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“Nem nós acreditamos na vitória.” O desabafo foi feito dois dias antes da segunda volta das eleições pelo cabeça-de-lista do Partido Socialista dentro da Nova Frente Popular (NFP), Olivier Faure, conta o Le Monde esta terça-feira. Menos de uma semana depois, tudo se inverteu: não apenas a NFP foi o bloco mais votado nas eleições de domingo, como Faure declara esta terça-feira a sua disponibilidade para o cargo de primeiro-ministro: “Estou preparado para assumir o papel, mas em diálogo com os nossos parceiros.”
Após a festa da noite eleitoral, contudo, começa agora a dor de cabeça típica da ressaca para a esquerda francesa. Os seus partidos têm agora de se entender para tentar governar, quando dispõem de uma maioria na Assembleia Nacional, mas não absoluta. E, com um pormenor que não é de somenos: qualquer nome de candidato a primeiro-ministro tem de ter a aprovação do Presidente, Emmanuel Macron.
Com Macron a não aceitar para já a demissão de Gabriel Attal, o relógio está a contar — mas ainda é o Presidente quem dita os timings e, no Eliseu, prefere ganhar-se tempo: “O governo ainda tem uma margem significativa de manobra para gerir o país, porque a lei dá-lhe [poderes] sobre uma série de áreas: liberdades públicas, lei eleitoral, lei penal, etc. Ao mesmo tempo que mantém um poder de regulação autónomo, através de um conjunto de decretos, ordens, circulares, etc.”, resume em entrevista o professor de Direito Julien Boudon.
Por outras palavras, o país continua a funcionar — ainda para mais com os Jogos Olímpicos ao virar da esquina. E, enquanto os novos deputados se instalam nos gabinetes da Assembleia Nacional, as negociações se fazem nos bastidores. Mas que negociações são essas e que hipóteses estão em cima da mesa?
Socialistas e mélenchonistas lutam por dominar coligação Mas “não houve ninguém a bater portas”, dizem
Em primeiro lugar, a NFP tem de arrumar a casa. Anunciada uma reunião para esta segunda-feira, não parecem ter saído grandes conclusões de que nome apresentar como possível primeiro-ministro nem que aliança formar na Assembleia Nacional para ter maioria. A ecologista Sandrine Rosseau, na receção ao Parlamento esta terça-feira, tentou passar uma imagem de tranquilidade sobre a reunião da véspera: “Não houve ninguém a bater portas, nem houve tensão. Só precisamos de tempo”, disse, prometendo que seria apresentado um nome nos próximos dias.
Mas os líderes da NFP também sabem que não podem arrastar demasiado o processo, por correrem o risco de perderem a crista da onda e deixarem o Presidente Macron tomar a dianteira. Por enquanto, mesmo sem bater de portas, há uma guerra em surdina dentro da própria coligação, entre socialistas e a França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon para assumir a dianteira dentro da frente da esquerda. Terminada a contagem de votos, os Insubmissos contam com mais lugares na Assembleia (71) do que os socialistas (64).
Isso não significa, porém, que o próximo primeiro-ministro seja da FI. Para além de Macron ter deixado claro que traçará uma linha vermelha ao nome de Mélenchon, dentro da NFP há a consciência de que outro nome vindo das fileiras dos Insubmissos — como Clémence Guetté, frequentemente sugerida por Mélenchon — poderia levar a que um governo da NFP sofresse uma moção de censura na Assembleia (já que a NFP não dispõe de maioria absoluta).
Para além disso, vários deputados que concorreram com o partido de Mélenchon, como François Ruffin, Clémentine Autain e Alexis Corbière já anunciaram que não irão sentar-se na bancada do partido — acalentando a esperança dos socialistas de que o seu grupo parlamentar venha a insuflar-se ao longo dos próximos dias.
Razões pelas quais os socialistas, amparados pelos ecologistas, sonham com nomes do centro-esquerda como Boris Vallaud, Laurent Berger ou o próprio Faure, para o cargo de primeiro-ministro. “Vai tudo depender de uns quantos Insubmissos”, dizem. Se o PS se tornar a maior força da NFP na Assembleia Nacional, terá então legitimidade para sugerir o chefe de governo, diz-se entre as fileiras do partido. E, em público, já estendem mais a mão ao centro do que a Mélenchon: “Somos claros, mas não somos sectários”, disse esta manhã a número dois do PS, Johanna Rolland, numa entrevista televisiva. “Se alguns macronistas de centro-esquerda se quiserem unir à base da Nova Frente Popular, estamos abertos”.
Macron ainda não telefonou a ninguém da Nova Frente Popular. Esquerda teme que macronismo vire à direita para os Republicanos
Um plano que, é claro, só funcionará para alcançar uma maioria se houver entendimento com pelo menos parte do centro da macronie (composto por três partidos — Renascença, Horizontes e MoDem — e várias sensibilidades internas). Alguns parecem estar dispostos a tal, desde que a esquerda se comprometa a deixar à porta a FI de Mélenchon: “As nossas linhas vermelhas são claras: apoio à Europa e à Ucrânia, nada de cedências no secularismo e na luta contra o racismo e o antissemitismo”, voltou a dizer o secretário-geral do Renascença (e ministro dos Negócios Estrangeiros) Stéphane Séjourné numa coluna publicada no Le Monde esta terça-feira. “Isto necessariamente exclui Jean-Luc Mélenchon e a França Insubmissa da equação do governo.” Vários deputados, como Benjamin Haddad e Mathieu Lefèvre, ameaçaram mesmo com uma possível moção de censura a um futuro governo que inclua membros do FI.
Mas a aritmética de uma Assembleia fragmentada permite sempre outro tipo de geometrias — e, à esquerda, há quem tema que os macronistas se virem para os Republicanos (centro-direita) — e tentem formar uma maioria à direita se a esquerda não se alinhar rapidamente. “Ele conseguiria uma maioria relativa com mais umas dezenas de lugares. Pode levar-nos ao engano”, nota um dos membros dos Verdes ao Le Figaro.
O medo adensa-se pelo facto de, por exemplo, Emmanuel Macron ainda não ter feito um único telefonema a nenhum dos líderes da NFP, confirmou o Le Monde. Mas, do Eliseu, a palavra que vem é de que o Presidente está apenas a “deixar o pó assentar”.
Por essa razão, a esquerda posiciona-se e tenta dar sinais de força. Esta terça-feira à tarde, os líderes da NFP exigiram ao Presidente que entre em conversações com o grupo para “formar um novo governo”, numa tentativa de pressão para evitar uma guinada à direita por parte do Presidente. Muito embora a própria frente de esquerda esteja longe de ter um nome consensual para apresentar.
De qualquer forma, mesmo uma solução mais à direita daria ao Presidente apenas uma maioria relativa (e não absoluta) e, com a esquerda a sentir-se arredada, dificilmente contaria com uma abstenção que lhe permitisse formar governo. Como notou o jurista Julien Boudon esta terça-feira, “a única regra que condiciona a ação [do Presidente] é que o governo que nomear tem de ser capaz de se manter: não pode ser sujeito a uma moção de censura, nem pode não vencer uma moção de confiança, se a pedir. Se um caso ou outro ocorrer, tem de se demitir.”
Perante este cenário, nada resta aos franceses a não ser esperar pelas negociações. Formalmente, os novos grupos parlamentares têm de se formar até ao dia 18 de julho, o que dá alguns dias de respiração a todos os partidos para negociarem nos bastidores — e respirarem um pouco em privado, enquanto mantêm uma postura pública desafiante. O mesmo para Emmanuel Macron que, comenta o antigo senador do centro-direita Pierre Charon, “se está a tornar como Mitterrand: sempre a dar tempo ao tempo”. O relógio está a contar e, mais cedo ou mais tarde, Attal terá de ser substituído. A questão é: por quem?