Um “retrato”, alguns “livros de Direito” e uns “artigos decorativos”. Foram estes objetos pessoais deixados por uma colega num dos gabinetes do tribunal de Faro que levaram a juíza Andreia Amaral da Cruz a alegar falta de condições para trabalhar e a adiar entre cinco a seis julgamentos este mês de novembro.
A “birra” da magistrada — é assim que é classificada a sua atitude por parte de uma fonte judicial — levou a um protesto por escrito em despachos judiciais. Porquê? Porque estava a trabalhar “no corredor” do tribunal, sem “secretária” e só “os dados móveis” do seu telefone pessoal podia “aceder à internet”, lê-se no despacho a que o Observador teve acesso.
Um dos julgamentos que foram adiados devido aos protestos da magistrada foi um caso de homicídio qualificado em que o arguido com 20 anos está a aguardar as sessões de julgamento em prisão domiciliária por ter morto o pai à facada — alegando em sua defesa que o progenitor maltratou a mãe e os filhos durante 15 anos.
O caso causou tal alarme social na aldeia de Várzea dos Vinagres, concelho de Tavira, que houve mesmo um abaixo-assinado de mil habitantes para libertar Maurício.
O Conselho Superior da Magistratura (CSM), órgão de gestão e disciplinar da magistratura judicial, diz que a situação está resolvida, mas a juíza Andreia Amaral da Cruz arrisca um inquérito disciplinar pela sua conduta.
O gabinete “repleto de objetos pessoais” e o protesto no “corredor” do tribunal
A história, inicialmente divulgada pelo Correio da Manhã, começa em 16 de setembro, quando Andreia Amaral da Cruz passou a estar afeta ao juiz 2 do Juízo Central Criminal de Faro, no qual foi substituir a juíza Ana Lúcia Cruz, que se encontra de baixa.
Cerca de um mês depois, a nova magistrada começou a levantar objeções à permanência no gabinete e fez saber isso mesmo ao juiz-presidente da comarca, Henrique Pavão, que lhe respondeu num email de 24 de outubro que não existia outro gabinete disponível.
No entanto, Andreia Amaral da Cruz não se contentou com a resposta e manifestou também, num email de 28 de outubro, a sua insatisfação ao CSM e à Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP). Ato contínuo, o seu desagrado passou a constar igualmente em despachos proferidos em julgamentos que acabaram adiados por esta situação.
“A aqui juíza presidente deste coletivo não pretende ocupar esse gabinete”, referiu Andreia Amaral da Cruz num despacho de 30 de outubro, a que o Observador teve acesso.
No documento, proferido numa sessão de julgamento que terminou ao fim de somente nove minutos com os advogados e arguidos presentes na sala de audiência, a juíza sublinhou que, desde a resposta do presidente da comarca, passou a permanecer “no corredor, onde não dispõe de uma secretária onde se possa sentar, onde possa consultar autos ou aceder à internet a não ser por via dos seus próprios dados móveis”.
Por isso, sustentou Andreia Amaral da Cruz “que não tem tido condições para exercer a sua função”, recusando ainda “diminuir a qualidade” exigida para as suas funções.
Juízes adjuntos afastam-se de protesto e deixam juíza Andreia Amaral da Cruz isolada
Um pormenor relevante: apesar de ser juíza substituta, Andreia Amaral da Cruz estava na posição de juíza presidente. Isto é, liderava o coletivo composto por três magistrados judiciais.
E os dois juízes adjuntos fizeram questão de cavar um fosso com a juíza presidente, uma vez que o referido despacho não foi acompanhado pelos adjuntos que integravam o coletivo daquele julgamento.
Os juízes Joaquim Jorge da Cruz e Susana Almeida Ribeirou fizeram questão que constasse em ata que o despacho emitido “é de exclusiva responsabilidade” da juíza presidente, “o qual não subscrevem nem concordam”.
A situação repetiu-se ao longo de vários julgamentos — o presidente da comarca, juiz Henrique Pavão, confirmou ao Expresso que as queixas de Andreia Amaral da Cruz levou ao adiamento de “cinco, seis julgamentos”.
O caso do homicídio em Várzeas dos Vinagres e a falta de tempo para estudar o processo
Um dos julgamentos adiados é um caso de homicídio, no qual um estudante de 20 anos está acusado de homicídio qualificado por ter confessado que matou o pai com sete facadas. Um crime particularmente violento, visto que o confesso homicida terá ferido o pai na nuca, no pescoço, no peito e na barriga.
Maurício, assim se chama o arguido, justificou o crime com os maus tratos a que o progenitor terá sujeito a mulher e os filhos ao longo de 15 anos.
O caso causou alarme social na aldeia de Várzeas dos Vinagres, tanto que grande parte da população, cerca de mil habitantes, subscreveu um abaixo-assinado a pedir a libertação de Maurício, o confesso autor do crime que está em prisão preventiva, relata o Expresso.
Maurício encontra-se em prisão domiciliária a aguardar o julgamento, o que faz com que o caso seja prioritário face a outros casos em que os arguidos apenas têm Termo de Identidade e Residência. Mas a primeira sessão do julgamento foi adiada a 7 de novembro por decisão da juíza-presidente Andreia Amaral da Cruz.
Segundo o Expresso, a magistrada alegou que não tinha conseguido estudar o processo devido à falta de gabinete.
O silêncio da juíza e a reação do Conselho Superior da Magistratura
O Observador enviou uma série de perguntas a Andreia Amaral da Cruz para esclarecer o caso e a sua posição relativamente à averiguação determinada pelo CSM, mas a magistrada escudou-se no Estatuto dos Magistrados Judiciais para não fazer comentários.
“Por ora, não irei prestar declarações à comunicação social, por motivos relacionados com o direito/dever de reserva, bem como por outros motivos relacionados com o regime previsto no Estatuto dos Magistrados Judiciais”, afirmou em resposta escrita.
O problema com o gabinete “repleto de vários objetos pessoais” foi entretanto resolvido, segundo o CSM, que garantiu que “todos os objetos pessoais da juíza substituída foram removidos e o gabinete passou a ser utilizado pela magistrada”.
Todavia, a resolução deste problema pode não significar o fim dos problemas para Andreia Amaral da Cruz, que corre o risco de ver ser-lhe instaurado um processo disciplinar.
“O Conselho Superior da Magistratura determinou a realização de uma averiguação sobre esta matéria. O relatório dessa averiguação foi já apresentado ao Conselho e será analisado no Conselho Permanente de 26 de novembro, de acordo com as regras de reserva aplicáveis”, adiantou ao Observador fonte oficial do organismo de gestão e disciplina dos juízes.
Confirmando que após a ocupação do gabinete que lhe foi destinado “ainda foram adiadas algumas diligências”, o CSM vincou que o caso já foi regularizado e que as diligências marcadas em novembro decorreram como previsto.
Apesar disso, “as circunstâncias concretas que levaram aos adiamentos estão a ser averiguadas e serão apreciadas pelo CSM”, nomeadamente pela secção disciplinar do órgão de gestão da magistratura judicial.
Na próxima terça-feira, a juíza Andreia Amaral da Cruz saberá se o episódio lhe vai custar o primeiro inquérito disciplinar da sua curta carreira.
Texto alterado às 19h14m