“Os adeptos que fizeram todo o percurso no interior da Academia assumiram um papel em que se confundem com o clube de que dizem gostar, que se sintetiza na frase que gritaram ‘O Sporting somos nós’. Esse sentimento que lhes tolda a capacidade crítica, fá-los assumir que estavam a exercer um direito próprio de sancionarem os seus próprios atletas (…) Este sentimento pessoal acrescido da noção de que o ‘mundo do futebol’ é ‘um mundo à parte’ leva a que as necessidades de prevenção especial sejam particularmente elevadas”
(Acórdão de 28 de maio de 2020)
18 de novembro de 2019. 44 arguidos, todos eles adeptos do Sporting e um deles ex-presidente do clube, chegam ao Tribunal de Monsanto, em Lisboa, para serem julgados por 40 crimes de ameaça agravada, 19 de ofensas à integridade física qualificada, 38 de sequestro, todos crimes classificados como terrorismo. Só três dos arguidos, Bruno de Carvalho, o líder da claque Juventude Leonina, Nuno Mendes, e o oficial de ligação aos adeptos, Bruno Jacinto, respondem como autores morais desses crimes. O despacho, confirmado por um juiz de instrução criminal, acusa também os outros 41 autores dos crimes de dano com violência, um crime de detenção de arma proibida agravado e um crime introdução em lugar vedado ao público.
Seis meses depois, os mesmos 44 arguidos saem do Tribunal de Monsanto de uma maneira diferente: afinal o que os autores morais fizeram não se provou sequer ser crime e foram absolvidos. Os restantes foram condenados em penas diferentes consoante a sua intervenção na invasão à academia de Alcochete naquele dia 15 de maio de 2018. Uma perspetiva diferente do Ministério Público, que acusou todos por igual, mas mais de encontro à procuradora do Ministério Público que acompanhou o julgamento. Nenhum dos arguidos foi condenado por crimes relacionados com terrorismo e os crimes pelos quais foram condenados nem sequer integram o leque dos crimes considerados como criminalidade violenta, pelo que nenhuma das vítimas – entre jogadores e equipa técnica – terá direito a indemnização.
Os 37 adeptos agora condenados por crimes de ofensa à integridade física qualificada e ameaça agravada tinham apenas um alvo: os jogadores e treinador principal da equipa profissional do Sporting, pelo seu fraco desempenho. Segundo o acórdão do coletivo de juízas, presidido por Sílvia Pires, porém, para estarmos perante crimes de terrorismo a intenção não pode ser apenas essa, tem que ir mais além e querer atingir a população em geral e por em causa da paz pública. “Não tendo os arguidos perpetrado as suas condutas sobre estes ofendidos para desta forma intimidar certas pessoas, grupo de pessoas ou a população em geral” e mesmo as agressões não tendo lesado mais ninguém, senão os próprios, nem pondo em causa a paz pública, não configuram crimes de terrorismo.
– Não se podendo confundir o alarme social causado pela prática de determinados crimes, com a ofensa da paz pública enquanto bem jurídico autónomo, lembra.
Outros dois crimes que caíram durante o julgamento foram de dano com violência. Em tribunal ficou provado que, afinal, as portas do edifício da ala profissional da Academia nem sequer ficaram danificadas, nem a porta de acesso ao corredor, nem a do balneário, logo os arguidos foram absolvidos deste crime. Já quanto ao Porsche que foi amolgado no estacionamento, provou-se em tribunal que o autor do crime foi o arguido Rúben Marques, logo só ele foi condenado por este crime, enquanto os restantes foram absolvidos.
Invasão a Alcochete. Ex-presidente do Sporting Bruno de Carvalho absolvido
Todos os arguidos estavam também acusados de posse de arma ilegal, por causa das tochas usadas no ataque. Mas também aqui o entendimento das juízes divergiu bastante com o da procuradora Cândida Vilar, que assinou a acusação. Ou até mesmo com o juiz Carlos Delca, que além de ter feitos os primeiros interrogatórios judicias aos arguidos e de os ter colocado em prisão preventiva, foi também que os pronunciou, confirmando a acusação. No entanto, lembram as juízas, há uma nova lei que prevê a posse de material pirotécnico, logo não é crime.
Só dois arguidos foram, no entanto, condenados por posse de arma proibida, mas eram armas que tinham em casa aquando as buscas.
Quando definiu as penas de cada um, o Tribunal teve em conta a intervenção dos arguidos naquele dia e separou os que entraram no balneário, dos que ficaram no lado de fora. No entanto, o coletivo deixou claro no acórdão que, apesar de haver um grupo que acordou a invasão e que chamou o outro grupo, “0 facto de os arguidos Bruno Monteiro, Joaquim Costa, Fernando Barata, Elton Camará, Sérgio Santos, Getúlio Fernandes, Luís Almeida, Nuno Torres e Gustavo Tavares, que seguiram sempre na retaguarda do grupo e que também entraram nas instalações da academia sem autorização, bem sabendo não estar autorizados a entrar e que agiam sem o consentimento e contra a vontade do legitimo proprietário, não terem entrado no edifício da ala profissional de futebol e assim não terem agredido, nem ameaçado nenhum dos ofendidos, percorrendo apenas a zona exterior de acesso ao referido edifício, vendo o restantes arguidos a sair do mesmo, não afasta que tenham agido em coautoria com os restantes arguidos quanto aos crimes de ofensa à integridade física qualificada e ameaça agravada, cujos atos materiais tiveram lugar no interior do edifício”, lê-se.
“Estes arguidos, tais como os restantes, agiram de acordo com o por estes planeado, agindo em grupo”, concluiu.
As (diferentes) penas aplicadas, da absolvição aos cinco anos de pena efetiva
O acórdão do caso de Alcochete, a que o Observador teve acesso, teve assim oito decisões diferentes em relação aos 44 arguidos entre absolvições, penas de multa, penas suspensas por cinco anos com diferentes molduras e duas penas distintas para os nove arguidos que ficarão em prisão efetiva.
Quatro arguidos foram condenados pelo crime de introdução em lugar vedado ao público. Entre os outros 37, todos tiveram penas por quatro crimes: 1 mês e 15 dias no que respeita ao crime de introdução em lugar vedado ao público; 2 anos de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada contra o jogador Bas Dost; 1 ano e 6 meses de prisão por cada um dos restantes 16 crimes de ofensa à integridade física qualificada; 10 meses de prisão por cada um dos onze crimes de ameaça agravada. A isso juntou-se mais 10 meses de prisão pela prática do crime de dano para Rúben Marques; mais 1 ano e 4 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de droga de menor gravidade para João Gonçalves; e mais 1 ano e 2 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de droga de menor gravidade para Sérgio Santos. Assim, as penas aplicadas resumem-se da seguinte forma:
Absolvidos
- Bruno de Carvalho (48 anos)
- Nuno Mendes (42 anos)
- Bruno Jacinto (42 anos)
Pena de multa de 40 dias à taxa diária de 8 euros
- Tiago Rodrigues (21 anos)
- Samuel Teixeira (20 anos)
- Tomás Fernandes (19 anos)
- Guilherme Oliveira (21 anos)
Pena única de 3 anos e 10 meses suspensa por 5 anos, integração no programa de treino de competências sociais, composto por 16 sessões, na Associação “O Companheiro”, bem como a proibição de integrar e participar em atividades e movimentos associados a grupos organizados de adeptos e de frequentar recintos desportivos nesse período
- Afonso Ferreira (21 anos)
Pena única de 4 anos e 6 meses suspensa por 5 anos, 200 horas de trabalho comunitário e proibição de integrar e participar em atividades e movimentos associados a grupos organizados de adeptos e de frequentar recintos desportivos nesse período
- Guilherme Sousa (27 anos)
- Valter Semedo (25 anos)
- Tiago Silva (30 anos)
- Sérgio Costa (34 anos)
- João Calisto Marques (26 anos)
- Jorge Almeida (31 anos)
- João Gomes (25 anos)
- Miguel Ferrão (25 anos)
- Ricardo Neves (24 anos)
- Emanuel Calças (23 anos)
- Gustavo Tavares (36 anos)
- Nuno Alves (28 anos)
- Filipe Ferreira (23 anos)
- João Montez (24 anos)
- Joaquim Costa (34 anos)
- Paulo Patarra (25 anos)
- Daniel Lavaredas (38 anos)
- Celso Cordeiro (31 anos)
- Eduardo Nicodémes (48 anos)
- Hugo Ribeiro (42 anos)
Pena única de 4 anos e 8 meses suspensa por 5 anos, 200 horas de trabalho comunitário e proibição de integrar e participar em atividades e movimentos associados a grupos organizados de adeptos e de frequentar recintos desportivos nesse período
- Luís Almeida (29 anos)
- Pedro Santos (37 anos)
- António Catarino (26 anos)
- Filipe Alegria (23 anos)
Pena única de 4 anos e 10 meses suspensa por 5 anos, 200 horas de trabalho comunitário e proibição de integrar e participar em atividades e movimentos associados a grupos organizados de adeptos e de frequentar recintos desportivos nesse período
- Rúben Marques (21 anos)
- João Gonçalves (39 anos)
- Sérgio Santos (49 anos)
Pena única efetiva de 4 anos e 8 meses
- Tiago Neves (29 anos)
Pena única efetiva de 5 anos
- Domingos Monteiro (25 anos)
- Pavlo Antonchuk (24 anos)
- Bruno Monteiro (32 anos)
- Elton Camará (37 anos)
- Fernando Barata (50 anos)
- Nuno Torres (34 anos)
- Leandro Almeida (35 anos)
- Getúlio Fernandes (41 anos)
Como os arguidos se portaram até conhecerem as penas
O coletivo de juízas também teve em conta o comportamento de cada um dos arguido ao longo do período em que lhes foi aplicada uma medida de coação. Com base nos relatórios dos Serviços de Reinserção Social, o coletivo concluiu que houve apenas dois arguidos que tiveram dificuldades em cumprir de horários ou que tiveram uma postura arrogante de não colaboração. Um deles foi Elton Camará (mais conhecido por Aleluia), que “incumpriu as regras inerentes ao confinamento, o que levou à revogação da medida e à sua substituição por prisão preventiva”. A esmagadora maioria dos arguidos é descrita como “social, familiar e profissionalmente integrados”.
Muitos dos arguidos, de acordo com os relatórios que foram chegando ao coletivo de juízas, apresentavam condições socio-económicas “médias”, alguns até “acima da média”. E foi também tendo isso como base que foram evoluindo as situações no plano pessoal de todos, sobretudo depois da saída em liberdade com pulseira eletrónica, com mais de metade a voltar a ter uma atividade profissional e/ou voltar à vida académica e alguns casos em que voltaram para casa dos pais, estão a procurar casa com a namorada ou encontraram mesmo casa para viver com a companheira.
Alguns casos em concreto: Tiago Neves voltou à faculdade e conseguiu terminar duas cadeiras que tinha ainda em atraso por exame, Afonso Ferreira regressou também à sua licenciatura em Gestão e Emanuel Calças voltou às suas aulas do mestrado em Gestão de Recursos Humanos; há também exemplos de pelos menos dois arguidos que frequentaram não só a biblioteca mas também alguns cursos como o de “Educação e Formação de Adultos”, o que, em termos de decisão, foi refletido na frase “O período de prisão preventiva foi o vetor de reflexão sobre a necessidade de mudança comportamental, a par do afastamento do grupo de pares prócriminais”.
Uns conseguiram emprego, outros voltaram à escola
Em termos laborais, há exemplos de quem tenha voltado a trabalhar na construção civil como servente de pedreiro, em cabeleireiros e barbearias, em empresas ligadas à restauração, em lojas ligadas a marcas desportivas e/ou vestiário, como operador especialista ou em empresas especializadas (neste caso aproveitando a fluência de línguas) ou numa Câmara Municipal. Entre dois arguidos que tinham um café, um ainda conseguiu aguentar o negócio com ajuda dos familiares, outro teve mesmo de fechar e encontrar trabalho na construção civil. E também há quem esteja a terminar a carta de pesados ou prestes a entrar em cursos profissionais.
Vários arguidos revelaram em julgamento que pretendiam afastar-se do fenómeno desportivo ou, pelo menos, dos grupos organizados de adeptos. No entanto, são vários os reparos feitos no acórdão e que ajudam também a explicar o que se passou no dia 15 de maio de 2018, entre pessoas com problemas “resultantes de défices na gestão da raiva e controlo dos impulsos”, com défices de competências pessoais e sociais e sobretudo permeáveis e com tendência para se deixarem influenciar em atos em grupo. Tudo catapultado por estar em causa o futebol ou um movimento com contexto desportivo, o que é igualmente refletido nas considerações feitas pelo coletivo.
“O futebol como desporto de massas fomenta e potencia, atenta as respetivas paixões clubísticas, fenómenos de violência grupal, entre adeptos de clubes rivais e de adeptos para com árbitros, jogadores e/membros das equipas técnicas, o que aliás motivou a existência de uma lei de segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos em segurança e de acordo com os princípios éticos inerentes à sua prática. Aliás, a forte carga emotiva que o fenómeno desportivo acarreta acaba por servir de pretexto a comportamentos desviantes, muitas vezes praticados em contexto de grupo”, destaca a certa altura o acórdão da decisão do caso de Alcochete.