Não é todos os dias que um negócio se pode orgulhar de ter sobrevivido a duas pandemias, guerras mundiais, uma monarquia e uma ditadura. A Confeitaria Moura, em Santo Tirso, mantém-se há 130 anos na mesma família e surgiu à boleia de uma história de amor. Luísa nasceu numa família tirsense com tradição doceira e vendia biscoitos e bolos secos, mais conhecidos como “bolos de gaveta”, em romarias da cidade e nos arredores. Quando se casou com Guilherme Moura, este não descansou enquanto não encontrou um espaço onde a mulher pudesse vender os seus bolos e biscoitos diretamente ao público e sem se cansar tanto. “A primeira loja era junto ao Mosteiro de São Bento, também aqui em Santo Tirso, mas há 100 anos que ocupa este prédio, numa das ruas principais da cidade”, explica ao Observador Alda Moura, atual responsável e bisneta dos fundadores.
O negócio foi batizado com o apelido da família e assim permaneceu até hoje. “Quando o meu bisavô morreu, o meu avô sentiu necessidade de alargar a oferta e foi para o Porto uns tempos fazer uma formação em pastelaria. Nessa altura conheceu um chef pasteleiro espanhol que acabou por contratar, tendo trabalhado connosco uns quatro ou cinco anos depois”, recorda a atual responsável, acrescentando que foi precisamente este chef que introduziu as receitas da massa folhada e, consequentemente, do pastel jesuíta, que ainda hoje são seguidas à risca.
“Fomos os primeiros a criar e a vender o jesuíta, depois outras confeitarias e pastelarias passaram a fazer o mesmo, mas o meu avô acabou com a concorrência, já naquela altura era muito agressivo comercialmente, apostava no marketing e comprava páginas de publicidade nos jornais, acabando por ganhar muita visibilidade.” Alda Moura e os primos descobriram estas e outras pérolas – como o facto de a bisavó Luísa ter casado grávida às escondidas – nas pesquisas que a família está a fazer a propósito do lançamento de um livro comemorativo do aniversário, agendado para este verão.
A empresa fundada em junho de 1892 é hoje gerida pela quarta geração da família Moura que, apesar das várias propostas de investidores ao longo dos anos, fez sempre questão de manter o legado. “É quase uma obrigação moral honrar os nossos antepassados, neste momento o meu filho já está a pôr as mãos na massa, ajuda na parte fabril e o negócio irá continuar na próxima geração, tenho a certeza”, conta Alda Moura, sublinhando que até agora a casa teve sempre mulheres ao leme.
“Depois da minha bisavó e da minha avó, foi uma tia Maria Antonieta que acabou por se dedicar ao negócio durante a sua vida toda. Era a única tia solteira, vivia no mesmo prédio da confeitaria e todos a chamava carinhosamente de “menina Toninha”. Agora estou eu à frente, mas o facto de serem sempre mulheres é uma mera coincidência.”
Alda Moura tem 56 anos, é filha única e recorda-se de visitar o pai que trabalhava como pasteleiro na confeitaria, no número 56 da rua Sousa Trepa, em Santo Tirso. “Lembro-me de vir brincar com os meus primos no fim da escola, dos almoços e jantares de família que tínhamos aqui em cima, da cozinheira que fazia o almoço todos os dias para os funcionários, éramos e somos literalmente uma grande família.” A atual responsável pela Moura trabalhava na área da saúde quando em 2013, ano em que a tia Antonieta morreu, passou a conciliar os seus horários numa clínica de imagiologia com a gestão da confeitaria. “Em dezembro passado tive que optar e escolhi dedicar-me a isto a 100%.”
Jesuítas feitos à mão, com ovos frescos e cozidos num forno a duas temperaturas
“Confeitaria e Pastelaria Moura – fabrico esmerado de toda a qualidade de doce especializado em jesuítas e limonetes”, lê-se em letras azuis estampadas em todas as caixas brancas de cartão que saem do balcão. Atrás dele, existe uma sala onde impera a azáfama e o cheiro a açúcar. Em cima da mesa grande de alumínio, polvilhada com farinha, estão cinco rolos da massa, facas pouco afiadas e taças com vários preparados.
De um lado, três máquinas amassadeiras a girar a grande velocidade, do outro, carrinhos metálicos com tabuleiros recheados de jesuítas, limonetes, éclairs e croissants ainda a fumegar sobre o papel vegetal. O alarme agudo dos vários fornos em ação mistura-se com o diálogo bem-humorado entre os funcionários. Esta zona de produção funciona todos os dias, entre a meia noite e as 17h, por ela passam dez trabalhadores, distribuídos por vários turnos, e é aqui que tudo acontece.
“O turno mais duro é o primeiro que se dedica à preparação das massas, ao longo do dia depois vamos fazendo o que é necessário até porque o volume de vendas não é sempre igual”, explica Alda Moura, sublinhando que é desta sala que sai toda a produção para as três lojas no Porto e a loja de Braga. “As receitas originais mantêm-se intactas, fizemos questão de não alterar nenhum passo produtivo, não utilizamos produtos industrializados e todo o processo é ainda feito muito manualmente”, garante a responsável, destacando os ovos frescos ou a massa e o creme de pasteleiro feitos diariamente.
Tudo começa na massa e para que a receita original resulte há que medir milimetricamente a manteiga, a farinha, os ovos, a água e o sal. Depois de pesados, os ingredientes entram numa das amassadeiras disponíveis e misturados de forma mecânica durante meia hora, em seguida é adicionada mais uma dose generosa de manteiga e a massa é trabalhada manualmente. No caso dos jesuítas, a massa folhada é estendida formando um retângulo, cortada em triângulos e pincelada com um glacê, uma calda de açúcar com claras de ovo.
Os triângulos são posteriormente distribuídos cuidadosamente num tabuleiro, dispostos numa forma geométrica capaz de garantir que o calor possa entrar uniformemente, e cozem no forno a 200 graus durante cerca de 40 minutos. “A temperatura debaixo é sempre superior à de cima para não queimar o açúcar e só percebemos que o jesuíta está pronto a sair quando o viramos ao contrário e vemos que a massa está dourada”, diz o pasteleiro Jorge Dias, já com as luvas nas mãos para não se queimar.
Cada fornada tem 72 unidades e por dia a confeitaria Moura tem capacidade para fazer 3500 a 4000 jesuítas, tudo depende de procura e das encomendas feitas à última hora. Os limonetes tornaram-se outra das imagens de marca da casa centenária e foram criados com a intenção de rentabilizar as aparas de massa que sobravam dos jesuítas.
“Penso que na época o meu avô pensou nesta solução inteligente de rentabilizar a massa, aproveitando as tiras que sobram dos jesuítas para os chapéus dos limonetes. Não são mais difíceis de fazer, simplesmente demoram mais tempo”, explica Alda Moura. Os limonetes são bolos húmidos em forma de empada, recheados com creme de pasteleiro tradicional e cobertos por um chapéu feito de glacê. Diariamente da Moura saem mil unidades e, tal como os jesuítas, se a base estiver dourada é sinal que já podem sair do forno.
Clientes exigentes, memórias que emocionam e nem a pandemia fez tremer o negócio
Há quem prefira o jesuíta em miniatura, “para não quebrar a dieta”, e há quem o coma todos os dias, acompanhado com café, um copo de vinho ou até uma flute de champanhe. Há quem o coma num prato, de faca e garfo, e há quem descole a capa de açúcar e a vire para baixo, espalmando o pastel como uma verdadeira sanduíche. Seja qual for a forma de saborear este doce, o prazo de validade é apenas de 24 horas e tanto os jesuítas como os limonetes devem ser conservados à temperatura ambiente dentro de uma caixa de cartão ou embrulhados em papel.
De todos os clientes desta confeitaria, há alguns nomes famosos que se destacam e Mário Soares é um deles. “Sempre que vinha para estes lados fazia questão de passar aqui e levar uns quantos para casa, até temos fotografias dele na entrada. Normalmente vendemos para fora em caixas de cartão presas por um fio, mas o motorista do Mário Soares dizia-nos sempre para não usarmos o cordel porque já sabia que ele não aguentava e abria a caixa a meio da viagem para Lisboa.” Alda Moura recorda ainda outro cliente assíduo, o arquiteto Álvaro Siza Vieira. “Todos os fins de semana vinha buscar uma caixa de jesuítas para os encontros com a família.”
A confeitaria de Santo Tirso iniciou a expansão da marca há nove anos, abrindo três lojas no Porto e uma em Braga, a intenção é chegar às principais cidades do país mantendo o fabrico artesanal e a qualidade. “Temos o nosso limite, não queremos alterar processos e massificar o produto. Este ano não iremos abrir mais pontos de venda, mas o próximo será em Guimarães”, sublinha Alda Moura, admitindo que acompanhar os tempos sem descurar a tradição nem sempre é fácil.
“Qualquer alteração que façamos na matéria prima temos clientes que notam logo a diferença. O nosso chocolate, por exemplo, é cacau puro, mas há uns quatro anos houve uma crise na compra do cacau, tivemos muitas dificuldades e o nosso fornecedor arranjou-nos um chocolate muito parecido, mas os clientes notaram logo.”
Resistentes à mudança, os clientes têm à disposição vários exemplos da doçaria tradicional portuguesa, mas os jesuítas e os limonetes continuam a representar 80% das vendas e a memória é um dos ingredientes principais deste negócio familiar. “Os nossos clientes sentem que esta empresa é uma instituição, já não é só uma confeitaria e sentem-se como parte integrante nela. Têm histórias muito ligadas a esta casa, conhecemos pessoas com 80 anos que se lembram de vir aqui de mão dada com os avós com cinco ou seis anos e quando falam disto até se emocionam.”
Nos anos 30 e 40, o Colégio das Caldinhas, estabelecimento de ensino regido por padres jesuítas, recebia em Santo Tirso jovens de todos o país, aos fins de semana os pais visitavam os filhos e a confeitaria Moura era uma paragem obrigatória na hora do lanche. “Muitos dos laços emocionais a este sítio também vêm certamente desse tempo.” Durante a I Guerra Mundial, o negócio teve uma quebra grande, mas nunca esteve em causa e ao longo dos anos tem vindo sempre a crescer, mais recentemente a pandemia provocada pela Covid-19 provou isso mesmo.
“Durante a primeira vaga fomos obrigados a fechar duas semanas e percebemos que tínhamos de fazer alguma coisa porque em casa as pessoas também consumiriam. Saímos da nossa zona de conforto e começamos a vender ao postigo, numa fase inicial, e depois comprámos um carro para fazer entregas ao domicílio em Santo Tirso, Porto, Braga, Guimarães, Póvoa de Varzim e Vila do Conde. A verdade é que em 2020 tivemos a melhor Páscoa de sempre e 2021 foi um ano muito positivo para nós a nível de vendas.” O fenómeno desta confeitaria é difícil de explicar, mas Alda Moura tem a certeza que seja qual for o contexto, mais triste ou mais alegre, “um docinho pode mesmo fazer a diferença no nosso dia”.