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O número de primeiras consultas de especialidade nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) diminuiu, no primeiro semestre deste ano, cerca de 2% — uma quebra que já não se registava desde 2020, ano da pandemia. A menor capacidade de resposta que o SNS revela em 2024 está a comprometer o acesso dos utentes às consultas e tem impacto direto quer no número de pessoas a aguardar uma primeira consulta de especialidade (que já ascendem quase a 800 mil), quer no tempo de espera, com mais de 50% dos utentes a aguardarem consulta já para lá do tempo máximo de resposta previsto na lei. Sindicatos médicos, Ordem e administradores hospitalares consideram a realidade preocupante e pedem ação ao ministério.
Segundo os dados revelados esta terça-feira pela Entidade Reguladora da Saúde, o número de consultas de especialidade não oncológicas diminuiu 2% de janeiro a junho de 2024, comparando com o primeiro período do ano passado. É a primeira vez que a ERS regista uma quebra no número absoluto de consultas desde o primeiro semestre de 2020, quando o sistema de saúde foi severamente afetado pela pandemia de Covid-19. Depois de uma quebra de 29% nesse período, o número de consultas aumentou 14% em 2021, 18% em 2022 e 5% em 2023 — quando foi superado, no primeiro semestre, o número de consultas pré-pandemia. Em 2024, o ciclo de recuperação foi interrompido.
Desvio de médicos para as urgências pode explicar quebra das consultas
“Os dados são muito preocupantes. Há uma quebra global das consultas”, diz o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH). Para Xavier Barreto, a alocação de médicos aos serviços de urgência pode ajudar a explicar esta diminuição. “O primeiro semestre foi um período marcado por muitas dificuldades nos serviços de urgência, em que muitos médicos foram desviados da atividade programada para os serviços de urgência, e pode ter tido algum impacto”, lembra o responsável. Um diagnóstico também feito pelo bastonário da Ordem dos Médicos. “Poderá ter a ver com o desvio dos médicos para os serviços de urgência, que faz com que a atividade assistencial possa ter sido prejudicada”, admite Carlos Cortes.
Embora os dados não estejam, na sua maioria, desagregados por especialidade, há duas consultas que a ERS analisou em separado: as de Cardiologia e as de Oncologia. No primeiro, caso houve uma quebra de quase 40%; já na Oncologia, realizaram-se, nos primeiros seis meses do ano, mais 16% de consultas em relação a igual período do ano passado, o que sugere que haverá uma grande variabilidade entre as várias especialidades médicas.
A queda do número de primeiras consultas e a procura crescente por cuidados de saúde estão a pressionar cada vez mais as listas de espera. No final do primeiro semestre, havia 786 122 utentes à espera para consultas não oncológicas, um aumento de praticamente 10% em relação ao ano passado. Já em 2023, e em relação ao primeiro semestre de 2022, o número de utentes a aguardar primeira consulta tinha aumentado, no caso 37%. No caso da Oncologia, o cenário inverte-se: cerca de 7300 pessoas em lista de espera, sendo que, no ano passado, eram mais de nove mil. Neste caso, a melhoria pode ficar a dever-se ao programa especial de cirurgias implementado pelo atual governo e que teve impacto também nas consultas.
Mais de 80% dos doentes oncológicos à espera para lá do tempo máximo
A verdade é que com cada vez maior volume de pessoas a aguardar primeira consulta, o SNS não consegue garantir o cumprimentos dos Tempos Máximos de Resposta Garantidos, previstos na lei. No primeiro semestre, 54,5% dos utentes já aguardavam para lá do tempo máximo garantido para consultas não oncológicas, percentagem que sobe dramaticamente no caso da Oncologia, onde 83% esperavam para lá do máximo previsto. É a primeira vez, desde que existem registos do regulador da saúde, que a percentagem geral ultrapassa os 50% — o ano passado fixou-se nos 47%, um aumento acentuado em relação ao primeiro semestre de 2022, quando tinha ficado nos 35%.
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Ressalve-se que os tempos de resposta, que os hospitais deveriam cumprir, são diferentes. A primeira consulta de especialidade hospitalar deve ser realizada em 30, 60 ou 120 dias após o pedido do médico de família, consoante a consulta seja de realização “muito prioritária”, “prioritária” ou “normal”, respetivamente. Em caso de doença oncológica suspeita ou confirmada, a primeira consulta de especialidade hospitalar deve ser realizada em 7, 15 ou 30 dias.
“Os tempos máximos de resposta são cada vez mais ultrapassados, há cada vez mais dificuldades e as consultas mais prioritárias são aquelas que têm um maior número de doentes em que o tempo máximo garantido foi excedido. É um dado preocupante”, alerta o bastonário dos médicos, que critica a inação do Ministério da Saúde e da Direção Executiva do SNS. “O problema é que o Ministério da Saúde e a Direção Executiva do SNS olham para estes números de seis em seis meses e não acontece nada. Esta monitorização da ERS deveria servir para o poder político poder ter uma intervenção. A cada seis meses, percebemos que o acesso piora cada vez mais. É inadmissível termos conhecimento destes péssimos resultados e de um acesso difícil dos doentes ao SNS e nada ser feito”, diz Carlos Cortes.
Para o bastonário da Ordem dos Médicos, o ministério “tem de analisar estes dados e perceber onde estão os pontos de constrangimento”. “Temos de perceber por que razão há atrasos. É porque há falta de médicos, porque há uma má organização, é porque há obstáculos administrativos?”, questiona.
No que diz respeito ao número de doentes que aguarda resposta para lá dos tempos máximos, há grandes discrepâncias consoante a unidade hospitalar. Segundo o relatório da ERS, há várias Unidades Locais de Saúde onde menos de 30% dos doentes estão a aguardar consulta fora do tempo máximo. Localizam-se quase todas na região Norte e Centro: ULS de Entre Douro e Vouga (com sede em Santa Maria da Feira), a ULS de Castelo Branco, a ULS da Póvoa do Varzim/Vila do Conde ou o IPO de Coimbra. A exceção, a sul, é a ULS do Litoral Alentejano. Por outro lado, há outras unidades que têm mais de dois terços dos doentes a aguardar para lá do previsto por lei: a ULS do Médio Tejo (com sede em Tomar), a ULS do Tâmega e Sousa (com sede em Penafiel) e a ULS de Barcelos/Esposende.
Dedicação plena dos médicos não se reflete nos hospitais, dizem administradores hospitalares
A presidente da Federação Nacional dos Médicos não tem dúvidas de que a carência de profissionais se reflete nos dados agora conhecidos. “O aumento do número de pessoas que espera depois dos tempos máximos de resposta garantidos reflete a falta de médicos no SNS, há uma carência gritante em várias áreas”, diz Joana Bordalo e Sá, acusando “os sucessivos governos” de nada fazerem para garantirem mais médicos. “A saída de profissionais pode também ajudar a explicar estes números”, sublinha, por seu lado, o presidente da APAH. Xavier Barreto defende que os dados agora divulgados pelo regulador da saúde confirmam os receios manifestados no verão pelos administradores hospitalares, que receavam que o regime de dedicação plena (ao qual já aderiram nove mil médicos) não significasse um aumento da atividade assistencial nos hospitais.
“Temos dois grandes grupos de médicos nos hospitais: os que não fazem urgência e que estavam em 40 horas, e, nesses, não houve ganho nenhum. E outro que faz urgência, e onde poderemos ter ganho pelo menos quatro horas, porque esses médicos tinham descanso compensatório e deixaram de ter. A questão é para onde vão essas horas? Marcámos mais consultas ou cirurgias ou dedicam as horas a outras atividades, como o internamento ou atividades administrativas?”, questiona o responsável, que defende que “devia ter havido uma definição clara de que as horas eram para fazer cirurgias e consultas, e sobretudo primeiras consultas, e isso não ficou definido”.
Aquilo que parece um paradoxo (a diminuição do número bruto de primeiras consultas no primeiro semestre deste ano e o aumento dos médicos em dedicação plena), não o é, diz o bastonário dos médicos. “Não é surpreendente, porque não houve um aumento das horas de trabalho dos médicos. Nem o SNS atraiu ainda médicos que saíram do SNS”, realça Carlos Cortes.
Mas como se pode garantir que os utentes tenham um melhor acesso às consultas de especialidade no SNS? Para os sindicatos, a solução passa por contratar mais médicos e pela alocação de menos horas aos serviços de urgência. “Se se aloca mais tempo às urgências, sobre menos tempo para as consultas. Nós propomos a redução do horário semanal de urgência de 18 para 12 horas, disponibilizando seis horas para consultas e cirurgias. E o Ministério tem recusado”, sublinha o presidente do Sindicato Independente dos Médicos, Nuno Rodrigues, que lembra que a estrutura sindical que lidera também já propôs “um programa SIGIC para as consultas“.
Governo quer um voucher para as consultas, sindicatos médicos criticam ideia
Uma das medidas que consta do programa de governo é a criação do chamado “voucher consulta de especialidade”, que já existe para as cirurgias. A intenção é garantir a emissão de um voucher sempre que o tempo máximo de espera seja ultrapassado, para que o utente possa ter resposta nos setores privado ou social. Uma medida que ainda não saiu do papel e que não agrada às estruturas sindicais.
“Não vamos lá com incentivos, ou contratualizações com o exterior. E o voucher é uma medida cara e não sustentável. Como é que depois se garante a continuidade de cuidados? Se o doente precisar de um exame ou de um tratamento, como se vai fazer? Temos de tomar medidas de fundo e estruturais para termos mais médicos no SNS”, defende Joana Bordalo e Sá. “A solução do voucher não nos parece positiva porque a consulta pressupõe um seguimento. Em termos financeiros seria também uma incógnita”, diz Nuno Rodrigues. Em sentido contrário, o bastonário dos médicos vê com bons olhos o encaminhamento. “Quando o SNS não dá resposta, o importante é que o doente tenha uma resposta. É irrelevante para o doente ser atendido no setor público, privado ou social”, defende Carlos Cortes.
Para o presidente da associação que representa os administradores hospitalares, é importante colocar outros profissionais, como os enfermeiros, a seguirem os doentes crónicos, o que, defende Xavier Barreto, permitiria libertar os médicos para a realização de primeiras consultas.
“Não vamos conseguir inverter isto se não olharmos de outra forma para os doentes crónicos. As consultas subsequentes [que se seguem à primeira consulta] representam cerca de 3/4 das consultas no SNS. Algumas têm necessariamente de ser feitas por um médico e outras não. Numa parte importante das situações, o doente está estável, não tem necessidade de alterações farmaco-terapêuticas, nem precisava de ir ao hospital. Devíamos encontrar uma nova forma de fazer o acompanhamento destes doentes, nomeadamente com enfermeiros. Isso permitiria libertar os médicos para as primeiras consultas, e para atividades altamente diferenciadas”, sublinha o administrador do Hospital de São João, acrescentando que, noutros países, também já estão a ser utilizados dispositivos tecnológicos “que ajudam a fazer o seguimento e a sinalizar a necessidade de ir ao médico”.
O Observador questionou o Ministério da Saúde sobre a deterioração do acesso dos utentes às primeiras consultas de especialidade no SNS, sobre que estratégia está a ser delineada para colmatar as dificuldades, se pondera lançar um programa de recuperação nas consultas (como aconteceu nas cirurgias oncológicas) e para quando se prevê o lançamento do “voucher consultas de especialidade”, mas não obteve qualquer resposta.