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Juan Fernandéz Krohn tinha 34 anos quando tentou matar João Paulo II. Hoje, aos 76, diz que acha que essa nunca foi realmente a sua intenção: "Foi uma puerilidade minha. Não queria matá-lo, queria acabar com aquele star power"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Juan Fernandéz Krohn tinha 34 anos quando tentou matar João Paulo II. Hoje, aos 76, diz que acha que essa nunca foi realmente a sua intenção: "Foi uma puerilidade minha. Não queria matá-lo, queria acabar com aquele star power"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

"Condenaram-me pela minha confissão." Entrevista a Juan Fernández Krohn, o padre que tentou matar o Papa em Fátima

Em 1982, o padre Krohn tentou matar João Paulo II em Fátima. Condenado num dos casos mais mediáticos da justiça nacional, hoje vive em Bruxelas, e falou com o Observador para o podcast "Matar o Papa".

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Estão zero graus em Bruxelas.

A capital da Bélgica está em alerta vermelho e prepara-se para aquilo que há de ser descrito como um dos piores nevões dos últimos tempos. Há comboios e voos cancelados e, no dia seguinte, será registada a maior queda de neve desde 2013 na cidade.

Juan Fernández Krohn desculpa-se pelo atraso à chegada ao local combinado, um hotel junto à imponente Avenida Louise, no central bairro de Ixelles. Vem diretamente da Biblioteca Real de Bruxelas, o lugar onde passa grande parte dos dias, a ler, a investigar e a escrever textos para o blogue que criou em 2005.

O hotel fica a poucos metros do prédio onde viveu durante vários anos, quando se fixou na capital belga. O espanhol ainda reconhece a janela daquele que foi, noutra vida, o seu apartamento. Lamentavelmente, a situação em que hoje se encontra é bem diferente da desses tempos. Está “há vários meses sem domicílio fixo”, explica ao Observador.

Desde que se mudou para a Bélgica, em 1987, o espanhol viveu numa série de casas diferentes — que sempre conseguiu pagar, apesar da fragilidade económica e laboral de que nunca conseguiu sair verdadeiramente. Mas não resistiu à recente crise imobiliária que tem provocado um forte impacto em toda a Europa. Foi confrontado com uma “subida astronómica” da renda por parte do proprietário do apartamento onde morava. “Pôs-me na rua porque queria vendê-lo”, conta. “Agora estou numa situação de risco.”

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Aos 74 anos, vive numa casa de acolhimento da câmara municipal, que alberga pessoas que não têm casa própria e se encontram em situação económica frágil. Já teve vários conflitos com outros residentes — e lamenta que paire sobre si a “ameaça de expulsão da Bélgica”, devido à “condição de estrangeiro”.

Juan Fernández Krohn encontra-se com o Observador num hotel na rua onde viveu durante vários anos, no centro de Bruxelas

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Está na capital belga há quase quatro décadas. E, de vez em quando, volta a surgir nas páginas dos jornais, lamenta. Diz que “de tempos a tempos” se lembram dele para “linchamentos sem a menor misericórdia”; queixa-se de ter tido uma vida difícil por ter sido colocado “no pelourinho como um criminoso, como um inimigo público”.

Ainda assim, aceita sentar-se com o Observador durante duas horas para uma longa entrevista em que conta os detalhes da sua vida, antes e depois do momento que lhe definiu o destino: o dia em que tentou assassinar o Papa João Paulo II no Santuário de Fátima.

Juan Fernández Krohn, o homem que na década de 1980 esteve no centro de um julgamento que colocou a justiça portuguesa na mira da imprensa internacional, conta a sua história na primeira pessoa em “Matar o Papa”, o mais recente Podcast Plus do Observador.

É a história de um padre ultra-conservador e obcecado com a infiltração do comunismo na igreja católica que, a 12 de maio de 1982, tentou matar o Papa em Fátima. E é também a história do misterioso segredo, fechado num cofre, que unia os dois homens — e os fez coincidir no Santuário, naquele mesmo dia, com propósitos totalmente opostos.

“Matar o Papa” é uma série que cruza a conturbada história de vida de Juan Fernández Krohn (que acreditava ter como “missão” matar o Papa, que considerava o “anticristo”) com os complexos desenvolvimentos da Guerra Fria na década de 1980, a eleição do primeiro Papa da Europa de Leste e as guerras internas entre conservadores e progressistas na Igreja Católica. E que tem como personagens, entre outros, um arcebispo francês ultra-conservador; um juiz de instrução que se tornaria diretor nacional da Polícia Judiciária; e um antigo guarda-costas de Sá Carneiro que viria a revelar-se providencial.

“Se era tão fácil fazer um atentado…”

Juan Fernández Krohn chegou a Lisboa às primeiras horas da manhã de 12 de maio de 1982. Veio num comboio direto de Paris, uma viagem que demorou praticamente 24 horas. Chegou discretamente, numa altura em que Portugal já estava em euforia para receber o Papa João Paulo II, que aterraria no aeroporto de Lisboa por volta da uma da tarde.

O Papa polaco tinha sido vítima de um atentado à bala na Praça de São Pedro há exatamente um ano, a 13 de maio de 1981. A coincidência da data do ataque com a das aparições de 1917 em Fátima levou João Paulo II a ler, pela primeira vez, a terceira parte do Segredo de Fátima, guardado desde os anos 1950 nos arquivos secretos do Vaticano. E o conteúdo daquele texto escrito em 1944 pela irmã Lúcia levou-o a atribuir à Virgem de Fátima a sua salvação naquele atentado.

Golpe soviético ou profecia de Fátima? Atentado contra João Paulo II foi há 40 anos

Para agradecer por estar vivo, João Paulo II decidiu visitar o Santuário de Fátima no ano seguinte e, pela primeira vez, viajar oficialmente até Portugal. Não poderia imaginar que, nessa altura, já estava em curso mais um plano para o assassinar.

Desde 6 de outubro de 1981, o dia em que, sentado na casa onde morava, nos arredores de Paris, viu em direto na televisão o atentado contra Anwar Sadat, presidente do Egipto, que Juan Fernández Krohn estava a congeminar contra o Papa.

Sadat também estava sentado, mas numa tribuna militar no Cairo, a assistir à parada militar que assinalava o oitavo aniversário da guerra do Yom Kippur, quando foi atingido por tiros de metralhadora disparados por extremistas islâmicos. Morreu no espaço de duas horas.

O padre espanhol, ultra-conservador, ficou em choque. “Nunca tínhamos visto um atentado em direto como foi aquele. Vi na televisão. Foi um atentado em direto. Chegaram ao desfile, parou o camião, desceram os militantes e metralharam toda a tribuna. Todos o vimos. Pode dizer-se, inclusivamente, que me escandalizou. Deu-me uma falsa ideia da realidade”, recorda hoje. Mais do que isso, admite, aquela execução em direto também lhe deu ideias: “Se era tão fácil fazer um atentado por motivos ideológicos, eu tinha tantos motivos ideológicos como [eles] podiam ter”.

Aquele momento foi decisivo para o sacerdote espanhol, que nos últimos três anos tinha desenvolvido uma repulsa radical contra João Paulo II — que nem reconhecia como o legítimo chefe da Igreja Católica, considerava antes um antipapa e até uma encarnação moderna do Anticristo. No Egito, um conjunto de militantes radicais tinham matado e morrido em nome daquilo que acreditavam ser os reais fundamentos do Islão. Porque não poderia ele fazer o mesmo em nome do Catolicismo?

"Vi na televisão. Foi um atentado em direto. Chegaram ao desfile, parou o camião, desceram os militantes e metralharam toda a tribuna. (...) Se era tão fácil fazer um atentado por motivos ideológicos, eu tinha tantos motivos ideológicos como [eles] podiam ter."

Foi naquele dia que Juan Fernández Krohn decidiu que ia matar o Papa, que considerava um impostor, para salvar a Igreja Católica. E foi naquele dia que se mentalizou de que, inevitavelmente, ia ter de morrer também. A polícia ia abatê-lo quando tentasse levar a cabo o atentado. E isso não era um problema. Krohn estava convencido de que ia ficar do lado certo da História. Os seus atos eram aceites — e até incentivados — por Deus e ele seria recordado, por uma nova Igreja renascida, como um mártir e um herói.

Quando soube que João Paulo II ia visitar Fátima, Juan Fernández Krohn percebeu que aquele era o lugar perfeito para executar o plano. A mensagem de Fátima, revelada nas aparições que os três pastorinhos dizem ter testemunhado em 1917, tinha tudo a ver com a disseminação do comunismo na Europa durante o século XX e com os “perigos” que a ideologia marxista representava para o mundo católico.

E essa era a sua grande “obsessão”, lembra o próprio Krohn na entrevista ao Observador.

Por isso mesmo, decidiu, ia matar o Papa em Fátima. Um momento que seria o culminar de um longo e gradual processo de radicalização que, em bom rigor, tinha começado logo nos primeiros anos de vida, durante a infância passada na Espanha franquista.

Juan Fernández Krohn tem hoje 74 anos

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

“Tinha muitos amigos. Mas, a partir do segundo ano, ninguém me falava”

Juan Fernández Krohn nasceu a 24 de julho de 1949 em Madrid. Espanha vivia há mais de uma década sob o regime ditatorial de Francisco Franco — uma ditadura de inspiração fascista, conservadora, nacionalista e anticomunista.

“A Espanha em que eu vivi era um mundo que já não existe, desapareceu com a Transição e a democracia. Uma sociedade autoritária, com costumes muito distintos dos que hoje se veem”, diz. A família em que cresceu era “muito tradicional”: os cinco irmãos estudaram em colégios católicos e, além de Juan, também o irmão mais velho, Miguel, se tornaria padre.

O pai, Miguel Fernández Dias, era engenheiro aeronáutico na Força Aérea. O apelido estrangeiro vinha da parte da mãe, Julia Krohn Borba — Krohn é um apelido norueguês, herdado de um bisavô materno que emigrou para Espanha durante a juventude e se converteu ao Catolicismo. “A verdade é que tenho uma profunda nostalgia daquela época, com um certo sentimento de culpa. Uma nostalgia um pouco culpada de um mundo e de uma vida que estão, hoje, tão desacreditados, objeto de descrédito, de desprestígio”, assume.

A família era muito católica e incondicionalmente franquista. Nos colégios por onde passou, Krohn não escondia a religiosidade profunda: sempre que via um padre, parava de brincar e corria a beijar-lhe a mão. E também aprendeu, desde cedo, a detestar o comunismo: as histórias dos horrores dos rojos da Guerra Civil Espanhola eram contadas na família como memórias de uma ideologia a odiar.

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Juan Fernández Krohn tornou-se conhecido dos portugueses no momento em que foi detido por tentar matar João Paulo II. Hoje, aos 74 anos, vive em Bruxelas, onde deu uma entrevista ao Observador

picture alliance via Getty Image

Mais de 60 anos depois, o espanhol reconhece que recebeu uma educação “classista” e “privilegiada” e cresceu num bairro de classe alta, mas garante que estudou com crianças de todas as classes sociais — aliás, ainda mantém contacto com muitos deles, todos os anos fazem um jantar de turma em Madrid. Depois, conta que jogava futebol e que, em plena “época de glória do Real Madrid, de Di Stéfano, de Puskas e de Gento”, foi várias vezes ao Santiago Bernabéu ver aquelas estrelas jogar.

À partida, parece ser apenas mais uma memória de infância, mas, afinal, é sobretudo uma afirmação política. “O Real Madrid é de cor branca, são os brancos. E o Atlético de Madrid são os vermelhos e brancos”, conta Krohn, lembrando como o Real era visto como a equipa do regime. “Tem uma certa conotação ideológica. O Real Madrid é uma equipa de direita.”

Na década de 60, Krohn ainda era um jovem “normal” para os padrões da Espanha franquista. Que, por muito católico e conservador que fosse, não sonhava sequer com uma vocação religiosa.

“Eu tinha uma vocação mais política ou militar”, recorda, falando sobre a transição entre a infância e a juventude e recordando as “profundas crises existenciais” motivadas pelo conceito de vocação religiosa daquela época. “A vocação religiosa, traduzia-se, no fundo, no celibato eclesiástico, na interdição de relações de tipo sexual com pessoas do sexo feminino”, explica. “Os que tinham vocação eram gente um pouco anormal, doente, que não se sentiam atraídos pelo sexo feminino. Era assim que o tema era colocado em Espanha e, em Portugal, imagino que fosse mais ou menos assim também.”

Também por isso, a vocação religiosa de Krohn só chegaria mais tarde, motivada por um “complexo de culpa” que fez com que se sentisse “obrigado a fazer algo para ajudar na crise da Igreja”.

O período definidor de Juan Fernández Krohn foram os anos da faculdade. Academicamente, não poderiam ter corrido melhor: “Fui um estudante brilhante. Fiz duas licenciaturas, Económicas e Direito, que não me serviram para muito. As duas faculdades ficavam muito perto uma da outra. Saí licenciado em Ciências Económicas e saí licenciado em Direito.” Mas foi também durante este período que se confrontou com várias desilusões: com a política, com a Igreja e com a sociedade.

Entrou na universidade em 1966 e saiu no início da década de 1970. Era lá que estava quando se deu o Maio de 68, com epicentro em Paris, que viu como uma subversão marxista que, através da defesa da liberdade sexual, ameaçava os valores conservadores da Europa ocidental. Simplesmente, não estava preparado para o “impacto duro, cruel, inesperado” daquela revolução que ajudou a moldar a sociedade europeia contemporânea, viria a dizer muitos anos mais tarde.

Como também não estava pronto para lidar com as consequências do Concílio Vaticano II, a reunião magna dos bispos que decorreu entre 1962 e 1965 e acabou a reformar profundamente a Igreja Católica, dando-lhe a forma que conhecemos hoje. A reforma litúrgica, que acabou com a missa celebrada exclusivamente em latim e com o padre de costas para a assembleia, foi o impacto mais visível. Mas outras reformas, sobretudo a abertura ao diálogo com outras religiões, aprofundaram as divisões entre progressistas e conservadores dentro da Igreja.

"O principal responsável do fracasso da renovação da condenação do comunismo foi o Papa Wojtyla, que era na altura padre conciliar. Em nome do episcopado polaco e em nome de todas as Igrejas da Europa de Leste e em nome da Ostpolitik que Paulo VI tinha encabeçado."

“O Concílio trouxe uma grande divisão interna”, recorda Krohn, admitindo que se sentiu particularmente desiludido. No início, ainda tinha chegado a encarar o Concílio Vaticano II “como uma fonte de esperança” para “modernizar a Igreja”, mas, quando entrou na faculdade, começou a interpretá-lo como uma justificação para a entrada da “extrema-esquerda” na Igreja Católica.

Para o espanhol, a principal prova disso foi a rejeição de uma moção de condenação formal ao comunismo. “Em Espanha, na Guerra Civil, estava claro onde estavam os católicos, de um lado, e os ateus, do outro. A Igreja, então, tomou partido; sob uma encíclica de Pio XI, Divini Redemptoris, condenava o comunismo ateu. Chegou o Concílio e houve uma minoria de padres conciliares que quis renovar a condenação. E opuseram-se. O principal responsável do fracasso da renovação da condenação do comunismo foi o Papa Wojtyla, que era na altura padre conciliar”, acusa Krohn.

“O Concílio Vaticano II era [para] justificar a extrema-esquerda”, sentencia, ainda hoje, Krohn. “A partir daí, reagi e fui adotando uma atitude reacionária.”

Na faculdade, em Madrid, a esmagadora maioria dos seus colegas eram a favor das reformas implementadas pelo Concílio Vaticano II, que promoveram uma Igreja Católica mais aberta e moderna, menos hierarquizada, com maior foco na autoridade partilhada dos bispos e menor poder centralizado no Papa, mais disponível para dialogar com outras religiões e menos assente na divisão entre clero e leigos.

Krohn não esteve com contemplações e rotulou-os a todos como comunistas. Em contrapartida, passou a ser visto como um militante da extrema-direita e teve o seu primeiro grande embate com um mundo que haveria de lhe virar as costas. “Fui afastado. Era muito sociável, tinha muitos amigos. A partir do segundo ano, não me dava com ninguém. Tinha uma etiqueta de extrema-direita falangista. A partir do segundo ano, ninguém me falava.”

Tinha discussões ferozes com os colegas e via em todo o lado os supostos perigos do marxismo: o Maio de 68 era comunista, o Concílio Vaticano II era comunista, tudo era comunista. “A minha obsessão era o marxismo”, assume hoje. “Reconheço que era um pouco obsessivo, mas era a herança do meu background sociológico-familiar espanhol, da Guerra Civil, de tudo. Assumo-o, foi assim.”

O histórico jornalista espanhol Fernando Jáuregui, que o conheceu durante a faculdade, haveria não apenas de confirmar mas de aprofundar esta descrição, num artigo que escreveu para o Diário de Lisboa, já depois depois de o antigo colega ter tentado matar o Papa João Paulo II em Fátima. “Foi sempre um homem estranho, com leituras não menos estranhas, e que falava sozinho, exceto quando queria arengar uma proclamação”, escreveu Jáuregui, referindo-se a Krohn como um “rapaz alto, moreno, com olhos de louco”, mas sem acrescentar a respetiva filiação política, outra consequência do seu processo de radicalização em curso.

Numa longa conversa com o Observador, Krohn recorda toda a sua vida, desde a infância na Espanha franquista até ao dia em que tentou matar o Papa em Fátima

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Foi aos 19 anos que Krohn se juntou à Frente de Estudantes Sindicalistas (FES), uma organização falangista de juventude que criticava o regime de Francisco Franco por ter traído os princípios originais do falangismo — o movimento ideológico que foi fundado nos anos 1930 por José António Primo de Rivera, filho do antigo ditador espanhol Miguel Primo de Rivera, e que serviria de base à ditadura de Francisco Franco.

Um movimento que, apesar de ser considerado “uma oposição tolerada”, não deixava de fazer essa mesma oposição: “Nas cerimónias comemorativas do movimento falangista, que eram organizadas pelo regime, organizávamos uns distúrbios”.

“A FES era um grupo de falangistas dissidentes que acusavam Franco de ter traído a doutrina de José António. Tão simples e tão pueril, mas era assim”, lembra hoje Juan Fernández Krohn, que assume que na juventude chegou a ter um póster de José António Primo de Rivera pendurado na parede do quarto. “Dizíamos que Franco tinha aburguesado o regime. A Falange era um movimento de reivindicação social, tinha um conteúdo social. [Era] a doutrina falangista, que Franco tinha enterrado por interesses das classes burguesas e dos grupos reacionários que ele apoiava.”

Quando terminou a faculdade, Juan Fernández Krohn era já um anticomunista radical, um falangista militante e, sobretudo, um homem bastante solitário.

Quando chegou a hora de decidir o que fazer a seguir, ele, que tinha sido um bom aluno e poderia ter encontrado um emprego em qualquer uma das áreas que estudou, optou por um caminho diferente. Tudo em nome da tal missão, que acreditava que de alguma forma lhe tinha sido destinada: “Sentia-me no dever de fazer algo pela situação de crise na Igreja”.

“Converti-me num indivíduo isolado, sem futuro”

Nos anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II, largamente aclamado no mundo católico, havia entre a minoria conservadora uma “efervescência anti-conciliar”, lembra Krohn.

“Houve uma reação, houve um posicionamento de grupos anti-conciliares, à escala mundial”, conta. E um dos grupos mais importantes era a “Tradição, Família, Propriedade”, ou TFP, uma organização fundada no Brasil por Plínio Corrêa de Oliveira. E em França, também havia uma forte oposição às reformas na Igreja, disseminada por “vários grupos”, encabeçados pelo do arcebispo francês Marcel Lefebvre, um missionário que passou uma boa parte da sua vida religiosa em África e também tinha participado no Concílio.

Gradualmente, Lefebvre entrou em rota de colisão com Roma. Fundou um seminário tradicionalista na Suíça, onde continuou a formar seminaristas segundo as regras anteriores ao Concílio Vaticano II — o que lhe haveria de valer, primeiro, uma suspensão, e, mais tarde, a excomunhão, por desobedecer sistematicamente a Roma e ordenar padres e bispos.

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O arcebispo francês Marcel Lefebvre foi o fundador da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, a que Juan Fernández Krohn aderiu em 1974

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Acabado de sair da faculdade, Juan Fernández Krohn procurava um lugar para se integrar. “Primeiro, pensei na TFP”, recorda. “Fui ao Brasil, ao Rio de Janeiro. Tive uma entrevista com o professor Plínio Corrêa de Oliveira, o ‘Professor Plínio’, como lhe chamavam. Falou-me em português, eu falei-lhe em espanhol”, detalha Krohn. Estava disposto até a ser celibatário, como era exigido aos membros da TFP, mesmo não sendo padres. Mas correu mal: “Depois da entrevista, dei-me conta de que não me aceitavam.”

Restavam poucas opções. Depois de ser rejeitado por uma das organizações mais conservadoras do mundo católico, Krohn pensou em “enterrar-se em vida”. Ingressou numa cartuxa em Saragoça e ponderou abraçar aquela vocação monástica. “A vida de cartuxo é um enterro em vida. O cartuxo vive fechado na sua cela e não sai. Só sai para as orações monásticas, pela noite, mas vive encerrado na sua cela”, conta. “Eu tinha a obsessão, o complexo de culpa, de que a minha vocação era tornar-me cartuxo. E estive, efetivamente na cartuxa. O sentimento de culpa é algo conatural com o catolicismo. Tens de o fazer e, se não o fazes, é pecado. Uma culpabilidade é algo muito profundo. Só quando te afastas, como foi o meu caso, é que te dás conta deste sentimento de culpabilidade tão profundo, tão grande. Eu tenho um sentimento de culpabilidade, efetivamente”, reconhece.

Dois dias bastaram para perceber que aquele também não seria o seu destino. O padre responsável pela Cartuxa de Saragoça contou-lhe que, também ali, seria em breve implementada a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II — e Krohn decidiu imediatamente que era hora de sair. “Eu dava muita importância à questão litúrgica, à missa tradicional, em latim e segundo o antigo rito”.

Antes de, em 1974, encontrar finalmente um lugar onde se integrar — a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X (FSSPX), o  seminário tradicionalista fundado por Marcel Lefebvre em Écône, na Suíça —, Krohn passou por Portugal pela primeira vez.

Faltava pouco tempo para o 25 de Abril quando visitou Fátima, como participante do congresso de um movimento conservador com origens em França. Dessa primeira estadia, guarda ainda as descrições que ouviu a um português sobre a Guerra de África: “Impressionou-me porque tinha os horrores da guerra no olhar. Tinha uma espécie de frustração e ressentimento muito grande contra os políticos que, segundo ele, estavam a fazer Portugal perder a guerra. Outro rapaz jovem que tinha estado na guerra e que me impressionou pela maturidade: tinha mais ou menos a minha idade e já tinha uma experiência de vida que eu não tinha, que era a experiência da guerra.”

Nessa altura, não poderia imaginar que havia de passar vários anos no país — muito menos que iria fazê-lo à força, condenado por um tribunal civil por tentativa de homicídio contra o próprio Papa. Pela frente, Krohn tinha ainda os quatro anos de seminário na FSSPX e outros três de sacerdócio, sempre na organização de Lefebvre.

“Tinha uma cela individual e, da minha cela, via-se o Mont Blanc ao fundo”, lembra Krohn, que continua convencido de que os quatro anos que passou em Écône lhe salvaram a vida. Por estar ali, não esteve em Espanha durante o turbulento período da transição para a democracia, a partir da morte de Franco, em 1975. “Eu tinha a etiqueta da extrema-direita. Se tivesse estado em Espanha, ter-me-ia visto envolvido em situações de violência. Aquilo salvou-me. Então, vivi à margem da evolução espanhola. Completamente à margem.”

Juan Fernández Krohn estudou durante quatro anos no seminário de Écône, na Suíça

DICI, CC BY-SA 4.0, VIA WIKIMEDIA COMMONS

Durante esses quatro anos, estudou filosofia e teologia — “coisas que já não se estudam em nenhum sítio”, lamenta. “Tínhamos aulas em francês e com muito latim também. Tudo num ambiente de muito fervor”, aponta, recordando que estudou os grandes autores da filosofia cristã, incluindo São Tomás de Aquino, a partir de edições dos seus trabalhos em latim.

Os professores, maioritariamente franceses, mas também belgas e suíços, eram “da corrente tradicionalista”. E a vida no seminário era de grande rigor religioso. “Tudo era ao ritmo da liturgia tradicional. Levantávamo-nos com matinas, rezávamos matinas, sexta, nona, vésperas e completas. Todo o dia era em função da oração”, recorda, associando aos tempos de Écône uma “impressão de evasão, e fuga”.

“Há uma frase, um lugar-comum, um tópico literário: de tanto olhar as estrelas, o rei perdeu a sua coroa. A impressão que me deu a mim foi: de tanto olhar as estrelas em Écône, perdi Espanha, converti-me num indivíduo isolado, sem futuro. Como, depois, se demonstrou em Fátima.”

A 29 de junho de 1978, numa imponente celebração realizada ao ar livre, nos jardins do seminário de Écône, Juan Fernández Krohn foi finalmente ordenado padre. Ao todo, nesse dia, o próprio Marcel Lefebvre ordenou 18 padres e 22 diáconos numa cerimónia em latim em que estiveram presentes milhares de pessoas — entre familiares e amigos dos novos padres e muitos fiéis católicos ultra-conservadores.

A página da FSSPX ainda guarda o registo da homilia proferida por Lefebvre naquele dia de sol na Suíça. O arcebispo francês deixou um aviso aos novos padres: vão ser enviados como cordeiros para o meio de lobos. Os lobos, disse Lefebvre, são “aqueles mercenários para quem as ovelhas não contam, que não se interessam pelas ovelhas e que as abandonam na menor oportunidade”. E esses lobos, acrescentou o bispo francês, não estão apenas “fora da Igreja”. Também “há mercenários dentro da Igreja”.

"A impressão que me deu a mim foi: de tanto olhar as estrelas em Écône, perdi Espanha, converti-me num indivíduo isolado, sem futuro. Como, depois, se demonstrou em Fátima."

Durante a homilia, Lefebvre visou diretamente uma das conclusões do Concílio Vaticano II que mais o repugnavam: a abertura da Igreja Católica para dialogar com outras religiões e com outras confissões cristãs — ou seja, o ecumenismo. “Gostava de enfatizar que, se a Igreja Católica é missionária, então não é ecuménica”, atirou. “A Igreja Católica não é ecuménica. Mas a Igreja de hoje, investida por estes mercenários, por estes lobos, quer arrastar-nos. (…) Este inimigo quer conduzir-nos pelo caminho da perdição. Qual caminho? O caminho do ecumenismo!”

À distância de 46 anos, Juan Fernández Krohn recorda o dia da sua ordenação sacerdotal como “uma cerimónia de grande beleza”, uma beleza “que já não se vê”. Naquele dia, diz, tudo foi feito “com muita solenidade e muita beleza litúrgica” e “na presença de muito público”, incluindo a sua família, que viajou desde Espanha para o ver ser ordenado padre.

Em 1978, tal como a FSSPX já vivia num clima de grande tensão com o Vaticano, mas o corte ainda não tinha sido total, também Krohn continuava a manter relações com a família, se bem que já houvesse “uma certa divisão”. Sobretudo porque o seu irmão mais velho, Miguel, era um padre convencional, obediente a Roma. “Nesse momento a rutura estava ainda a iniciar-se”, diz. “Só aconteceu depois, com Fátima.”

“Um companheiro de viagem” do comunismo

Juan Fernández Krohn era padre há apenas quatro meses quando chegou a notícia de Roma: o arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyła, tinha sido eleito Papa e escolhido o nome de João Paulo II (em homenagem ao seu antecessor, que tinha morrido inesperadamente após um mês no cargo).

Naquela altura, Krohn não conhecia Wojtyła. Na entrevista que deu ao Observador, em Bruxelas, o espanhol lembrou a primeira vez que ouviu falar de João Paulo II. Foi à mesa, durante uma refeição em Écône, com o líder da FSSPX, Marcel Lefebvre. “Estávamos na refeição em comunidade e, ao conversar com monsenhor Lefebvre, num grupo à parte, comentou-se a nomeação de João Paulo II. E ele disse: ‘Prêtre de la paix.’ Ou seja, ‘padre da paz’, ‘padre do regime’ — do regime comunista.”

Ao longo dos anos seguintes, porém, Krohn começou a alimentar um grande ódio a João Paulo II — o anticomunismo que vinha a alimentar desde a infância tinha-se aprofundado ainda mais durante a juventude e o período do seminário.

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João Paulo II durante a cerimónia de inauguração do seu pontificado, em outubro de 1978

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Apesar de João Paulo II ser globalmente reconhecido como um dos principais rostos da luta contra o comunismo na segunda metade do século XX — e até apontado como tendo tido um papel importante no colapso dos regimes comunistas no final da década de 1980 —, Krohn nunca foi capaz de ver o Papa polaco dessa forma.

E dá várias razões para justificar a perspetiva, que mantém até hoje, de que João Paulo II era, na verdade, um homem próximo das ideias marxistas. Lembra que Wojtyła teve uma “carreira eclesiástica fulgurante” na época em que a Polónia era comandada pelo líder comunista Władysław Gomułka. “Isso, efetivamente, colocava problemas a um anticomunista como eu”, diz o espanhol, que chega a recuar à Segunda Guerra Mundial para sustentar a teoria de que João Paulo II seria próximo dos comunistas.

“Os polacos sofreram muito. Foram invadidos pelos alemães em virtude do Pacto Germano-Soviético, de Hitler e Estaline. Eram vítimas a duplo título. Isso explica que João Paulo II tenha tido uma atitude beligerante anti-alemã, anti-nazi, que o ajudou com o regime comunista. Uma espécie de salvo-conduto, quando houve a entrada das tropas soviéticas na Polónia”, continua a elaborar Krohn. Que, mesmo confrontado com a evidência de que nenhum desses argumentos pode fazer prova que João Paulo II fosse, de facto, comunista, insiste na tese: “Não, mas era efetivamente um companheiro de viagem”.

Um dos tópicos mais sensíveis para o espanhol no início da década de 1980 foi a encíclica Laborem Exercens, um texto escrito por João Paulo II em 1981 (o atentado de maio desse ano, aliás, obrigou a adiar a publicação do documento) sobre as questões do trabalho humano e dos direitos dos trabalhadores. A encíclica foi unanimemente interpretada como uma condenação, por parte do Papa João Paulo II, de todas as ideologias que desvalorizavam o trabalho humano — comunismo e capitalismo incluídos.

João Paulo II, que cresceu na Polónia comunista, conhecia bem a leitura marxista do mundo do trabalho. Mais: considerava que o marxismo levantava questões legítimas relativamente aos direitos dos trabalhadores. Mas acreditava que essas questões necessitavam de respostas diferentes daquelas que os regimes comunistas davam. Por isso, para o Papa fazia sentido trazer as questões do trabalho para dentro do pensamento teológico.

Para Krohn, porém, o simples facto de o Papa estar a tocar nos assuntos do mundo do trabalho já indiciava uma permissão da infiltração marxista na teologia, algo que só confirmava aquilo em que, de resto, já acreditava: os últimos Papas (Paulo VI, João XXIII e João Paulo II), ao promoverem as reformas do Concílio Vaticano II, estavam a trair a Igreja tradicional e a fazê-la ceder às pressões do mundo moderno, manchado pelo comunismo.

Hoje, Krohn diz que já não se lembra particularmente da encíclica Laborem Exercens — embora em 1982 lhe tenha chamado uma “encíclica de clara inspiração marxista” e a tenha usado para justificar a decisão de matar o Papa em Fátima.

Quatro décadas depois, no entanto, continua a manter que “o Catolicismo polaco tinha um problema doutrinal sério com o marxismo”, que se refletia em João Paulo II. “Um problema de aproximação ideológica com o marxismo”, classifica Krohn, acusando os católicos polacos das décadas de 1970 e 1980 de considerarem o Catolicismo como “um humanismo”. Como o marxismo “também era um humanismo, mas do trabalho”, então havia um “fundo humanista comum” entre a fé católica e o comunismo, “o que permitia um diálogo católico-marxista”.

Com efeito, durante a Guerra Fria, especialmente a partir da década de 1960, o Vaticano optou por uma abordagem de diálogo com os regimes de Leste — que ficaria conhecida como a “Ostpolitik do Vaticano” e que tinha como objetivo uma tentativa de negociar gradualmente com os regimes comunistas alguma liberdade, ainda que relativa, de religião para os católicos naqueles países.

"O Concílio Vaticano II é uma consagração teológica do postulado da luta de classes."

Para Krohn, porém, esta nuance não era relevante. Já em Écône começou a ser criticado pela sua perspetiva maniqueísta sobre o mundo: para ele, só havia bem e mal, não existia nada no meio. João Paulo II só podia ser um comunista. Foi também este maniqueísmo que o levou, gradualmente, a afastar-se até da FSSPX. Para Krohn, não fazia sentido que o arcebispo Lefebvre, sendo tão crítico do Papa, continuasse a rezar por ele.  Se João Paulo II era um Papa perigoso, que estava a destruir a Igreja, então não havia quaisquer razões para rezar por ele.

O espanhol não esconde que, na juventude, se tornou especialmente obcecado com o marxismo. Lefebvre dava “muita importância” à questão do ecumenismo e ao “diálogo com os protestantes”, mas não era essa a principal razão para o afastamento do padre Krohn. “O meu leitmotiv, a minha obsessão, era o marxismo. Não tanto a aproximação aos protestantes ou o ecumenismo.”

Ao longo da juventude e dos primeiros anos de sacerdócio, Juan Fernández Krohn entrou numa espiral de radicalização. Em pouco tempo, tornou-se ainda mais ortodoxo e conservador do que os membros da FSSPX. Começou a entrar em pânico com a ideia de a Igreja Católica ser liderada por um comunista e deixou de reconhecer João Paulo II como o Papa legítimo — isto vários anos antes da excomunhão oficial de Lefebvre e da FSSPX, que só aconteceria no final da década de 1980.

Este processo de radicalização de Krohn coincidiu com o surgimento, na Polónia, do Solidariedade, o primeiro sindicato independente do Partido Comunista a aparecer no país. O movimento liderado por Lech Walesa marca o início do declínio do comunismo na Polónia — e o seu surgimento é amplamente associado à influência de João Paulo II, que no final da década de 1970 visitou a Polónia já como Papa e inspirou os polacos a lutarem pelo destino do país com as próprias mãos.

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João Paulo II foi sempre associado ao surgimento do Solidariedade, de Lech Walesa, que tinha uma fotografia do Papa no gabinete

AFP via Getty Images

Krohn, um anticomunista convicto, viu com bons olhos o aparecimento daquele movimento num país tão católico e também quis visitar a Polónia. “Estive na Polónia na primavera do Solidariedade. Fui muito bem recebido por todos eles”, conta ao Observador. Garante mesmo que chegou a encontrar-se, por breves instantes, com o próprio Lech Walesa e a trocar algumas palavras com ele. “Trataram-me e acolheram-me com a maior cordialidade”, recorda, garantindo que, na altura, “havia uma divisão” no Solidariedade e que, entre os seus membros mais radicais, havia também críticas à Igreja.

Aquele período cimentou ainda mais a desilusão de Krohn com João Paulo II. Moscovo viu o surgimento do Solidariedade com grande preocupação e pressionou o governo polaco a reprimi-lo. No final de 1981, o Presidente polaco impôs a lei marcial no país para esmagar o Solidariedade, o que gerou uma onda de apoio global dirigida ao sindicato.

Krohn, que nessa semana, por acaso, estava em Roma, acusa o Papa João Paulo II de ter ficado em silêncio sobre o assunto e de ter, por isso mesmo, cometido um ato de traição para com os polacos, que antes tinha inspirado a sair às ruas. “Quando veio o estado de sítio, nesse mesmo dia, houve uma repressão à mão do general [Wojciech] Jaruzelski, uma repressão brutal na Polónia, em Varsóvia, para a implantação do estado de sítio. Eu estava em Roma, na audiência do Papa. Silêncio total, não falou do tema. Como se não tivesse nada a ver com aquilo.”

Só há um detalhe: o que o espanhol diz não corresponde de todo à verdade. Basta ir ao site do Vaticano, onde estão arquivadas todas as intervenções de João Paulo II, e consultar o discurso do Papa na audiência geral daquela semana. O texto inclui não apenas uma longa referência à Polónia e um apelo ao diálogo mas também uma dura condenação da ação do governo: “A força e a autoridade do poder exprimem-se em tal diálogo e não no uso da violência”.

O plano para assassinar o Papa em Fátima. “Tudo em segredo”

Depois de ser ordenado padre, Krohn foi enviado por Lefebvre para a América Latina. Passou por Buenos Aires, na Argentina, onde fundou um seminário da FSSPX, e também por países como o Chile e o Uruguai. Quando regressou à Europa, dois anos mais tarde, foi enviado para Paris, onde passou a viver num priorado da FSSPX. “Era uma espécie de mosteiro, de comunidade, de convento”, conta Krohn, lembrando que vivia lá com “dois ou três” padres da Fraternidade.

A partir do priorado de São João, situado à beira do rio Sena, em Mantes-la-Jolie, nos arredores de Paris, Juan Fernández Krohn servia uma população tradicionalista e conservadora em toda a região da capital francesa, celebrando missas em latim em várias capelas. Era uma espécie de Igreja paralela, sem relação com a arquidiocese de Paris, e que respondia apenas a Marcel Lefebvre, na Suíça. E era lá que o padre espanhol vivia quando decidiu apanhar um comboio para Portugal para matar o Papa João Paulo II.

Krohn fala abertamente das razões que o levaram, em 1982, a tentar matar João Paulo II

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Durante o processo judicial a que foi sujeito depois do atentado, Krohn deu grande destaque à terceira parte do Segredo de Fátima — o misterioso envelope escrito pela irmã Lúcia que continuava fechado nos arquivos do Vaticano. Estava convencido de que aquele segredo era uma condenação, por parte da Virgem Maria, das reformas modernistas do Concílio Vaticano II, que o Papa estava a implementar na Igreja. No seu entender, essa seria a razão pela qual o Papa continuava a manter o segredo escondido nos arquivos: se o documento fosse conhecido, ficaria exposta a condenação divina das suas ações.

Por isso mesmo, quando soube que João Paulo II iria visitar Fátima para agradecer por não ter morrido no ataque de maio de 1981, Krohn ficou furioso: o Papa ia ter a desfaçatez de aparecer no local onde tinha sido revelada uma mensagem divina que ele próprio insistia em desrespeitar.

Hoje, quatro décadas depois,  Juan Fernández Krohn diz que já não se recorda bem do impacto que o Segredo de Fátima teve na sua decisão. Reconhece apenas que partilhava com o mundo conservador o “culto da Virgem de Fátima” e lembra apenas “vagamente” o dia em que apanhou um comboio em Paris, com destino a Lisboa, para pôr em marcha o plano que estava a desenhar em total segredo desde que, seis meses antes, tinha visto na televisão o atentado contra Anwar Sadat.

Como haveria de confessar na altura às autoridades,  tudo começou com a busca pela arma perfeita: só à terceira compra é que acertou, um sabre-baioneta de origem tailandesa que encontrou numa feira de antiguidades em Paris.

O plano passou ainda pela escolha do lugar ideal para assassinar o Papa. Apesar de a sua primeira ideia ter sido mais óbvia —  Roma —, o anúncio de uma viagem de João Paulo II a Portugal acabou por fazê-lo mudar de ideias: afinal, a poderosa mensagem de Fátima, que condenava os erros do comunismo de Leste, tinha surgido exatamente ali.

Nos mesmos interrogatórios, sintetizou ainda os argumentos que o tinham conduzido àquela inevitabilidade, de tentar pôr fim à vida do Papa. Acreditava que João Paulo II, tal como João XXIII e Paulo VI, era um antipapa, uma encarnação moderna do Anticristo de que fala o Apocalipse. Pensava no Papa como um homem vindo da área política do comunismo, um homem que tolerava os marxistas, que tinha traído o Solidariedade na Polónia e que dava continuidade à política de aproximação entre a Santa Sé e os regimes comunistas. Acusava João Paulo II de estar a trair a Igreja Católica ao implementar as reformas do Concílio Vaticano II — que, não tinha quaisquer dúvidas, eram condenadas pela Virgem Maria.

Em suma, João Paulo II era a encarnação contemporânea do longo processo de destruição da Igreja Católica tradicional, de decadência dos valores cristãos e de cedência ao relativismo moderno, em curso desde o Renascimento. Travar essa destruição, acreditava Krohn, era um imperativo ético. E era exatamente por isso que achava que não tinha alternativa se não assassinar o Papa.

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João Paulo II visitou o Santuário de Fátima em maio de 1982 para agradecer ter sobrevivido ao atentado do ano anterior

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Durante a entrevista com o Observador em Bruxelas, Krohn fala aberta e longamente sobre toda a sua vida — antes e depois do atentado contra João Paulo II. Só quando questionado sobre o que aconteceu naquele dia 12 de maio de 1982 é que o espanhol mostra alguma resistência e hesita em falar.

Muito do que hoje sabemos sobre os detalhes do atentado vem, precisamente, das confissões minuciosas e pormenorizadas feitas por Krohn durante o processo judicial, em 1982. Por escrito, o espanhol deixou não apenas todos os pormenores do plano que desenhou mas também tudo o que fez no dia do atentado — e explanou longamente as razões que acreditava ter para assassinar João Paulo II.

Dezenas de páginas manuscritas, que na altura entregou ao tribunal e à polícia, fazem parte do processo entretanto compilado e depositado nos arquivos da  Torre do Tombo, em Lisboa — a que o Observador teve acesso.

Quando chegou a Fátima, no dia 12 de maio de 1982, pode ler-se no processo, Krohn começou por comprar um marcador azul e três envelopes. A seguir, sentou-se no hall de entrada de um hotel em que não estava instalado (uma vez que esperava ser abatido, depois de matar o Papa, não se deu ao trabalho de fazer uma reserva), escreveu três mensagens contra João Paulo II e, depois, foi almoçar.

Enquanto Krohn comia, em Fátima, João Paulo II estava a aterrar em Lisboa e a ser recebido pelas mais altas figuras do Estado português. Depois disso, à mesma hora em que o espanhol se pôs a caminho do recinto do Santuário, para guardar um lugar  junto ao corredor central, por onde o Papa haveria de passar nessa mesma noite, João Paulo II andava em périplo por Lisboa. Visitou a Sé, a igreja de Santo António, o Palácio de Belém e a nunciatura apostólica. No fim, apanhou um helicóptero para Fátima, onde milhares de pessoas o esperavam às 20h30, primeiro para a celebração do rosário na Capelinha das Aparições, a seguir para a tradicional procissão das velas em direção ao altar principal do recinto.

Eram 22h30 quando o jipe que transportava João Paulo II se imobilizou na base da escadaria da basílica de Fátima, no final do percurso da procissão das velas. Quando o Papa se apeou e começou a subir as escadas, misturando-se com um grupo de padres e jornalistas eufóricos, Juan Fernández Krohn saltou as vedações e investiu com toda a violência contra o Papa. Tentou furar o cordão de segurança várias vezes, sempre sem sucesso. Até que, finalmente, um dos polícias o atirou ao chão. Em poucos segundos, acabou tudo. Krohn tinha sido intercetado, manietado e detido — o plano tinha falhado por completo.

Impotente, agarrado pela polícia, ainda gritou: abaixo o Vaticano II e o Papa comunista, viva Portugal católico, viva a Polónia, viva o Solidariedade, e por aí fora.

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Já agarrado pela polícia, Juan Fernández Krohn lançou gritos contra o Papa João Paulo II, que recuou uns metros para ver o que se tinha passado

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Tudo foi muito confuso e, em pleno santuário, poucos se aperceberam do que tinha acabado de acontecer. Quem viu pela televisão também não compreendeu exatamente o significado daquela confusão que tinha terminado com a detenção de um padre aos berros, com a batina preta desapertada. Aliás, nem mesmo os polícias que o detiveram perceberam imediatamente o que tinham acabado de evitar: só quando Krohn já estava deitado é que viram o sabre, também caído no chão ao lado do padre. A vida do Papa João Paulo II acabava de ser salva in extremis.

“Condenaram-me pela minha confissão”

“Pensei que não ia sair vivo”, assume Juan Fernández Krohn. Afinal, aquela era uma missão de martírio. “Nesse aspeto, tive aquilo a que os psiquiatras chamassem, talvez, uma pulsão suicida. Não tinha a ideia de sair vivo.”

Mas nada correu como planeado: foi detido e levado imediatamente para o posto da PSP de Fátima, onde foi submetido ao primeiro interrogatório. “Foi muito traumático. Ao mesmo tempo, assumi-o, suportei. Porque era um espírito de sacrifício, efetivamente”, diz hoje. “Foi traumático porque fui agarrado, acusado, interrogado a cada minuto por pessoas diferentes, que entravam e saíam.”

No final, o caso foi entregue à Polícia Judiciária e o padre espanhol foi transferido imediatamente para Lisboa, onde havia de chegar ainda durante aquela mesma madrugada.

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O momento em que Juan Fernández Krohn foi levado do Santuário de Fátima pela polícia

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Os dias seguintes não foram diferentes, seguiram-se interrogatórios e mais interrogatórios, as autoridades queriam saber tudo. Foi “duro”, diz Krohn, que lembra como, a certo ponto, já não sabia o que dizer mais. “Estive perto de ter um momento de ‘o que querem de mim?’”, afirma Krohn, que recorda ainda como a polícia procurou insistentemente que o espanhol confessasse “o que não havia”, ou seja, “um complô”. Krohn repetiu que tinha feito tudo sozinho, mas teve dificuldade em fazer passar a sua versão. Lembra-se até de ouvir o então ministro da Administração Interna, Ângelo Correia, dizer que não estava convencido com as suas explicações.

Depois de ser ouvido por um juiz de instrução, Juan Fernández Krohn foi colocado em prisão preventiva, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, a aguardar o julgamento.

“A prisão preventiva foi muito dura. Muito, muito dura”, recorda Krohn. Diz que a prisão em Lisboa “era um caos, um inferno” e acusa os outros reclusos de o terem agredido, não apenas numa ocasião, mas “várias vezes”. “Havia pressões ideológicas. Havia uma pressão ambiental de esquerda”, tenta contextualizar, à distância de mais de 40 anos. “Então, fizeram de mim um extremista de direita. Quase todos os reclusos viam em mim um fascista.”

Apesar de ter sido colocado numa cela individual, garante que isso não o impediu de enfrentar a “anarquia total” que se vivia na cadeia. “Tive enfrentamentos violentos, em parte pela reação desesperada para sair daquilo. Era uma situação de pressão e de ameaça muito grande, que nunca tinha vivido”, diz ainda, sublinhando que, por causa dessa pressão, acabou por conseguir transferência para uma ala “mais tranquila”.

Antes disso, ainda na prisão de Lisboa, o padre Krohn terá tido um confronto com outro recluso famoso, Jorge Manuel Veríssimo Monteiro, mais conhecido como “Capitão Roby”, um reincidente que, depois de ter sido detido pela primeira vez na década de 1960, por acusações de burla e extorsão a mulheres que seduzia e a quem prometia casamento, estava novamente na cadeia — por crimes da mesma natureza. “Tivemos um enfrentamento violento”, recorda, explicando que o “Capitão Roby” punha “quatro ou cinco reclusos, muito jovens” contra ele, com “insultos e ameaças”.

Em outubro de 1982, cinco meses depois do atentado falhado, Juan Fernández Krohn foi conduzido ao tribunal de Vila Nova de Ourém. O julgamento seguiu-se a uma investigação relativamente curta — a confissão tinha sido suficientemente detalhada para construir rapidamente uma acusação —, e foi especialmente relevante, o primeiro grande julgamento internacional em Portugal e, por isso mesmo, um desafio para a justiça portuguesa. Havia jornalistas de todo o mundo presentes no tribunal — e uma multidão expectante à porta, com muitos dos presentes a pedirem uma dura condenação para Krohn.

O padre Juan Fernández Krohn apresentou-se em tribunal de batina verde e faixa vermelha. O julgamento foi acompanhado por jornalistas de todo o mundo

Guilherme Venancio/LUSA

Apesar do aparato, logo no primeiro dia, o julgamento foi interrompido. Os jornais da época relatam como ninguém parecia acreditar na confissão elaborada de Juan Fernández Krohn. Soava tudo a efabulação, ao delírio de um homem que tinha perdido a noção da realidade. E, em bom rigor, ninguém tinha visto Krohn com o sabre na mão: a arma só tinha sido encontrada já no chão, depois de o espanhol ter sido derrubado.

Logo nesse dia, começou a ganhar força uma outra hipótese: seria Krohn apenas um louco? Seria o padre espanhol imputável sequer? Foi para responder a essas dúvidas que os juízes decidiram interromper o julgamento acabado de começar e solicitaram a realização de uma perícia que dissipasse as dúvidas sobre a sanidade mental de Krohn.

Para o padre espanhol, foi uma afronta, um ultraje. “Foi perigoso”, continua a argumentar, mais de 40 anos depois. “É uma via perigosa no mundo atual, na democracia”, diz, explicando que classificar alguém como mentalmente instável é “equivalente à infâmia, que teoricamente está excluída da democracia”.

Krohn sempre disse que não era um louco. Mais: para provar isso mesmo, que era são mentalmente e que estava na posse de todas as suas capacidades, nomeadamente a de argumentar, não quis ser representado por um advogado durante o julgamento. Teve apenas o defensor oficioso, exigido pela lei portuguesa, mas fez questão de falar e de se defender de viva voz.

Era um homem com razões sérias e atendíveis para eliminar o Papa, esse, sim, um usurpador do trono de São Pedro. Por isso, diz, chamar-lhe louco era pior que prendê-lo. Hoje, o espanhol continua convicto de que as suspeitas levantadas sobre a sua imputabilidade terão sido uma forma de a Igreja Católica e de a justiça portuguesa descredibilizarem os seus argumentos. “[Queriam] pôr-me um sinal de infâmia, de louco, de um indivíduo pronto para o anexo psiquiátrico e para o enterro. Foi assim que o vi.”

"Pensei que não ia sair vivo. Nesse aspeto, tive aquilo a que os psiquiatras chamassem, talvez, uma pulsão suicida. Não tinha a ideia de sair vivo."

Mas, no final, Krohn foi dado como imputável. A equipa de peritos que o avaliou, de que fez parte o respeitado Pedro Polónio, histórico da psiquiatria portuguesa, concluiu que o espanhol vivia numa bolha de convicções místicas, muito influenciada pela sua formação no seminário de Lefebvre e pelo anti-comunismo que desenvolveu desde a infância. E até concordou que Krohn vivia fora da realidade — mas apenas como viviam fora da realidade tantos políticos, apaixonados e místicos.

A infantilidade e imaturidade do ato de Krohn, que colocava as suas convicções no centro de tudo, deveria ser tida em conta no julgamento, concluíam os especialistas no relatório remetido ao tribunal. Mas, acima de tudo, Krohn era um adulto responsável pelos seus atos que podia ser julgado. Ao Observador, hoje, o espanhol recorda ainda com indisfarçável orgulho a forma como o psiquiatra Pedro Polónio deu por encerrada a sessão em que o analisou: “Estendeu-me a mão e disse-me: ‘Tem razão, senhor Krohn, tem todo o direito à sua liberdade interior’”.

Em maio de 1983, um ano depois do atentado contra o Papa João Paulo II, Juan Fernández Krohn voltou ao tribunal para finalmente ouvir a sentença: seis anos e meio de prisão por posse ilegal de arma e por tentativa de homicídio. No final, saiu condenado a uma pena de sete anos completos, à conta dos insultos que gritou aos juízes, durante a leitura do acórdão.

Hoje, continua revoltado com a condenação: “Condenaram-me pela minha confissão”. Acredita que, por muito que tivesse revelado voluntariamente tudo o que fez, não apenas naquela noite em Fátima, mas nos meses anteriores, em que planeou matar o Papa, as suas palavras não deveriam ter sido suficientes para lhe garantir uma condenação.  “Confessei. Mas sem provas. Não houve ninguém da Guarda, da Polícia Judiciária ou das escoltas que me tivesse visto a empunhar a arma.”

Juan Fernández Krohn foi condenado a um total de sete anos de cadeia pelo tribunal de Vila Nova de Ourém em maio de 1983

LUSA

A verdade é que, ao longo do processo, todas as testemunhas disseram, no limite, só ter visto o sabre já no chão. Mas, com um réu considerado imputável, os juízes não tiveram outra alternativa que não a de validar a confissão de Krohn. “Condenaram-me porque confessei que queria matar, o que cria um problema jurídico sério. Hoje, isso não se aceitaria”, diz ao Observador.

Mas, afinal, empunhou o sabre ou não? Tirou, ou não, o sabre da pasta castanha que trazia nas mãos naquele dia? “Sim, sim! Disse-o 30 vezes!”, responde Krohn, exasperado.

É o momento mais tenso da entrevista. Nos últimos anos, Krohn já conversou algumas vezes com jornalistas, tanto portugueses como espanhóis. E a pergunta, óbvia, surge sempre. Se Krohn assume que queria matar o Papa, mas se revolta por ter sido condenado apenas pela confissão quando ninguém o viu com a faca na mão, a dúvida permanece: pegou ou não na faca para o matar?

“Desculpe, mas é isso que me põe nervoso. Já contei tudo 30 ou 40 vezes e vocês continuam a insistir nesse ponto”, retorque Krohn, para segundos depois explodir. “Tirei! Tirei a faca. Fui, empunhei e, mesmo no momento em que… fshhhh! Já o disse um montão de vezes. Isto foi a força do meu testemunho. Se eu tivesse ferido ou matado o Papa, a questão seria muito diferente. Mas não cheguei. Estive prestes, mas não cheguei.”

“O problema ideológico enorme que me levou a Fátima”

Aquela confissão levou Krohn à cadeia. Dos sete anos a que foi condenado, só cumpriu metade, três anos e meio. Depois de algum tempo no Estabelecimento Prisional de Lisboa, foi transferido para a prisão de alta segurança de Vale de Judeus. “Por paradoxal que possa parecer, Vale de Judeus, um regime muito mais duro, para mim foi a salvação”, diz Krohn. “Porque havia disciplina, havia ordem.”

Mesmo atrás das grades, nunca parou de escrever. Ainda durante a prisão preventiva, escreveu um livro — Acuso o Papa: Em Defesa do Terceiro Segredo de Fátima —, que foi editado por Valdemar Paradela de Abreu, o mesmo que em 1974, dois meses antes da Revolução, publicou o polémico Portugal e o Futuro, do general Spínola.

Juan Fernández Krohn à saída do tribunal de Vila Nova de Ourém, depois de ter sido condenado

MANUEL MOURA/LUSA

“Eu tinha um problema ideológico grande. O que eu queria, com o livro, era efetivamente expor o problema ideológico enorme que tinha e que me levou a Fátima. O problema ideológico com o regime de Franco, com a Guerra Civil espanhola, com o Estado Novo, com a revolução do 25 de Abril, com o Concílio Vaticano II” enumera Krohn. “Foi tudo isto que me levou a Fátima.”

Educado na Espanha de Franco, num contexto semelhante ao do Estado Novo português, Juan Fernández Krohn lembra-se de que precisou de ajuda para para compreender o fenómeno do pós-25 de Abril em Portugal. E revela que foi justamente Paradela de Abreu, jornalista, editor e ativista político, fundador em 1975 do anticomunista “Movimento Maria da Fonte”, quem o “guiou” nessa viagem: “Salazar era um pai da pátria portuguesa. Ditador? Não o víamos. A PIDE e tudo isso, só soubemos muito depois. Para mim, António de Oliveira Salazar era uma figura sem discussão. Essa era a realidade. Na prisão, nunca o defendi”, recorda Krohn. “Tive uma conversa que me fez refletir com um recluso em Vale de Judeus. Falava-lhe desta nostalgia que eu tinha do Estado Novo e ele disse-me: você tem uma visão muito gloriosa, o que caiu, caiu.”

Por muito que reconheça que, na juventude, aderiu totalmente às ideias fascistas da ditadura de Franco, Krohn diz-se hoje um “fascista de mãos limpas”, que nunca entrou “em violência”.

Ao longo das mais de duas horas de entrevista, fala com saudosismo sobre os tempos pré-revolução, tanto em Espanha como em Portugal. “Humberto Delgado, por exemplo, jogou e perdeu”, diz. “Jogou ao golpe de Estado, três ou quatro tentativas de golpe de Estado. Tinham-no advertido. Jogou e perdeu. Isso explica-o muito bem Agostinho Barbieri Cardoso, diretor-adjunto da PIDE. Diz que à quarta tentativa de golpe de estado lhe decidiram pôr um infiltrado. E foi o infiltrado que lhe custou a vida.”

Numa entrevista dada justamente no ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, Juan Fernández Krohn garante que não se arrepende de nenhum destes pensamentos. “Não me arrependo. Não me sinto culpado. O Império Português, o Portugal ultramarino, tinha muitas vantagens de civilização. Foi uma grande tragédia a perda do Império Português.”

“Não queria matá-lo, queria acabar com aquele star power

Juan Fernández Krohn cumpriu apenas metade dos sete anos de cadeia. Saiu da prisão no dia 20 de novembro de 1985, e, nesse mesmo dia, foi expulso de Portugal. Estava, uma vez mais, sem rumo.

Se a relação formal de Krohn com a Igreja Católica já era duvidosa (foi ordenado por um bispo que estava suspenso e que insistia em não regularizar a relação com Roma), o momento em que atacou o Papa definiu-lhe o destino. O Código de Direito Canónico (cf. cân. 1370) determina que qualquer pessoa que recorrer à “violência física contra o Romano Pontífice incorre em excomunhão latae sententiae”, ou seja, é excomungado automaticamente, sem necessidade de processo canónico.

A verdade é que a excomunhão é uma pena imposta com o objetivo de poder ser revertida no futuro, com base no arrependimento do excomungado. Mas Krohn nunca teve qualquer intenção de se arrepender. “Quando saí de Portugal, de Vale de Judeus, um capelão, não me lembro do nome, ofereceu-me uma reconciliação canónica e eu recusei”, recorda.

Mais: também nunca pediu verdadeiramente perdão pelo que fez. “Quando escrevi o meu livro, o editor obrigou-me, de certa forma, a desculpar-me. Fiz um prólogo que foi um pouco da boca para fora, de desculpas ao Papa, e não teve seguimento. Nunca mais tive o menor gesto de aproximação.”

Por sua vontade, estava fora da Igreja Católica. E estava entregue a si próprio.

Sem possibilidade de permanecer em Portugal, procurou refúgio em Espanha. “Estive uns meses na casa dos meus pais. Foi muito duro, muito difícil”, recorda. “O meu pai condenava-me. Notava-se nele uma certa alergia ao que notava em mim de um passado de experiência na prisão: certas expressões que eu usava, que lhe pareciam típicas da cadeia.”

Foi em Bruxelas que Juan Fernández Krohn acabou por se fixar depois de sair de Portugal

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Acabou por sair do país. Não por ter sido expulso, garante, mas por causa da relação tensa com a família. “Foi sobretudo o conflito familiar de ordem religiosa, influenciado pelo meu irmão, que era sacerdote, que era capelão”, lembra Krohn. Os irmãos ficaram todos do lado dos pais. “A terra de onde vínhamos, no sul de Espanha, era uma terra com uma divisão muito forte entre católicos e a esquerda. A minha família virou-me as costas, claramente.”

Seguiu-se um tempo de deambulação pela Europa. “Depois de Espanha, estive umas semanas na Holanda, em casa de um pastor protestante holandês que me levou à Suíça, perto de Écône, onde tinha gente que me conhecia”, lembra. “Estive uns dias em Écône e foi ali que conheci a minha futura mulher.”

Foi a mulher, belga, quem lhe propôs que se mudassem para a Bélgica, onde vive desde o final da década de 1980. Krohn viria a ter um filho (que tem hoje 30 anos, mas de quem Krohn não quer falar, para o proteger) e, depois disso, acabaria por divorciar-se.

Na Bélgica, viveu em diversas cidades, incluindo Antuérpia e Oostende, antes de finalmente se fixar em Bruxelas. “A minha vida aqui tem sido difícil. A minha inserção social e profissional, como eu pretendia, foi muito difícil.”

Graças à licenciatura em Direito, Krohn chegou a trabalhar como advogado durante algum tempo. “Tive um incidente relacionado com o meu passado de Fátima, pelo qual fui expulso da Ordem dos Advogados, com um grande escândalo mediático”, explica, sem dar mais detalhes. De acordo com o jornal El País, a expulsão terá tido origem na abertura de um processo disciplinar contra Krohn depois de este ter feito “comentários antissemitas” numa entrevista a um jornal.

Depois disso, teve uma série de trabalhos precários: foi auxiliar numa companhia aérea que foi à falência, fez uns trabalhos esporádicos de tradução, foi operário agrícola e trabalhou como mecânico de bicicletas. Chegou à maioria destes trabalhos através de processos de reinserção social, mas queixa-se de apenas lhe terem sido propostos “contratos especiais, discriminatórios”. Não deixa cair a tese de que continua a ser perseguido por causa do seu passado: diz que, por não se ter filiado em nenhum sindicato, nunca conseguiu os benefícios laborais dos outros emigrantes, o que o levou a uma relativa pobreza.

Ainda assim, quis continuar a estudar. Fez um mestrado na Universidade Livre de Bruxelas e ainda tentou o doutoramento, com uma teses sobre o autor espanhol Francisco Umbral. “Fiz uma tese, efetivamente sobre ele, sobre as suas novelas sobre a Guerra Civil espanhola. Não me aceitaram na Bélgica, sem grande motivo. O motivo oficial foi o de que não respondia aos critérios da universidade. Mas a verdade é que o motivo de fundo era a lei da memória histórica”, justifica. “Um dos professores que me avaliaram deixou escapar o comentário: ‘Você não se distancia o suficiente da personagem, de certas personagens do regime de Franco, que aparecem no livro’.”

Depois, no ano 2000, voltou a protagonizar um momento polémico. Numa visita de Juan Carlos I a Bruxelas, Krohn repetiu o gesto de 1982: saltou as vedações e correu na direção do monarca espanhol, aos berros: “Tu mataste o teu irmão, eu não matei o Papa!” O incidente coincidiu com a terceira visita do Papa João Paulo II a Portugal, para a revelação da terceira parte do Segredo de Fátima. “Criaram-me uma imagem de indivíduo fora de controlo, incontrolável”, diz Krohn, que acabou por passar mais um mês na cadeia, desta vez na Bélgica, uma vez mais “num regime muito duro”.

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Em maio de 2000, Juan Fernández Krohn foi detido em Bruxelas por saltar as barreiras de proteção e fazer um protesto contra o rei Juan Carlos numa visita à Bélgica

BELGA/AFP via Getty Images

Hoje, a viver numa casa de acolhimento da câmara municipal de Bruxelas, continua a alimentar com frequência um blogue e um canal do YouTube, onde difunde as suas teorias e se multiplica, por exemplo, em críticas ao Papa Francisco. E até sobre o facto de ter ficado sem casa, tem uma explicação alternativa (e bem mais rebuscada) à da universal crise da habitação: “Pergunto-me se isto tem apenas a ver com a crise imobiliária, de que falei, ou se tem também a ver com as minhas tomadas de posição, no meu blogue de internet, sobre a guerra na Ucrânia, onde tomei posição clara, sem equívocos, a favor da Rússia e de Vladimir Putin. Num país como a Bélgica, onde a classe política está declaradamente a favor da Ucrânia, contra a Rússia, é legítimo perguntar se a situação em que me encontro não tem algo a ver com o problema…”

Mais de 40 anos depois do momento que lhe definiu o destino, há uma pergunta incontornável: queria mesmo matar o Papa naquele dia 12 de maio de 1982?

“Aí estamos a tocar no tema delicado da intenção”, responde Krohn. “Eu sempre, efetivamente, disse que queria matar. Mas, hoje, penso que não. Que aquilo foi uma puerilidade minha. Não queria matá-lo, queria acabar com aquele star power. Com aquele poder daquele Papa novo e único na história da Igreja, a que todos prestavam reverência e incenso. Todos, à direita e à esquerda.”

Desde os tempos do seminário de Écône, Juan Fernández Krohn tinha desenvolvido uma profunda aversão a João Paulo II e a tudo aquilo que aquele Papa moderno representava: a abertura da Igreja ao mundo contemporâneo, onde Krohn via os perigos do comunismo. Para o espanhol, a adoração praticamente unânime a João Paulo II era especialmente chocante.

"Eu sempre, efetivamente, disse que queria matar. Mas, hoje, penso que não. Que aquilo foi uma puerilidade minha. Não queria matá-lo, queria acabar com aquele star power. (...) Eu, na altura, tinha uma ‘carapaça’ teológico-doutrinal muito rígida."

“A imprensa de esquerda, a imprensa liberal maçónica francesa, o Le Figaro, o Le Monde, e a direita de todo o mundo: era uma unanimidade esmagadora na expressão”, diz, defendendo agora que o seu principal objetivo não teria sido matar o Papa, mas sim marcar uma posição nos meios de comunicação social. “Foi aquilo que me moveu, efetivamente. Aquele fenómeno novo do star power, do poder do estrelato mediático. Em francês usa-se uma expressão, vedettariat. Efetivamente, escandalizou-me.”

Continuando a olhar para trás, o antigo padre espanhol faz outra concessão: chamar “agente comunista”, “antipapa” e “encarnação do Anticristo” a João Paulo II afinal “talvez tenham sido exageros”. “Eu, na altura, tinha uma carapaça teológico-doutrinal muito rígida. E o Anticristo era a encarnação do mal”, desculpa-se, sublinhando que hoje já não pensa assim.

“Partiram-se-me as crenças, os dogmas”

Poucos dias antes de se encontrar com o Observador num hotel em Bruxelas, em janeiro de 2024, Juan Fernández Krohn recebeu a notícia da morte do irmão Miguel, dois anos mais velho do que ele, que foi um padre obediente a Roma até ao fim da vida. No início da entrevista, fez questão de recordar o irmão, com quem nunca reatou as relações rompidas com o seu ataque contra o Papa.

“Foi missionário no México, no estado de Chihuauha, com o povo Tarahumara. Os meus pais foram lá vê-lo uma vez e, quando voltaram, a minha mãe contou-me que o meu defunto pai chorava lágrimas de ver o estado de solidão em que se encontrava o meu irmão”, lembra Krohn. “Depois, foi capelão militar até ao final. Rompeu comigo, mais ou menos, por culpa do meu gesto de Fátima. Algo que lhe perdoo.”

Krohn não foi ao funeral do irmão. Foi informado de que Miguel foi cremado — e de que haveria planos para o levarem a Espanha alguns dias depois, para que pudesse visitar o lugar da sepultura do irmão. Nada mais. Anos antes, também não marcou presença no funeral do próprio pai, que morreu sem se reconciliar com o filho que tentou matar o Papa.

Quarenta anos depois de ter tentado assassinar João Paulo II para defender a Igreja, Juan Fernández Krohn diz que abandonou a fé. “Quando aconteceu aquilo em Fátima, tive uma espécie de sentimento… Quando eu era muito jovem, lembro-me de uma vez, na escola, me ter caído em cima uma janela daquelas que se abrem inclinadas. Caiu em cima de mim, não pela madeira, mas pelo vidro. Partiu-se o vidro todo na minha cabeça, sem me tocar, sem me ferir”, recorda Krohn, estabelecendo um paralelismo entre esse episódio e o que lhe aconteceu em Fátima no dia 12 de maio de 1982. “Partiram-se-me as crenças, os dogmas, aqueles que tinha tão arreigados.”

“Não sou católico, não me considero crente. Partilho a crítica de Nietzsche ao Cristianismo no seu livro O Anticristo. Uma crítica frontal, de fundo, ao Cristianismo. Partilho-a a 100%.”

Outrora defensor radical da liturgia tradicional, Krohn afastou-se da Igreja pelo próprio pé. “Sinto que continuo a ter um fundo comum, mas afastei-me dos sacramentos”, afirma. “Sem definir-me, sinto-me melhor com o adjetivo ‘pagão’ do que ‘cristão’.”

Juan Fernández Krohn afastou-se da Igreja e deixou de ser crente

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Estreia. “Matar o Papa”. Episódio 1: “O Anticristo em Fátima”

Episódio 2: “Três facas”

Episódio 3: “Um segredo escrito à mão”

Episódio 4: “Beijar o Papa”

Episódio 5: “Não é pecado”

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