A constatação de que a vida é estranha forma o primeiro passo do caminho a seguir quando pretendemos explicá-la. Para o efeito, a humanidade tem desenvolvido as mais diversas ferramentas de produção e transmissão de conhecimento — como a ciência, a matemática, a psicologia, a filosofia e a linguagem. Cormac McCarthy decidiu escrever um par de romances onde demonstra, por um lado, o quão perdido se pode estar durante o trajecto e, por outro, a possibilidade de criar grande literatura a partir dessa desorientação.
Traduzidos por Paulo Faria, com a edição da Relógio D’Água, O Passageiro e Stella Maris contam-nos a história dos americanos Bobby e Alicia Western, filhos de um físico colaborador de Robert Oppenheimer no projecto destinado a fabricar a bomba atómica que destruiu Hiroxima e Nagasáqui. Crescidos em Los Almos, cada um dos irmãos demonstrou, desde cedo, uma particular aptidão para os números.
O Passageiro é protagonizado por Bobby. Estudou matemática e física com distinção até ao dia em que decidiu abdicar do doutoramento para rumar à Europa, onde pilotou carros de corrida. Em 1972, um grave acidente deixa-o em coma. Enquanto leitores, somos convidados a entrar na história oito anos depois, em 1980: Bobby está na casa dos trinta e trabalha como mergulhador de resgate em Nova Orleães.
O enredo cede perante a dimensão interior das personagens. Na primeira cena, a equipa de resgate de Bobby é contratada para investigar os destroços de um avião privado afundado no Golfo do México: contados os corpos, conclui-se pela falta de um dos passageiros e do motivo dessa omissão. O problema, que a princípio parece apresentado como motor da narrativa, fica suspenso para dar lugar ao que importa: a vida, os devaneios, os sonhos e as interacções sociais de Bobby.
Ao contrário daquilo a que nos tem habituado, Cormac McCarthy apresenta-nos pessoas afastadas de qualquer cenário apocalíptico que as obrigue a fugir, matar ou morrer: aqui, entregam-se à reflexão e à conversa. O livro constrói-se mais sobre o que se pensa e menos sobre o que se faz, o que levou pelo menos parte da crítica literária norte-americana a defini-lo como uma “ficção de ideias”. E o primeiro traço de brilhantismo está na forma como são apresentadas.
Título: “O Passageiro”
Autor: Cormac McCarthy
Tradução: Paulo Faria
Editor: Relógio D’Água
Páginas: 424
O narrador é omnisciente e escreve na terceira pessoa, mas parece estar pouco interessado em digressões. Quase não damos por ele. É o diálogo entre as personagens que ocupa o papel principal, num estilo a que Cormac já nos vem habituando pelo menos desde Este País não é para Velhos (2005) e A Estrada (2006): o narrador intervém pouco e de modo lacónico, as mais das vezes com repetições da conjunção “e” para sinalizar a sua própria irrelevância, com avanços narrativos quase sempre semelhantes a este:
“Deixou cair o cobertor dos ombros e pôs-se de pé e puxou o fecho do casaco do fato de mergulho e curvou-se e pegou nas botijas de oxigénio e ergueu-as pelas alças e pô-las às costas”.
Desta forma, a composição narrativa cria um movimento inabitual e interessante, porque é precisamente nos momentos em que a acção avança que se omite informação sobre a história e sobre as personagens; quando tudo pára e se dá espaço ao diálogo, é apenas aí que as conhecemos.
Não é fácil construir um romance com base no diálogo, muito menos quando o que se pretende é explorar temas complexos. Há sempre o risco de o autor roubar o tom às personagens, dando-lhes à boca as palavras que não lhes cabem no vocabulário. Mas McCarthy não tropeça, fazendo desses perigos uma oportunidade para demonstrar o engenho com que varia entre o vulgar e o científico, o prosaico e o oracular, tudo através da atribuição aos intervenientes da história de um conjunto variado de circunstâncias e características, dando assim espaço para reflectir a partir de diferentes vozes e níveis de profundidade.
Com efeito, Bobby vai interagindo com personagens bastante distintas, e o léxico vai mudando com elas — conhecemos, por exemplo, uma stripper transexual que desabafa sobre a infância e sobre a fé; um amigo de décadas que o provoca com referências literárias e filosóficas; um outro que bebe uma garrafa de whisky enquanto assassina baratas com uma caçadeira; ou um ex-colega académico, com quem fala sobre matemática e física quântica —, havendo sempre, no fundo de todas as conversas, uma mistura entre esoterismo e humor, sendo este último, aliás, um dos principais responsáveis para o equilíbrio da densidade do livro. Aqui, como noutros casos, é evidente o primoroso trabalho de tradução de Paulo Faria.
Sheddan, o amigo de décadas, é um dos que mais contribui para a ideia que vamos desenvolvendo a respeito de Bobby, a quem diz o seguinte:
“Conheço certos dias da tua infância. Quase em lágrimas, tal a solidão. Deparavas com um certo livro na biblioteca e apertava-lo ao peito. […] Juventudes falhadas. Preferir um mundo de papel”.
Bobby foi sempre assim, dado a matéria abstracta. É culto e inteligente. Vemo-lo, por exemplo, a prever o tempo de uma operação de reboque náutica através do cálculo mental da corrente do mar ou da área de uma embarcação, a citar Wittgenstein para provar um ponto numa conversa de café, ou a discorrer largamente sobre um ensaio de Kaluza datado de 1921 acerca de mecânica quântica.
Apesar da genialidade (ou talvez por causa dela), Bobby é sobretudo um homem deprimido e só. Embora nunca de forma óbvia ou conclusiva, há muitos sinais que vão sendo lançados para justificar o fundo dessa melancolia (ser filho do pai da bomba atómica?; ter desistido de uma carreira académica para espatifar um carro e quase a vida?; uma natural predisposição para a tristeza que só Freud poderia explicar?). De entre todos, destaca-se o suicídio da irmã Alicia em 1972, pouco depois do acidente.
Neste O Passageiro, de Alicia ficamos apenas a conhecer as conversas com uma figura criada pela sua imaginação: Talidomida, um anão careca com barbatanas no lugar das mãos e um sentido de humor incansável, é uma espécie de alucinação com quem fala desde os doze anos.
No segundo livro, Stella Maris, Alicia assume o protagonismo. Recuamos a 1972. Ela com vinte anos à beira do suicídio; Bobby inconsciente em Itália.
Alicia é também um génio matemático: licenciou-se em Chicago e, aos dezasseis anos, foi convidada para tirar o doutoramento no IHES (Institut des Hautes Études Scientifiques), próximo de Paris.
Título: “Stella Maris”
Autor: Cormac McCarthy
Tradução: Paulo Faria
Editor: Relógio D’ Água
Páginas: 208
Cormac McCarthy dá a este segundo livro uma continuação da lógica de “ficção de ideias” criada com diálogo, embora este esteja aqui limitado (e, talvez por isso, menos interessante) a duas personagens: o que lemos é a transcrição das sessões terapêuticas numa clínica-hospício em Black River Falls (Wisconsin), na sequência de um diagnóstico de esquizofrenia paranóide. Alicia, a paciente, e Dr. Cohen, o psiquiatra.
O estado de Alicia — simultaneamente psicótico do ponto de vista clínico e talentoso do ponto de vista intelectual — é um bom pretexto para, à boleia dos seus diálogos (seja no primeiro livro com Talidomida ou no segundo com o seu psiquiatra), reflectirmos sobre várias questões relacionadas com a natureza da mente em geral e do inconsciente em particular, uma obsessão que Cormac tem manifestado em contextos tão distintos como o romance Blood Meridian (1985), uma célebre entrevista concedida a Oprah Winfrey em 2007 e um artigo científico que escreveu sobre o assunto dez anos depois (“The Kekulé Problem”). Encontramos, por exemplo, matéria para questionar o esbatimento da fronteira entre o sonho e a vida (“os sonhos e a vida adquirem uma certa igualdade, fundem-se estranhamente”), ou entre a doença (“sou esquizofrénica”, diz Alicia) e a convicção filosófica (“sou solipsista”, diz Alicia).
Foi assim, neste par de romances, com personagens excêntricas e discursivas, e valendo-se sempre da capacidade intelectual dos protagonistas, que Cormac McCarthy pôs a ficção a funcionar a par das ideias. Resumi-las aqui seria tão desnecessário quanto impossível. Como muitos grandes livros, estes dois não se ajustam à pergunta que costuma preceder ou preparar leituras: “é sobre o quê, afinal?”.
É que estes livros são sobre tudo. Há neles uma espécie de ambição pela visão absoluta e integral do mundo, como se apenas através da passagem por todas as perspectivas de explicação possíveis (religião, ciência, matemática, psicologia, filosofia e linguagem) se pudesse compreender a vida.
E é curioso notar no facto de a ciência ter vindo a preencher grande parte dos interesses de Cormac McCarthy dos últimos anos. Evidência disso é a sua colaboração junto do Santa Fe Institute, uma instituição de pesquisa interdisciplinar que estuda questões complexas relacionadas com a ciência, tecnologia e sociedade, composta maioritariamente por cientistas e matemáticos. Como leitores, ficamos com a certeza de que essa experiência contribuiu para a construção das personagens Alicia e Bobby, bem como para as múltiplas referências, espalhadas pelos diálogos, sobre teorias quânticas e ensaios numéricos.
No fundo, essa interdisciplinaridade está presente na abordagem de cada uma das personagens ao tal caminho escondido por detrás da constatação de que “a vida é estranha” — frase dita por Bobby e que corresponde, também, ao fundo da principal preocupação de Alicia: o que é a realidade? Como podemos compreendê-la?
Talvez a ideia mais interessante do díptico destes diálogos filosóficos passe pela tensão entre duas formas de explicar o mundo: de um lado, a explicação através da ciência e dos números; do outro, a explicação através das palavras.
Nas interacções com outras personagens, Bobby e Alicia parecem acérrimos defensores da primeira visão. “És um homem da palavra, eu sou um homem do número”, diz Bobby a Sheddan. “A inteligência está nos números, não está nas palavras”, diz Alicia ao Dr. Cohen. São várias as passagens que transmitem a ideia, defendida pelos irmãos, de que apenas a ciência e a matemática podem almejar explicar a realidade do mundo, ao passo que as palavras pouco ou nada se aproximam da verdade.
Mas a convicção e génio dos irmãos não chega para resolver o problema, e é também aqui que se descobre, uma vez mais, a engenhosa pena de Cormac. É que, ao mesmo tempo que vemos os protagonistas a defender a ideia de que só na ciência e na matemática se encontram as respostas, também os vemos consumidos pela culpa de um dos seus principais produtos: a bomba de Hiroxima e Nagasáqui. Ao mesmo tempo que os vemos a desvalorizar a linguagem e a arte, também sabemos que não viveriam sem os livros ou sem a música (Alicia, por exemplo, gasta o dinheiro todo da herança na compra de um violino de meio milhão de dólares e a única vez que chora é por ouvir tocar a “Chaconne” de Bach). Ao mesmo tempo que os vemos a desprezar a vagueza da filosofia, sobretudo quando comparada com a matemática, não conseguimos desviar-nos do paradoxo que consiste em vê-los a defender essa ideia através, precisamente, de um discurso filosófico, com citações filosóficas, e não através de uma equação ou contas de multiplicar. E a verdade é que um e outro desistiu da carreira académica.
Alicia e Bobby sabem muito e raciocinam como génios, mas acabam rendidos à conclusão de que nem o número nem a palavra os retira do abismo: “a numeração e a denominação são duas faces da mesma moeda”. Ela num hospício, ele só e deprimido, parecem condenados a concluir que “no fim de contas, não há maneira de sabermos. Não conseguimos apreender o mundo. Podemos apenas traçar um retrato. Quer seja um toiro na parede de uma gruta quer uma equação diferencial parcial”.
Talvez seja justamente isso que podemos dizer acerca destes romances: são o retrato da nossa incompreensão do mundo, onde damos voltas para perceber, as mais das vezes, que o primeiro passo é igual ao último: “a vida é estranha”. E é essa estranheza que Cormac McCarthy transforma em grande literatura.
O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.