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O Papa Francisco tem apostado na juventude como um dos temas centrais do seu pontificado e pedido aos jovens que sejam protagonistas do mundo em mudança

AFP via Getty Images

O Papa Francisco tem apostado na juventude como um dos temas centrais do seu pontificado e pedido aos jovens que sejam protagonistas do mundo em mudança

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Como o Papa Francisco lembrou a uma Igreja envelhecida que Jesus, afinal, também foi um jovem

Um sínodo, uma exortação apostólica sobre a juventude, um filme na Disney e a mensagem à Igreja: Jesus foi jovem. Que ideias tem o Papa Francisco para os jovens que são protagonistas do mundo de hoje?

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Em maio de 2015, o Papa Francisco surpreendeu o mundo ao publicar a primeira encíclica papal da história da Igreja Católica sobre o ambiente e as alterações climáticas. Na encíclica Laudato Si’, um documento de quase 200 páginas, o Papa argentino reflete abundantemente sobre as questões climáticas, lembrando os fiéis católicos de que cuidar da criação é seu dever moral, alertando para as desigualdades sociais provocadas por um clima em mudança e sublinhando a importância do conhecimento científico sobre o planeta.

Seis meses depois da publicação daquele texto, uma das encíclicas papais da história mais amplamente discutidas nos jornais e televisões de todo o mundo, delegados de todo o mundo reunir-se-iam em Paris para a 25.ª conferência da ONU sobre as alterações climáticas, de que resultaria o Acordo de Paris. Três anos depois, em 2018, a jovem sueca Greta Thunberg começaria a faltar às aulas à sexta-feira para protestar em frente ao parlamento sueco contra a inação política face à emergência climática — uma forma de protesto que se disseminaria rapidamente por todo o mundo e elevaria Thunberg ao estatuto de estrela global do ambientalismo.

Quase uma década depois, a crise climática mantém-se como uma das prioridades centrais da humanidade — mas basta ler a encíclica Laudato Si’ e estar atento aos debates internacionais nas sucessivas cimeiras da ONU sobre o clima para perceber que as preocupações globais e as linhas orientadoras das soluções políticas estão praticamente todas contidas naquele documento de 2015.

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O Papa Francisco com Greta Thunberg no Vaticano em 2019

NurPhoto via Getty Images

A redação daquele texto, em 2015, terá sido o momento em que, de modo mais eloquente, o Papa Francisco mostrou ao mundo que não pretendia ficar encastelado nos muros do Vaticano, mergulhado em debates teológicos inalcançáveis, alienado da realidade do mundo contemporâneo. Pelo contrário, estaria atento aos debates do mundo, antecipando-os e contribuindo para eles, e às preocupações concretas das sociedades modernas — especialmente às preocupações dos jovens, para lhes propor a missão de serem protagonistas do mundo atual, à semelhança de Jesus, ele próprio também um jovem adulto durante a sua vida pública.

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É verdade que não foi o Papa Francisco a ter a ideia da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), mas sim João Paulo II, que a partir da década de 1980 começou a reunir-se periodicamente com os jovens de todo o mundo para escutar as suas inquietações, para falar diretamente à juventude e para compreender os caminhos que a Igreja deve seguir para chegar às novas gerações.

Mas, olhando para o pontificado do Papa Francisco, rapidamente se percebe que a ideia poderia também ter partido do argentino, que tem colocado a juventude como uma das suas principais prioridades pastorais. Em 2016, Francisco convocou uma edição do Sínodo dos Bispos dedicada à “juventude, fé e discernimento vocacional”, com o objetivo explícito de “acompanhar os jovens na sua viagem existencial até à maturidade”. Com base nas reflexões do sínodo, o Papa Francisco escreveu a exortação apostólica Christus Vivit (2019), um longo documento pontifício em que Francisco elabora extensamente o seu pensamento sobre a importância da juventude.

Na extensa carta, o Papa dirige-se a todos os jovens — católicos ou não —, para lhes dizer que são eles os protagonistas do presente e do futuro, pelo que não se devem deixar desanimar pelo que digam deles os mais velhos. Para Francisco, é “próprio” dos jovens “sonhar coisas grandes, buscar horizontes amplos, ousar mais, ter vontade de conquistar o mundo, ser capaz de aceitar propostas desafiadoras e desejar contribuir com o melhor de si mesmo para construir algo superior”. Mas os jovens cristãos também não devem, diz o Papa, envergonhar-se da sua fé ou ter medo de nadar contra a maré.

Naquele documento, que sintetiza muitas das ideias sobre a juventude que o Papa Francisco tem repetido em múltiplas intervenções, o chefe da Igreja Católica deixa um alerta contra um perigo especialmente presente nas sociedades europeias, onde a Igreja está significativamente envelhecida: um jovem com fé não deve fazer parte de uma “minoria seleta” de jovens católicos, encerrada nos seus movimentos e iniciativas e “preservada de todo o contágio” por parte do resto do mundo. Deve, diz o Papa, embarcar em projetos que o “lancem para o encontro com os outros”, testemunhando a sua fé sem vergonha nem embaraço nos seus contextos quotidianos.

"Um jovem não pode estar desanimado; é próprio dele sonhar coisas grandes, buscar horizontes amplos, ousar mais, ter vontade de conquistar o mundo, ser capaz de aceitar propostas desafiadoras e desejar contribuir com o melhor de si mesmo para construir algo superior." (Christus Vivit, 15)
Papa Francisco

Mas a carta de Francisco não se dirige apenas aos jovens: destina-se também à totalidade da Igreja e ao clero católico, que tem a responsabilidade de falar às novas gerações. Segundo o Papa, muitos jovens “reclamam uma Igreja que escute mais, que não passe o tempo a condenar o mundo” nem esteja “sempre em guerra por dois ou três assuntos que a obcecam”.

A disponibilidade do Papa Francisco para falar de muitos dos assuntos quentes que historicamente embaraçaram a Igreja Católica — incluindo os direitos das mulheres e a luta feminista, os direitos da comunidade LGBT dentro da Igreja, o reconhecimento de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, o aborto, a pornografia e a doutrina sexual da Igreja no geral, mas também tópicos quentes como o clericalismo, o abuso sexual de menores, os perigos do capitalismo e as alterações climáticas — têm contribuído decisivamente para o fazer colecionar muitos inimigos internos.

Basta, por exemplo, ver como foi recebido nos meios mais conservadores e tradicionalistas da Igreja Católica (especialmente nos Estados Unidos) o recente documentário “Amén: Francisco Responde”, produzido pela Disney, no qual o Papa Francisco conversa abertamente durante mais de uma hora com um grupo de jovens sobre os direitos das mulheres, a identidade de género, o aborto, a homossexualidade, a pornografia, a masturbação e o lugar da fé na vida dos jovens de hoje. Em alguns círculos mais conservadores, o Papa foi criticado pelo simples facto de ter aceitado participar no documentário. Em março, até o facto de o Vaticano ter participado nas comemorações do Dia da Terra, desligando as luzes da Praça de São Pedro durante uma hora, foi alvo de duras críticas por parte dos tradicionalistas radicais — que defenderam que o Vaticano devia era ter promovido uma hora de oração contra “crimes” como a “sodomia”.

Apesar da forte reação interna de algumas franjas radicais, o Papa Francisco tem intensificado o seu discurso para os jovens, incentivando-os a serem os protagonistas da Igreja do século XXI. De modo coerente com o estilo do seu pontificado, Francisco tem-no feito de uma forma simples, regressando sistematicamente à fonte da fé cristã, os evangelhos, e recordando à Igreja, especialmente envelhecida no continente europeu, que toda a sua fé gira em torno de um jovem: Jesus Cristo foi um jovem adulto (a sua vida pública aconteceu entre os 30 e os 33 anos de idade), enfrentou as autoridades políticas e religiosas do seu tempo, sentiu-se incompreendido, teve medo, arriscou e lutou pelos seus sonhos.

Jesus, o jovem

Não tinham passado sequer 24 horas desde que Jorge Maria Bergoglio vestira pela primeira vez a batina branca e passara a responder pelo nome de Francisco. Na primeira missa pública do novo Papa, celebrada dentro da Capela Sistina perante os cardeais que o tinham elegido, Francisco apresentou-se com uma linha programática central: conduzir a Igreja Católica de volta às suas raízes fundamentais — o evangelho, e por isso a vida de Jesus Cristo —, de modo a impedir que a Igreja se transformasse numa ONG socialmente bem-intencionada, mas reduzida a mera instituição humana com regras, hierarquias, jogos de poder e lógicas políticas.

Os discursos, os posicionamentos políticos, os debates teológicos, a organização hierárquica do clero, as doutrinas morais e sexuais e a ação social não chegam para a Igreja ser a Igreja, defendeu Francisco. É preciso regressar à origem da Igreja: a pessoa de Jesus Cristo. “Podemos caminhar o que quisermos, podemos edificar um monte de coisas, mas se não confessarmos Jesus Cristo, está errado. Tornar-nos-emos uma ONG sócio-caritativa, mas não a Igreja, Esposa do Senhor. Quando não se caminha, ficamos parados”, avisou Francisco naquele primeiro dia.

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As Jornadas Mundiais da Juventude têm sido oportunidades para o Papa Francisco recordar que Jesus também foi um jovem

AFP via Getty Images

Nos muitos debates que abriu ao longo do seu pontificado, Francisco procurou enquadrar as polémicas que suscitou, sobretudo no campo da doutrina moral e sexual, com um regresso às mensagens centrais do evangelho. Também no que toca às questões da juventude, que desde o princípio considerou fundamentais para a ação da Igreja no mundo contemporâneo, o Papa Francisco assentou todo o seu pensamento numa ideia aparentemente simples, mas possivelmente desafiadora para a Igreja envelhecida do continente europeu, transformada, sob muitos pontos de vista, numa instituição antiga e antiquada, desajustada do mundo atual e sem grande coisa a dizer aos jovens.

“É importante tomar consciência de que Jesus foi um jovem. Deu a sua vida numa fase que hoje se define como a dum jovem adulto”, escreveu o Papa Francisco logo nas primeiras páginas de Christus Vivit, a sua exortação apostólica para os jovens. Lembrando as palavras do documento final do Sínodo dos Bispos sobre a juventude, o Papa elencou as características do jovem Jesus, que “a partir da própria juventude” pode inspirar os jovens de hoje: “Manifestou uma profunda compaixão pelos mais fracos, especialmente os pobres, os doentes, os pecadores e os excluídos. Teve a coragem de enfrentar as autoridades religiosas e políticas do seu tempo; viveu a experiência de Se sentir incompreendido e descartado; experimentou o medo do sofrimento e conheceu a fragilidade da Paixão; dirigiu o seu olhar para o futuro, colocando-Se nas mãos seguras do Pai e confiando na força do Espírito. Em Jesus, todos os jovens se podem rever.”

Nos dois primeiros capítulos daquele documento programático, o Papa Francisco faz uma ampla recolha de exemplos bíblicos para procurar identificar a própria essência do Cristianismo com a juventude. Para o Papa, a Igreja não é nem pode ser uma coisa de velhos, agarrada ao passado, mas um movimento caracterizado pela sua essência jovem — não só tem as suas raízes na rebelião de um jovem que rompeu com o statu quo, como necessita inevitavelmente de ser hoje composta por jovens que continuem esse movimento de permanente renovação.

O Papa não recorda apenas Jesus: outras célebres personagens das histórias bíblicas, repetidas uma e outra vez nas celebrações católicas, eram jovens quando foram chamadas a desempenhar um papel fundamental naquilo que a Igreja descreve como a história do povo de Deus. É o caso de figuras como o profeta Samuel, o rei David, o rei Salomão ou o profeta Jeremias, entre outros. A juventude é, por isso, enaltecida pelo Papa Francisco como um período fundamental da vida humana a que a Igreja Católica deve estar especialmente atenta. “A verdadeira juventude é ter um coração capaz de amar”, escreveu o Papa. Falando diretamente aos jovens, acrescentou: “É muito importante contemplar o Jesus jovem que os Evangelhos nos mostram, porque foi verdadeiramente um de vós e, n’Ele, é possível reconhecer muitos traços dos corações jovens.”

“Sejam a consciência crítica da sociedade”

Em novembro de 2022, durante a viagem que fez ao Bahrein, o Papa Francisco encontrou-se com centenas de jovens no auditório de uma escola católica daquele país para, através deles, deixar uma mensagem à juventude de todo o mundo: a Igreja precisa dos mais novos. “Precisamos da vossa criatividade, dos vossos sonhos e da vossa coragem, do vosso encanto e dos vossos sorrisos, da vossa alegria contagiosa e daquele toque de loucura que conseguem trazer a todas as situações, que nos ajuda a libertar-nos dos nossos hábitos antigos e das nossas formas de olhar para as coisas.”

Basta percorrer as muitas mensagens do Papa para as Jornadas Mundiais da Juventude ou as múltiplas homilias que já dirigiu aos jovens para perceber a síntese do seu discurso sobre a juventude: Francisco não quer uma Igreja velha, rígida, formatada por rituais a que já só os mais velhos aderem, mas sim uma Igreja continuamente jovem, que entusiasme os mais novos, e que não se limite a ser uma lista de proibições e condenações das coisas do mundo. Na exortação Christus Vivit, o Papa Francisco cita o célebre bispo Óscar Romero, de El Salvador, canonizado em 2018, para sublinhar que “o Cristianismo não é um conjunto de verdades em que é preciso acreditar, de leis que se devem observar, de proibições. Apresentado assim, repugna. O Cristianismo é uma pessoa que me amou tanto que reclama o meu amor. O Cristianismo é Cristo”.

"O Cristianismo não é um conjunto de verdades em que é preciso acreditar, de leis que se devem observar, de proibições. Apresentado assim, repugna."
Papa Francisco, citando Óscar Romero

Por esse prisma, defende o Papa, os jovens têm um papel fundamental não só na Igreja, mas no mundo — e devem ter a coragem de o assumir.

“A juventude é um tempo abençoado para o jovem e uma bênção para a Igreja e o mundo. É uma alegria, uma canção de esperança e uma beatitude. Apreciar a juventude significa considerar este período da vida como um momento precioso, e não como uma fase de passagem onde os jovens se sentem empurrados para a idade adulta”, sublinha Francisco, que incentiva os jovens a serem protagonistas da mudança, e não apenas a serem sujeitos passivos num mundo dominado pelos mais velhos. “É preciso não se deixar bloquear pela insegurança: não se deve ter medo de arriscar e cometer erros; devemos, sim, ter medo de viver paralisados, como mortos ainda em vida, sujeitos que não vivem porque não querem arriscar, não perseveram nos seus compromissos ou têm medo de errar.”

No mesmo texto, o Papa reforça o apelo: “Jovens, não renuncieis ao melhor da vossa juventude, não fiqueis a observar a vida da sacada. Não confundais a felicidade com um sofá nem passeis toda a vossa vida diante dum visor. E tão-pouco vos reduzais ao triste espetáculo dum veículo abandonado. Não sejais carros estacionados, mas deixai brotar os sonhos e tomai decisões. Ainda que vos enganeis, arriscai. Não sobrevivais com a alma anestesiada, nem olheis o mundo como se fôsseis turistas.”

O Papa Francisco voltaria ao mesmo apelo na viagem recente à Hungria. Num encontro com milhares de jovens em Budapeste, incentivou-os a ter “grandes objetivos” e a resistir à inércia. “Jesus fica feliz, se alcançarmos metas altas. Não nos quer preguiçosos e inativos, não nos quer calados e tímidos; quer-nos vivos, ativos, protagonistas, protagonistas da história. E nunca desvaloriza as nossas expectativas; mas, ao contrário, eleva o nível dos nossos anseios”, disse o Papa.

Apesar dos incentivos para que os jovens ousem e arrisquem, Francisco tem também advertido para os perigos de um excessivo “culto da juventude” e de uma “postura juvenil que despreze os outros pelos seus anos ou porque são de outro tempo”. O Papa diz mesmo que o culto da juventude é uma arma clássica dos “manipuladores”, que atraem os jovens para ideologias desenraizadas da dignidade humana — e aconselha os jovens a manter uma relação de proximidade com os pais e avós. “Isto não significa que tenhas de estar de acordo com tudo o que eles dizem, nem que deves aprovar todas as suas ações. Um jovem deveria ter sempre um espírito crítico. São Basílio Magno, referindo-se aos autores gregos antigos, recomendava aos jovens que os estimassem, mas guardassem apenas o que de bom podiam ensinar”, diz Francisco na exortação Christus Vivit.

Em novembro de 2021, na missa que realizou na Praça de São Pedro perante milhares de jovens a propósito da Jornada Mundial da Juventude (celebrada naquele ano a nível diocesano), o Papa Francisco foi mais longe neste apelo. Além de pedir aos jovens que “sonhem e vivam” para ajudar os adultos a encontrar o “entusiasmo”, o Papa também apelou aos mais novos que “sejam livres e autênticos, [que] sejam a consciência crítica da sociedade”. “Precisamos das vossas críticas”, disse ainda o Papa. “Muitos de vós, por exemplo, são críticos da poluição ambiental. Precisamos disto! Sejam livres nas vossas críticas.”

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O Papa Francisco tem pedido aos jovens que sejam a "consciência crítica da sociedade"

NurPhoto via Getty Images

Nos esforços de colocar os jovens como protagonistas do mundo contemporâneo, o Papa Francisco não se ficou pelos discursos. Em maio de 2019, convocou os jovens economistas, empresários e empreendedores de todo o mundo para uma reunião em Assis, em Itália, no ano seguinte, sob o mote “The Economy of Francesco” — em nome do santo de Assis, que viveu o evangelho “em total coerência, inclusive nos planos económico e social”. A ideia era reunir em Assis jovens economistas e empresários para debaterem um novo modelo económico para a humanidade do século XXI, assente em valores como a proteção do planeta e a diminuição das desigualdades sociais. O projeto ganhou vida e, hoje, a “Economia de Francisco” é um fórum global que reúne com frequência milhares de jovens de todo o mundo.

A mensagem à Igreja: fugir do moralismo

Os recados do Papa Francisco não se esgotam, porém, nas mensagens dirigidas aos jovens. O pontífice tem pedido insistentemente uma transformação radical na própria Igreja Católica, que não pode, na opinião de Francisco, continuar a dar um papel passivo aos jovens, encarando-os apenas como um par de ouvidos à espera de ouvir a doutrina, os artigos de fé ou as proibições morais.

Para o Papa, a proposta da Igreja Católica aos jovens não pode ser apresentada em meros “encontros de ‘formação’ onde se abordam apenas questões doutrinais e morais: sobre os males do mundo atual, sobre a Igreja, a doutrina social, sobre a castidade, o matrimónio, o controlo da natalidade e sobre outros temas”. O resultado, diz Francisco, é que “muitos jovens aborrecem-se, perdem o fogo do encontro com Cristo e a alegria de o seguir”.

“É necessário aproximar-se dos jovens com a gramática do amor, não com o proselitismo”, diz também o Papa, na exortação que dirigiu à juventude. No entender de Francisco, a Igreja não deve descartar a participação dos jovens nem procurar impor-lhes doutrinas pré-fabricadas (que, necessariamente, acabam por excluir quem não as segue integralmente). Cada jovem é um “ponto de partida” que aguarda “uma palavra de estímulo, luz e encorajamento”. Por isso, diz o Papa, “os próprios jovens são agentes da pastoral juvenil, acompanhados e orientados, mas livres para encontrar caminhos sempre novos, com criatividade e ousadia”.

Sobre a forma de apresentar a proposta do Cristianismo, evitando a tentação do proselitismo e da condenação do mundo a partir do púlpito em que muitos padres caem, Francisco já tinha escrito extensamente na sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium, publicada em 2013. Nesse longo documento programático em que expõe as suas ideias sobre a evangelização no mundo contemporâneo, o Papa Francisco dedica um capítulo inteiro à homilia — a intervenção livre feita pelo padre ou bispo durante a missa, na sequência das leituras bíblicas — reconhecendo que “são muitas as reclamações relacionadas com este ministério importante”.

"Uma Igreja demasiado temerosa e estruturada pode ser constantemente crítica de todos os discursos sobre a defesa dos direitos das mulheres, e apontar constantemente os riscos e os possíveis erros dessas reclamações. Ao passo que uma Igreja viva pode (...) repassar a história e reconhecer uma longa trama de autoritarismo por parte dos homens, de sujeição, de várias formas de escravidão, abusos e violência machista." (Christus Vivit, 42)
Papa Francisco

O Papa posiciona-se contra a “pregação puramente moralista ou doutrinadora” e contra as homilias que transformam em “lição de exegese” — e pede aos padres que sejam sintéticos nas homilias, pronunciando-as com “proximidade cordial”, “tom caloroso” e “alegria” nos gestos. E pede-lhes também coerência: “Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres, muito exigentes com os outros, que ensinavam a Palavra de Deus mas não se deixavam iluminar por ela.”

Francisco exorta também os padres católicos a usar “linguagem positiva” quando falam para o povo. Uma boa homilia “não diz tanto o que não se deve fazer, como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor”. Ou seja: os padres devem evitar dirigir-se aos fiéis (e, especialmente, aos jovens) com um tom de condenação permanente das coisas do mundo, recorrendo a discursos moralistas e doutrinadores, optando em vez disso por escutar as vozes do mundo e compreender como podem propor de modo eficaz a mensagem da Igreja Católica a quem os ouve.

Na exortação Christus Vivit, o Papa Francisco acrescenta, a título de exemplo: “Uma Igreja demasiado temerosa e estruturada pode ser constantemente crítica de todos os discursos sobre a defesa dos direitos das mulheres, e apontar constantemente os riscos e os possíveis erros dessas reclamações. Ao passo que uma Igreja viva pode reagir prestando atenção às legítimas reivindicações das mulheres, que pedem maior justiça e igualdade; pode repassar a história e reconhecer uma longa trama de autoritarismo por parte dos homens, de sujeição, de várias formas de escravidão, abusos e violência machista.”

Na cerimónia de abertura da Jornada Mundial da Juventude de 2019, no Panamá, o Papa Francisco sintetizou a proposta da Igreja Católica para os jovens sem condenações e sem moralismos, ao contrário do discurso habitual dos setores mais radicalmente conservadores, classificando o “amor do Senhor” como algo “que se entende mais de levantamentos que de quedas, de reconciliação que de proibições, de dar nova oportunidade que de condenar, de futuro que de passado”.

A vergonha de ter fé — e a coragem de nadar contra a corrente

Quando aterrou em Madrid em 18 de agosto de 2011, para presidir à Jornada Mundial da Juventude daquele ano, o Papa Bento XVI deixou uma primeira mensagem aos jovens reconhecendo as muitas dificuldades que a juventude dos dias de hoje enfrenta: os conflitos violentos em muitos lugares do mundo, os interesses ideológicos que ameaçam a justiça e o valor humano, os problemas ambientais, a preocupação com o trabalho e o perigo das drogas.

Naquela mensagem, dirigida aos jovens ainda no aeroporto da capital espanhola, Bento XVI acrescentou um outro elemento à longa lista de desafios contemporâneos da juventude: “Há muitos que, por causa da sua fé em Cristo, são vítimas de discriminação, que gera o desprezo e a perseguição, aberta ou dissimulada, que sofrem em determinadas regiões e países.”

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Depois da edição do Panamá, a JMJ chega em agosto deste ano a Lisboa

Mondadori via Getty Images

O Papa alemão optou por não se referir exclusivamente à perseguição aberta e violenta contra os cristãos, que existe em vários países do mundo, mas mencionou também a discriminação “dissimulada” dos cristãos — especialmente presente no continente europeu, profundamente secularizado. Bento XVI abordava, naquela mensagem, um assunto fundamental para os jovens católicos da Europa, sobretudo em Espanha, um país onde a JMJ tinha sido antecedida de violentos protestos anti-clericais: a vergonha que muitos jovens sentem por ter fé num contexto de grande secularização. “Volto a dizer aos jovens, com todas as forças do meu coração: Que nada e ninguém vos tire a paz; não vos envergonheis do Senhor”, pediu-lhes Bento XVI

O Papa Francisco também dedicaria uma atenção especial a esta questão. Na sua primeira encíclica, Lumen Fidei, publicada logo em junho de 2013 e resultante, em grande parte, de um trabalho já iniciado por Bento XVI, o Papa Francisco regressa ao problema da vergonha de ter fé: “Porventura vamos ser nós a envergonhar-nos de chamar a Deus ‘o nosso Deus’? Seremos por acaso nós a recusar-nos a confessá-Lo como tal na nossa vida pública, a propor a grandeza da vida comum que Ele torna possível?”

Na mensagem à juventude em 2019, o pontífice argentino reconhece que vários jovens, “por causa da sua fé, têm dificuldade em encontrar um lugar nas suas sociedades e sofrem vários tipos de perseguição”.

Seis anos antes, na homilia que dirigiu aos jovens que crismou na Praça de São Pedro em abril de 2013, o Papa Francisco já tinha reconhecido as dificuldades de afirmação da juventude católica no mundo contemporâneo e deixado um apelo: não tenham medo de nadar contra a corrente. “O caminho da Igreja e também o nosso caminho pessoal de cristãos não são sempre fáceis, encontramos dificuldades, tribulações. Seguir o Senhor, deixar que o seu Espírito transforme as nossas zonas sombrias, os nossos comportamentos em desacordo com Deus e lave os nossos pecados, é um caminho que encontra muitos obstáculos fora de nós, no mundo, e dentro de nós, no coração”, disse-lhes o Papa.

“Permanecei firmes no caminho da fé, com segura esperança no Senhor. Aqui está o segredo do nosso caminho. Ele dá-nos a coragem de ir contra a corrente. Sim, jovens; ouvistes bem: ir contra a corrente. Isto fortalece o coração, já que ir contra a corrente requer coragem e Ele dá-nos esta coragem”, acrescentou. “Não há dificuldades, tribulações, incompreensões que possam meter-nos medo, se permanecermos unidos a Deus como os ramos estão unidos à videira, se não perdermos a amizade com Ele, se lhe dermos cada vez mais espaço na nossa vida.”

Dar testemunho “no estudo, no desporto, nas saídas com os amigos”

Desde que foi criada por João Paulo II, na década de 1980, a Jornada Mundial da Juventude tem servido como grande fórum global da juventude católica. Além da experiência espiritual e humana proporcionada pelo evento, os papas têm procurado aproveitar o encontro com mais de um milhão de jovens para escutar os anseios e inquietações das novas gerações — e para procurar compreender como a Igreja lhes pode dar resposta. Temas como a precariedade laboral, os desafios da família, a crise económica ou a doutrina sexual da Igreja têm sido amplamente discutidos na JMJ, em fóruns de maior ou menor dimensão.

Este tem, aliás, sido um desígnio do Papa Francisco: não faz sentido isolar os jovens católicos do mundo onde vivem. Reduzir a pastoral juvenil a um conjunto de ideias abstratas discutidas por grupos constituídos exclusivamente por jovens católicos fora dos contextos sociais, políticos, culturais e económicos em que vivem é um erro que afasta a proposta cristã da esmagadora maioria da juventude, defende Francisco.

“Às vezes, por pretender uma pastoral juvenil asséptica, pura, caracterizada por ideias abstratas, afastada do mundo e preservada de toda a mancha, reduzimos o Evangelho a uma proposta insípida, incompreensível, distante, separada das culturas juvenis e adaptada só a uma elite juvenil cristã que se sente diferente, mas na verdade flutua num isolamento sem vida nem fecundidade”, adverte o Papa Francisco na exortação Christus Vivit.

"Às vezes, por pretender uma pastoral juvenil asséptica, pura, caracterizada por ideias abstratas, afastada do mundo e preservada de toda a mancha, reduzimos o Evangelho a uma proposta insípida, incompreensível, distante, separada das culturas juvenis e adaptada só a uma elite juvenil cristã que se sente diferente, mas na verdade flutua num isolamento sem vida nem fecundidade." (Christus Vivit, 232)
Papa Francisco

O pontífice argentino alerta para o risco de uma pastoral juvenil baseada em “projetos que isolem os jovens da família e do mundo, ou que os transformem numa minoria seleta e preservada de todo o contágio”. O perigo, especialmente presente em zonas urbanas, de classe média e alta, com uma forte presença da Igreja, é o de alienar os jovens dos seus contextos quotidianos — onde, diz o Papa, devem dar testemunho da fé sem tabus ou vergonhas.

No areal da praia de Copacabana, na missa de encerramento da JMJ do Rio de Janeiro, em 2013, o Papa Francisco perguntou aos mais de três milhões de jovens ali reunidos: “Para onde Jesus nos manda?” A resposta chegou em forma de apelo: “Não há fronteiras, não há limites: envia-nos para todas as pessoas. (…) Não tenham medo de ir e levar Cristo para todos os ambientes, até as periferias existenciais, incluindo quem parece mais distante, mais indiferente.” Francisco repetiu, em múltiplas ocasiões, que não quer os jovens fechados em grupos católicos, alheados do mundo real. Pelo contrário, na exortação Christus Vivit pede à juventude que leve “o anúncio missionário aos locais onde nos encontrarmos e às pessoas com quem convivermos: no bairro, no estudo, no desporto, nas saídas com os amigos, no voluntariado ou no emprego”.

Um Papa confortável nos temas fraturantes

Em março deste ano, quando a Disney divulgou o trailer do documentário que divulgaria no mês seguinte nas suas plataformas de streaming, foi grande a agitação na imprensa católica. O Papa Francisco já tinha quebrado algumas regras durante o pontificado, ao deixar cair certos tabus para falar abertamente de temas como a homossexualidade e os direitos das mulheres, mas aquele era um novo nível: um documentário na Disney em que Francisco falava abertamente com jovens sobre todos os tabus que ensombram a Igreja.

Os produtores do documentário não pouparam nas polémicas: entre os dez participantes (todos de língua espanhola entre os 20 e os 25 anos) encontravam-se uma vítima de abusos na Igreja, uma pessoa não-binária, uma jovem produtora de pornografia, uma jovem que já tinha feito um aborto e uma ativista feminista. Durante uma hora e vinte minutos, o Papa Francisco não se esquiva a nenhuma pergunta, nem mesmo às mais difíceis.

Ao longo do documentário, Francisco repete em linguagem simples algumas das ideias mais marcantes do seu pontificado, incluindo a ideia de que “a verdadeira Igreja está nas periferias” e o apelo para que a Igreja não se converta num “clube de gente simpática (…) que cumpre os seus deveres religiosos mas não tem a coragem de sair para as periferias”. O Papa também responde às questões sobre a ordenação de mulheres com a perspetiva de que esse pedido corresponde a uma demonstração de clericalismo e, sobre o problema do aborto, assegura que Jesus acompanharia sempre uma mulher que fizesse um aborto — mesmo que a Igreja considere que é errado fazê-lo.

Numa das declarações mais controversas de todo o documentário, quando questionado sobre vários tópicos relacionados com a doutrina sexual da Igreja Católica (como as condenações da masturbação, da homossexualidade ou da pornografia), o Papa Francisco afirma que a doutrina da Igreja sobre as questões do sexo ainda está “de fraldas”, ou seja, na infância, a precisar de mais desenvolvimento. A declaração não mudou absolutamente nada na doutrina da Igreja sobre as questões da moral sexual — mas abriu as portas a críticas duríssimas por parte dos segmentos mais conservadores da Igreja.

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Mais de um milhão de jovens são esperados em Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude de 2023

Corbis via Getty Images

Ao trazer para a informalidade de um documentário da Disney muito do que disse e escreveu nos contextos formais das homilias, discursos e documentos papais, Francisco chegou de uma forma radicalmente nova às gerações mais jovens, aproximando-se das suas preocupações, inquietações e pontos de vista — e até reconhecendo que existe uma desilusão da juventude com a Igreja, mas não necessariamente com Deus.

Ao longo de dez anos de um pontificado que começou logo com a colocação da questão LGBT na agenda católica (com a célebre declaração “quem sou eu para julgar?”, proferida na sua primeira viagem internacional), o Papa Francisco construiu várias pontes para retomar um contacto com os jovens que a Igreja Católica parecia ter perdido — e bastou-lhe abordar, no seu discurso, os temas que mais preocupam a juventude contemporânea. Falar abertamente dos direitos das mulheres, das questões do trabalho, da crise económica, da defesa dos direitos da comunidade LGBT e, sobretudo, a preocupação em colocar os jovens no centro dos próprios esforços de evangelização da juventude foram fundamentais para aproximar o Papa da juventude.

Mais de um milhão de jovens de todo o mundo, especialmente europeus, são esperados em Lisboa esta semana para a Jornada Mundial da Juventude. O muito que Francisco disse e escreveu sobre e para a juventude nos últimos dez anos dá pistas para antecipar o que o líder da Igreja poderá dizer aos jovens que se vão reunir em Lisboa. Resta, ainda assim, saber o que é que, num tempo marcado por desafios tão concretos — a guerra de volta ao continente europeu, a recessão económica e as dificuldades da nova geração no acesso à habitação e ao emprego —, Francisco terá para comunicar à primeira geração de adultos do terceiro milénio.

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