganhou as eleições presidenciais da Argentina nesse ano.
Se em Espanha é suspeito de ter desviado cerca de 868 mil dólares (765,1 mil euros ao câmbio atual) para comprar uma vivenda em Barcelona, de ter realizado transferências de 1,5 milhões de euros para contas em Miami (Estados Unidos) controladas pela sua mulher e de comprar dois carros blindados por mais de 200 mil dólares (cerca de 176,3 mil euros), já em Portugal é suspeito de ter recebido mais de 420 mil euros através da ES Enterprises em contas bancárias abertas no ES Bankers Dubai.
O aprofundamento da relação com o Grupo Rincon e Shiera
Como o Observador já noticiou, o GES de Ricardo Salgado começou a ter problemas em 2012 com a Dubai Financial Services Authority (DFSA), o supervisor da banca naquela área, precisamente devido às contas das 30 sociedades offshore dos venezuelanos. A DFSA queria sabia quem eram os reais beneficiários mas Ricardo Salgado não queria revelar os nomes.
No seguimento da operação de fiscalização da DFSA, entrou em cena a ICG Private Wealth Managment. Esta sociedade criada por Michel Ostertag assinou um acordo com a Espírito Santo Internacional (ESI), uma das principais holdings do GES, com o objetivo de, segundo o DCIAP, esconder e iludir uma relação direta entre o GES e os beneficiários venezuelanos das 30 sociedades offshore com conta no ES Bankers. Por outro lado, foi decidido transferir uma parte das contas bancárias da ES Bankers para a Sucursal Financeira Exterior (SFE) do BES Madeira e as restantes para o Banque Privée Espírito Santo na Suíça.
De acordo com novas informações confirmadas pelo Observador, a ICG Private Wealth Managment teve igualmente um papel importante no financiamento do esquema de corrupção do Grupo Rincon e Shiera.
Na mesma altura em que Ricardo Salgado mandava uma equipa especial de auditoria de Lisboa para o Dubai para tentar resolver os problemas com a DFSA, Michel Ostertag e Paulo Murta terão acordado com Nervis Villalobos, Roberto Rincon e Abraham Shierra um novo esquema de financiamento do BES à Bariven para o pagamento das faturas em dívida juntos dos Grupos Shierra e Rincon.
Não deixa de ser irónico que a Bariven, uma filial de uma das maiores empresas petrolíferas do mundo com ativos superiores a 100 mil milhões de euros, necessitasse de financiamento de um pequeno banco (à escala global) como o BES quando trabalhava com os principais bancos mundiais.
Assim, as empresas de Roberto Rincon e de Abraham Shiera passaram a receber o dinheiro das suas faturas passadas à Bariven através de contas abertas na SFE do BES Madeira, sendo que o alegado suborno aos funcionários da Bariven e da PDVSA continuava a ser pago em contas do ES Bankers Dubai. Mais tarde, estas últimas contas foram igualmente transferidas para a SFE do BES Madeira.
Desse novo esquema, que Paulo Murta acabou por comunicar por escrito a Roberto Rincon, fazia igualmente parte o investimento obrigatório de uma parte dos subornos em títulos de dívida do GES e do BES. De acordo com as suspeitas do DCIAP, tudo isto foi do alegadao conhecimento prévio de Ricardo Salgado. Mais: terá sido mesmo alegadamente definido em Lisboa pelo então líder do BES.
Como Roberto Rincon perdeu 200 milhões de dólares com a queda do GES
Além da ICG Private Wealth Managment, Michel Ostertag terá ainda acordado com Ricardo Salgado a criação de uma sociedade no Canadá chamada ESIMCO e outra em Macau com o nome de Eurasian. Ambas teriam o mesmo objetivo: servir de ponto de passagem dos alegados subornos pagos pela dupla Rincon/Shiera para altos funcionários venezuelanos, nomeadamente para Javier Alvarado, César Rincon e Rafael Reiter.
No caso da ESIMCO, alegadamente terão sido forjados contratos fiduciários entre Ostertag e as empresas de Rincon e de Shiera para mascarar os reais objetivos das transferências. Ou seja, a ESIMCO fundada por Michel Ostertag tinha aqueles fundos nas suas contas no ES Bankers Dubai, fazia transferências para as contas das sociedades offshore de Alvarado, Rincon, Reiter e Villalobos no SFE do BES Madeira e no Banque Privée Espírito Santo mas fazia-o em nome de Shierra e Rincon — e não em interesse próprio.
O mesmo aconteceu com a Eurasian mas aqui com o objetivo de servir de ponto de passagem dos lucros alegadamente ilícitos ganhos por Roberto Rincon e por Nervis Villalobos.
A equipa de Ricardo Salgado, contudo, terá cometido um erro crasso: investiu os fundos que Roberto Rincon e Nervis Villalobos reuniram em dívida do GES.
De acordo com os dados reunidos pelo DCIAP, Salgado, José Castella (então o controller do GES), Francisco Machado da Cruz (o famoso commissaire aux comptes do GES), Paulo Murta e Michel Ostertag terão aplicado os fundos reunidos por Rincon, através da offshore Tradequip, e por Villalobos, através das offshores Welka, Violet e Canaima, na compra de ações preferenciais da ESI Overseas Limited no decurso de 2013 e de janeiro de 2014.
A ESI Overseas era igualmente uma sociedade offshore detida pela Espírio Santo International (ESI), uma das principais holdings do GES, que pagava dividendos anuais aos portadores destas ações preferenciais. O problema é que a ESI Overseas acabou por emprestar esses fundos à ESI. Resultado: o dinheiro de Roberto Rincon e de Nervis Villalobos perdeu-se com a insolvência da ESI. Só no caso de Roberto Rincon, estamos a falar de 200 milhões de dólares (cerca de 176,2 milhões de euros ao câmbio atual). O mesmo terá acontecido com as entidades públicas venezuelanas que investiram em títulos de dívida do GES.
Esse é um dos muitos segredos que já foram quebrados com as investigações judiciais ao Universo Espírito Santos mas muitos outros faltam ainda revelar. Na contabilidade informal da ES Enterprises, que era gerida pelo suíço Jean Luc Schneider, os venezuelanos estavam acomodados na rúbrica contabilística “sand” — areia em inglês. Se só se conhecem 14 dos titulares das 30 sociedades offshore, faltam ainda conhecer os restantes 18 ‘grãos de areia’ — leia-se nomes dos venezuelanos — que receberam fundos do saco azul do GES.