“Pelas razões referidas, não respondo”. Foram mais de 20 as ocasiões em que Nuno Rebelo de Sousa pronunciou esta frase ou variações da mesma numa das audições mais aguardadas da Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso da atribuição do medicamento Zolgensma a duas crianças luso-brasileiras. O filho do Presidente da República recusou-se a responder a todas as questões dos deputados — que consideraram a postura do empresário “cobarde”, o apelidaram de “Robin dos Bosques” e questionaram sobre eventuais benefícios por interceder no caso. Pressionado, acusado e até ameaçado, Nuno Rebelo de Sousa resistiu sempre e manteve o prometido silêncio.
Durante hora e meia marcada pela falta de respostas (exceção feita ao momento em que o presidente da CPI, Rui Paulo Sousa pediu a Nuno Rebelo de Sousa que se identificasse perante a comissão), muitas foram as questões que ficaram por esclarecer, desde logo se o empresário conhece ou não a família das crianças, nomeadamente Daniela Martins, a mãe das gémeas luso-brasileiras.
O deputado do CDS-PP João Almeida questionou esta quarta-feira Nuno Rebelo de Sousa sobre a relação que este poderá ter com outras pessoas envolvidas na investigação (nomeadamente com a própria Daniela Martins, com o ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales e até com o advogado da mãe das gémeas, Wilson Bicalho). Mas Nuno Rebelo de Sousa optou por não responder, mesmo após as insistências do deputados e até do presidente da CPI, que avisaram que a ausência de respostas poderia trazer consequências e configurar um crime de desobediência.
Nuno Rebelo de Sousa e a mulher conheciam a mãe das gémeas?
“Não pode não responder”, contrapôs João Almeida, já que, explicou, se trata de uma questão de identificação da testemunha, prevista no Código de Processo Penal e sem relação com o risco de auto-incriminação. O deputado pediu que ficasse em ata que o inquirido se recusou a responder: “Desobedeceu a uma obrigação de qualquer testemunha”.
Na verdade, pouco se sabe da eventual proximidade entre o filho do Presidente da República e a família das crianças tratadas no Hospital de Santa Maria. Nuno Rebelo de Sousa vive há 15 anos em São Paulo, cidade onde também mora a família das gémeas. A mãe das crianças, Daniela Martins, garantiu na CPI, no dia 21 de junho, que não conhece Nuno Rebelo de Sousa e que só contactou uma única vez com Juliana Drumond, companheira do filho do Presidente da República anos mais tarde, durante um evento no Brasil.
No entanto, nessa mesma audição, os deputados confrontaram Daniela Martins com um email, enviado do seu endereço de correio eletrónico, para Juliana Drumond, em dezembro de 2019, em que Daniela Martins se dirigia a Lacerda Sales, agradecendo-lhe a atenção dada às filhas. Daniela Martins acabou por explicar que, numa altura em que as filhas estavam num estado de saúde delicado (nos cuidados intensivos de um hospital de São Paulo) várias pessoas tinham acesso ao seu email (nomeadamente os irmãos e cunhadas) pelo que qualquer um deles poderia ter enviado um email para a companheira de Nuno Rebelo de Sousa. Daniela Martins admitiu que o casal Nuno Rebelo de Sousa-Juliana Drumond possa ter tido conhecimento da situação das filhas através de um “email-padrão” enviado pela família.
No depoimento de Nuno Rebelo de Sousa ao Ministério Público, divulgado pela Sábado, o empresário garante que “não conhece pessoalmente nem Daniela Martins, nem Samir Filho [o pai das gémeas], nem as crianças”, admitindo, no entanto, que “tomou conhecimento da doença” das gémeas luso-brasileiras quando Daniela Martins lhe enviou essa informação “por WhatsApp, através de uma conhecida em comum que sabia que exercia funções na Câmara Portuguesa de Comércio de São Paulo”.
Perante o silêncio quase total que Nuno Rebelo de Sousa usou na CPI (escudando-se na indicação que recebeu dos advogados) ficam por esclarecer algumas questões: Daniela Martins já conhecia Nuno Rebelo de Sousa ou Juliana Drumond antes de as crianças terem sido diagnosticadas com Atrofia Muscular Espinhal, em setembro de 2019, tendo usado essa influência para pressionar o poder político em Portugal (o chamado “pistolão” ou cunha, de que a mãe das gémeas se gabou num vídeo divulgado pela TVI)? Ou as duas partes teriam apenas amigos em comum na sociedade paulista, que terão ajudado a fazer a ponte? O que pediu a família das gémeas a Nuno Rebelo de Sousa? Ou terá o filho do Presidente da República intercedido pelas gémeas por puro altruísmo e fazendo uso do contacto privilegiado que tinha em Portugal — o do próprio pai? E porquê? E qual a importância de ser presidente de uma associação comercial?
Filho de Marcelo recebeu alguma contrapartida ao interceder pelas crianças?
Outra questão que ficou sem resposta entronca nesta última. Terá Nuno Rebelo de Sousa sido, de alguma forma, beneficiado por ter ajudado as crianças ou fê-lo por puro altruísmo? A questão foi levantada por vários deputados mas acabou, invariavelmente, sem resposta. “Por que é que, não conhecendo ninguém, se empenhou no caso?”, começou por questionar a deputada da Iniciativa Liberal, Joana Cordeiro. Uma questão repetida por Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda. “Por que é que intercedeu tanto?”, perguntou, deixando duas hipóteses: ou por “altruísmo desinteressado” ou “por lobismo sem contrapartidas”.
Uma ideia que seria secundada pelo deputado do PS João Paulo Correia. “Há duas teses: um homem de causas humanistas e altruístas; e a tese de lobista, convencido por alguma contrapartida, direta ou indireta”, atirou o deputado, tentando uma resposta de Nuno Rebelo de Sousa que, mais uma vez, não surgiu. Já o deputado do PSD António Rodrigues classificou mesmo — de forma algo irónica — o filho do Presidente da República como o “Robin dos bosques da solidariedade”, uma vez que a história está cheia de “altruísmo e bondade”. Já a líder do PAN Inês Sousa Real referiu que a intervenção do empresário pode ser entendida como “um gesto altruísta” ou como um gesto que promoveu “um benefício económico para alguém”.
Mas terá Nuno Rebelo de Sousa sido beneficiado com o caso e com o ‘encaminhamento’ das gémeas para o SNS? “Foi pago por ter atuado neste papel de lobista e de facilitador de negócios?”, nas palavras de João Paulo Correia. Não se sabe. Há poucos dias, a CNN revelava um facto que pode tornar-se relevante para responder a esta questão: a empresa brasileira que pagava o medicamento Nusinersen (que foi administrado às gémeas numa fase inicial antes de terem recebido o Zolgensma) poupou milhões de euros com o facto de as crianças terem sido encaminhadas para o SNS.
Recorde-se que embora o Zolgensma tenha um valor unitário mais elevado (de 2 milhões de euros por tratamento à época, embora o preço tenha baixado entretanto), é apenas administrado uma única ao contrário do Nusinersen, que tem de ser administrado quatro vezes por ano. Daniela Martins chegou a admitir que a decisão de recorrer ao SNS teria poupado 22 milhões de reais (quase cinco milhões de euros no câmbio em vigor em 2o19) à empresa em causa — que era detida pela mesma empresa internacional que também detinha o Grupo Lusíadas Saúde, dono do Hospital dos Lusíadas, unidade hospitalar onde as gémeas chegaram a ter uma consulta marcada (que foi desmarcada no mesmo dia em que foi marcada a consulta no Santa Maria, um facto ainda não explicado).
Contactos com o Marcelo sobre as gémeas ficaram-se só pelos emails?
Outra questão que ficou por esclarecer foi a dos contactos que Nuno Rebelo de Sousa manteve com o pai e com a Presidência da República a respeito do caso das gémeas. O que se sabe é que o empresário enviou, a 21 de outubro de 2019, um email a Marcelo Rebelo de Sousa (interpelando o Presidente da República como ‘pai’), em que explica que um “grupo de amigos da família das duas crianças gémeas se tinha reunido e estava a tentar, a todo o transe, que elas fossem tratadas em Portugal”. Nuno Rebelo de Sousa falava mesmo de uma “corrida contra o tempo”, enfatizando a urgência do caso.
Nesse mesmo dia, Marcelo enviou o caso para o chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, “nos seguintes termos: “Será que Maria João Ruela, que era, na altura, assessora para Assuntos Sociais, pode perceber do que se trata? Ponto de interrogação”, segundo a explicação do próprio Presidente da República. O e-mail seguiu para a assessora, que contactou o Hospital de Santa Maria e que, dois dias depois respondeu ao filho de Marcelo. Mas esta não foi a única intervenção que a Presidência da República teve no caso. Nos dias seguintes, sucederam-se as trocas de emails entre a Presidência da República e o maior hospital do país e também entre Belém e o próprio Nuno Rebelo de Sousa.
O Hospital de Santa Maria acabou por responder a Belém que “o processo foi recebido” e que estavam a ser “analisados vários casos do mesmo tipo”. Uma resposta que foi transmitida a Nuno Rebelo de Sousa, que, de seguida, perguntou à Casa Civil da Presidência se não seria possível “acelerar” o processo. Na audição, o deputado do PS João Paulo Correia acusou Nuno Rebelo de Sousa de ter colocado a Casa Civil da Presidência da República “ao serviço do seu pedido” de ajuda para as gémeas luso-brasileiras.
“O Dr. Nuno Rebelo de Sousa é a peça-chave deste caso. Criou um grave caso político ao seu pai e colocou a Casa Civil da Presidência da República ao serviço do seu pedido”, sublinhou João Paulo Correia, acrescentando que, em 10 dias, foram trocados 15 emails com a Casa Civil do Presidente da República. Do conhecimento da CPI são apenas os emails, ou sejam, as comunicações escritas enviadas por Belém.
Terá Nuno Rebelo de Sousa contactado com o pai por outras vias, colocando pressão no chefe de estado e tentando que o poder político exercesse, por sua vez, pressão sobre o governo ou diretamente sobre o SNS para que as crianças fossem vistas e tratadas em Portugal? E, para além deste caso, era frequente o empresário tentar interceder junto do pai noutros assuntos, relacionados ou não com a área da saúde? Era frequente receber pedidos para agilizar o contacto com as autoridades portugueses?
Crianças foram tema da reunião com Lacerda Sales? Houve mais reuniões com o governante?
São muitas as perguntas que ficaram sem resposta, tal como as questões relacionadas com os contactos mantidos entre o filho de Marcelo e o ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales, que é apontado pelo relatório da Inspeção Geral das Atividades em Saúde como o impulsionador da marcação da consulta. Segundo o relatório, foi o à época governante a pedir à então secretária Carla Silva que contactasse Nuno Rebelo de Sousa e depois que contactasse “telefonicamente com a Diretora do Departamento de Pediatria” no sentido de marcar a consulta para as crianças.
Os dois tiveram uma reunião no Ministério da Saúde no início de novembro de 2019, pedida pelo filho do Presidente da República. No entanto, as versões acerca do tema da reunião não coincidem. Em entrevista ao Expresso, em dezembro, Lacerda Sales admitiu que ficou a conhecer o caso das gémeas nessa reunião. “Disse-me que conhecia duas crianças luso-brasileiras com AME, com perto de 1 ano, e que seria importante fazerem um medicamento (Zolgensma) até cerca dos 2 anos. Não me deu conta de que haveria um processo paralelo do ponto de vista formal, que tinha havido contactos com a Estefânia, com a Casa Civil, que esse contacto tinha ido para o gabinete do primeiro-ministro e para o Ministério da Saúde”, afirmou na altura, Lacerda Sales.
No entanto, ao Ministério Público, o filho do Presidente da República conta uma outra versão. O empresário estava estava em Lisboa para participar na Web Summit, como é habitual fazer, acompanhando uma delegação de cidadãos brasileiros. Nesse contexto, explica Nuno Rebelo de Sousa na exposição enviada às procuradores (e divulgada pela Sábado) “havia sempre reuniões com secretários de Estado, normalmente responsáveis pelas pastas da Internacionalização, da Inovação, da Administração Interna ou das Comunidades”. Contudo, diz, nesse ano “uma das frentes de atuação da delegação brasileira na Web Summit tinha a ver com a área da Medicina e da Saúde” e a reunião com Lacerda Sales foi a esse propósito.
Terá Nuno Rebelo de Sousa contactado o secretário de Estado por outros meios, através de email, por exemplo? E terá mesmo transmitido a Lacerda Sales a urgência do caso e a necessidade de as crianças serem tratadas em Portugal? E terá sido a única vez? A resposta foi sempre a mesma: “Pelas razões referidas, não respondo”.