No programa eleitoral que o PS e António Costa levaram às eleições de outubro de 2015, a expressão “administração pública” aparecia 34 vezes — sobretudo para se referir a propostas relacionadas com melhorias na eficiência da gestão e da relação com os utentes e contribuintes. Mas já aí, os socialistas mencionavam algumas daquelas que viriam a ser as bandeiras do governo para a função pública: o rejuvenescimento dos quadros, com a “injeção de ‘sangue novo’”, e a valorização dos trabalhadores, começando com o prometido descongelamento das carreiras.

E se o descongelamento se fez a partir de 2018, embora não com a recuperação integral do tempo de serviço, há outros temas que também ficaram apenas semiresolvidos. Oito anos depois de António Costa chegar a primeiro-ministro, a administração pública está maior, tem mais trabalhadores qualificados, mas mantém alguns dos problemas que o Governo se comprometeu a endereçar: a idade média dos funcionários públicos subiu, há quase tantas saídas para a reforma como durante o pior ano da troika e o peso dos contratos precários agravou-se (já o recurso a prestações de serviço recuou).

António Costa chegou a São Bento numa altura em que os trabalhadores do Estado ainda recuperavam das elevadas perdas da troika. A série de dados da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP) começa em 2011, quando o número de trabalhadores do Estado ultrapassava os 727 mil. A partir daí, entre avanços e recuos, a tendência foi de queda e o valor mais baixo da série registou-se no terceiro trimestre de 2014, 647 mil (o terceiro trimestre do ano costuma ser um período de quebras devido ao fim do ano letivo e dos contratos ou aposentação de professores e pessoal não docente, que influencia muito os números).

Quando toma posse, em novembro de 2015, a administração pública, então com 659 mil trabalhadores, ainda estava longe dos 727 mil do pré-crise. No programa eleitoral, um dos compromissos era endereçar essa questão, mas de forma controlada, para garantir que a admissão de novos trabalhadores “não significa um aumento do seu número total agregado”. Outra bandeira era a do rejuvenescimento, com a “injeção de ‘sangue novo’ na administração pública através do lançamento de concursos nacionais para jovens quadros profissionais de nível superior que permita a sua vinculação à administração pública”.

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Os anos seguintes foram de progressiva recuperação do exército de funcionários públicos face às perdas do tempo da troika, com o valor pré-crise a ser ultrapassado no segundo trimestre de 2021 (730 mil). Os dados mais recentes da DGAEP, do terceiro trimestre deste ano, apontam para mais de 738 mil trabalhadores do Estado. Com Costa, o Estado cresceu — há mais 79 mil funcionários — mas a OCDE calcula que o peso da administração pública em percentagem da população empregada tenha diminuído, ainda que (muito) ligeiramente entre 2011 e 2020, ano em que rondava os 15%, 3,7 pontos percentuais abaixo da média da OCDE.

Idade média sobe e aposentações em máximos desde a troika

O emprego público recuperou, mas o prometido rejuvenescimento não se refletiu na idade média. Segundo a DGAEP, a idade média dos funcionários públicos passou de 45,8 anos no final de 2015 (superior à população ativa, que então era de 42,8 anos), para 48,1 anos no final de 2022 (também acima da população ativa, 44 anos). No programa eleitoral do PS às legislativas de 2022, a promessa do rejuvenescimento era já um “desígnio”.

Questionado pelo Observador, o Ministério da Presidência, que tutela a administração pública, não respondeu diretamente sobre este aumento. Mas voltou a sublinhar que, “em linha com o compromisso assumido de rejuvenescimento e capacitação” da administração pública, e “com o objetivo de atrair recursos humanos qualificados e revitalizar o corpo técnico do Estado”, foi definida a meta de realizar todos os anos, até 2026, novos procedimentos de recrutamento centralizado, de acordo com as necessidades dos serviços.

Em outubro, foi lançado um novo procedimento para a contratação de mil técnicos superiores — que, segundo o Governo, chegou às 18.924 candidaturas, o que é “demonstrativo da atratividade dos vínculos de emprego público”. A média de idades dos candidatos foi de 35 anos, sendo que “cerca de 40%” dos candidatos tinha 29 anos ou menos. A expectativa é que este recrutamento tenha mais sucesso do que os dois anteriores, que não alcançaram os objetivos do Governo de contratar mil técnicos superiores (um dos motivos apontados tem sido o da morosidade de todo o processo).

A própria DGAEP faz uma análise ao envelhecimento da administração pública entre 2011 e 2022, concluindo que, excluindo os fundos de Segurança Social, “a renovação dos trabalhadores diminuiu em todos os outros subsetores das administrações públicas”. No final de dezembro de 2022, por cada 100 trabalhadores com entre 55 e 64 anos havia “apenas” 24,2 com idades entre os 20 e os 29 anos, “bastante inferior” ao que se verificava em dezembro de 2011 (61,4), segundo o mais recente boletim do emprego público. Já no final de 2015, estava nos 29,5.

Todos os subsetores (administração central, local e fundos de segurança social) têm um índice de juventude inferior a 100, o que significa que o número de trabalhadores com menos de 40 anos é inferior ao número de trabalhadores com 40 e mais anos. Onde o índice de juventude é mais alto é nas forças armadas e de segurança. Mas a DGAEP salienta como as carreiras da saúde, de enfermagem, médica e técnicos de diagnóstico e terapêutica têm “índices de renovação e de juventude bastante acima da média por via da entrada de novos profissionais, em particular da carreira médica que apresenta um índice de juventude superior a 100”.

A percentagem de trabalhadores que têm entre 45 e 64 anos passou de 54,9% em 2015  para 61,1% em 2022. Já a de funcionários entre os 25 e os 34 anos desceu de 12,6% para 10,9%.

Com um universo mais envelhecido, o número de saídas para a reforma também está muito próximo dos máximos do tempo da troika. Desde o início do ano e até ao final do terceiro trimestre já saíram para a reforma 11,7 mil pessoas, não muito longe dos 12,8 mil do pico da série da DGAEP no mesmo período de 2014. Se não considerarmos as saídas de trabalhadores por caducidade de contrato a termo, em 2022, a passagem à reforma representava 57,5% das saídas definitivas.

Na resposta que enviou ao Observador, o ministério de Mariana Vieira da Silva sublinha que a “atração e retenção de talento” na administração pública constitui “uma das apostas dos últimos governos e o seu resultado encontra tradução no número de trabalhadores em funções públicas”. Nas contas da tutela, entre 2018 e 2021, o saldo anual fixou-se em mais 13 mil trabalhadores, e em 2022 foi superior a 8,8 mil trabalhadores.

Até há pouco tempo, a regra instituída, nem sempre cumprida, era a “dois por um” — por duas saídas entra um funcionário —, mas no Programa de Estabilização Económica e Social, criado no início da pandemia, em 2020, o governo comprometeu-se com uma entrada por cada saída. Apesar disso, o número de funcionários públicos continuou a subir.

“Tecnicidade” do emprego acima dos 50%. Técnicos superiores e dirigentes disparam

Segundo o boletim de emprego público, uma publicação mais completa e cuja edição mais recente é referente ao final de 2022, o “nível de tecnicidade do emprego” no Estado, medido pelo peso dos trabalhadores com ensino superior, era de 55,3% no final de 2022, 23 pontos percentuais acima da média da população ativa (que também inclui o setor privado). No mesmo período de 2015, a percentagem ficava pelos 50,9%.

A carreira de técnico superior — à qual só se acede com, pelo menos, uma licenciatura — foi das que mais cresceu desde que António Costa chegou ao poder. Entre o terceiro trimestre de 2015 (o trimestre imediatamente anterior ao início da governação de Costa) e o mesmo trimestre de 2023 (os dados mais recentes), o número de técnicos superiores disparou 41%, de 55 mil para 78 mil.

No mesmo período, o número de funcionários públicos cresceu 13,6% no total. Em termos percentuais, foi na carreira de pessoal de investigação científica que o crescimento foi mais significativo — mais do que triplicou, passando de 1.359 para 4.097, a que não foi alheio o programa extraordinário de regularização dos vínculos precários do Estado, o PREVPAP, que permitiu a integração de trabalhadores a recibos verdes ou ex-estagiários na função pública.

A governação de Costa também se desenrolou em paralelo com o aumento expressivo no número de representantes do poder legislativo (que inclui órgãos executivos e membros, não magistrados, do Conselho Superior da Magistratura eleitos pela Assembleia da República, mas exclui os serviços de apoio ao Presidente da República) — que quase duplicou (mais 82%), passando de 2.236 para 4.078. Ao Observador, o ministério da Presidência justifica com as “dinâmicas próprias” do setor da administração local, e aponta para a Lei n.º 69/2021, de 20 de outubro, “que veio modificar os termos do exercício do mandato a meio tempo dos titulares das juntas de freguesia” e que “começou a produzir efeitos no dia 1 de janeiro de 2022, pelo que é natural que os seus efeitos homólogos sejam ainda notórios atualmente”.

A carreira de dirigente superior (que inclui diretores-gerais, secretários-gerais ou inspetores-gerais, por exemplo) também teve um impulso no emprego (de 14%), mas mais expressivos foram os ganhos na de dirigente intermédio (mais 44%), que abrange diretores de serviços e chefes de divisão. O ministério de Mariana Vieira da Silva diz que este aumento de 44% é “impulsionado por três tipos de entidades com elevado grau de autonomia”: as câmaras municipais, as unidades orgânicas de ensino superior e as “Entidades Públicas Empresariais – SNS”.

Das três, foram as câmaras municipais “que mais contribuíram para este aumento, representando uma variação positiva face a 31 de dezembro de 2015 de 96% e que contribui com 54% para o total dos aumentos de cargos de direção intermédia“. Além disso, salienta que “88% do aumento do emprego nos cargos de direção intermédia ocorreu nos 2.º e de 3.º grau e seguintes”.

Mas também houve carreiras que perderam. A descida percentual mais significativa foi registada nas forças armadas (menos 22%, de quase 30 mil para 23 mil). Questionado, o ministério da Defesa não se pronunciou. Esta realidade de perda de efetivos não é novidade e o ministério tem-se distanciado dos números da DGAEP, que diz não serem iguais aos do organismo ministerial responsável pela matéria, a Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional.

Já há dois anos, ainda era João Gomes Cravinho ministro da Defesa, a tutela dava conta, ao Observador, de uma redução desde 2015, mas menos pronunciada do que a DGAEP registava. E justificava a diferença com metodologias distintas. Mas também apontava o dedo ao governo anterior, de Passos Coelho, responsabilizando-o por uma redução “programada e propositada” dos efetivos entre 2012 e 2015, o que teve efeitos nos anos seguintes.

Com Costa no poder, emprego no Estado subiu 11%. Que profissões ganharam e perderam mais?

Carreiras do Ministério da Justiça, como a de oficial de justiça (-4%), oficial dos registos e notariado (-14%) e conservador e notário (-16%) também caíram, assim como a carreira de administração tributária e aduaneira (-9,4%). Nem o Ministério da Justiça nem o das Finanças responderam às perguntas do Observador.

O Ministério da Presidência salienta, por sua vez, que o Governo procurou “implementar medidas de combate à precariedade, valorização, capacitação e rejuvenescimento da Administração Pública” para melhorar a resposta dos serviços públicos e exemplifica com a “aposta na valorização da carreira geral de técnico superior”. No ano passado, os técnicos superiores na segunda posição tiveram uma valorização de 52 euros, e este ano foram os que estão entre a terceira e a 14.ª posição. Atualmente, um licenciado entra na carreira de técnico superior com um salário de 1.333,35 euros, que vai subir 52 euros no próximo ano.

Precariedade foi tema semi-resolvido. Há mais contratos a prazo, menos recurso a ‘recibos’

Há dois indicadores que ajudam a perceber como evoluiu a precariedade durante a governação de António Costa: o peso da contratação a prazo e o recurso a prestações de serviços, que evoluíram de forma oposta.

No terceiro trimestre de 2023, a administração central (excluindo autarquias) tinha mais de 70 mil contratados a termo, um peso de 12,8% no bolo da administração central. O trimestre do verão tende, porém, a assistir a uma quebra de contratos a prazo devido ao fim do ano letivo e dos contratos temporários de professores do ensino básico e secundário e educadores de infância, assim como de técnicos superiores nas atividades de enriquecimento curricular, como justifica a própria DGAEP. Aliás, no segundo trimestre do ano, que vai de abril a junho, o peso da contratação a prazo já sobe para 15,2%, acima dos 12,9% do mesmo período de 2015. O número de contratos a termo é maior na educação (33 mil) e na saúde (21 mil).

Por outro lado, o recurso a prestações de serviço (avenças e tarefas) recuou. Os dados mais recentes são do segundo semestre de 2022, altura em que o Estado recorria a mais de 24 mil prestadores de serviços, uma redução de 18% face aos mais de 30 mil do mesmo período de 2015. Especificamente no caso da administração central a redução foi mais significativa: 31%, de 18,9 mil para 13 mil.

Sobre a contratação a prazo, o Ministério da Presidência remete para o período pré-pandemia, em que houve uma “trajetória descendente do número de contratos a termo”. Durante a Covid-19, a contratação a prazo foi reforçada, com o Governo a justificar com a “necessidade de resposta urgente e temporal” à pandemia. Fonte oficial salienta que os dados mais recentes, de setembro deste ano, demonstram uma “tendência negativa da contratação a termo, quer por variação trimestral quer homóloga, fixando-se em 10,6%”. Segundo os cálculos do Observador, de facto, o peso da contratação a termo sobre o total do emprego está a descer desde a pandemia, mas ainda não atingiu os valores pré-Covid (9,8%).

Já quanto à prestação de serviços, fonte oficial acrescenta que a diminuição da externalização de serviços tem sido um dos objetivos do Governo, que “tem apostado” nos centros de competências.

Em crescimento expressivo estiveram as comissões de serviço (que incluem cargos de administração, direção, chefia) que dispararam 45% — de 17.577 em setembro de 2015 para 25.602 em setembro de 2023 — enquanto as nomeações subiram 6%  — de 74.155 para 78.678.

Muitas carreiras não escaparam à perda de poder de compra

Em média, as remunerações base da administração pública subiram mais de 17% em julho de 2023 (os dados mais recentes) face ao mesmo mês de 2015, mas isto ignorando o impacto da inflação. Com esse efeito, o aumento real desce para 1,3%, de acordo com os cálculos do Observador com base nos dados da DGAEP e da inflação do INE. Isto porque as taxas de variação média dos últimos 12 meses registadas em julho dos últimos oito anos revelam uma inflação acumulada superior a 16%, agravada sobretudo em 2022 (4,68%) e 2023 (7,26%).

Em julho deste ano, a remuneração base média fixou-se em 1.648 euros, 17% acima do mesmo mês de 2015, ou 1,3% tendo em conta a inflação. Esta evolução é influenciada pela subida do salário mínimo — de 55% desde 2015 — mas também pela variação do número de trabalhadores, o descongelamento das carreiras iniciado em 2018 e as normais atualizações salariais. Há, também, um efeito de recomposição segundo o qual os trabalhadores que se aposentam tendem a ter os ordenados mais altos, logo,  deixando de contar para a média, esta tenderá a descer por essa via.

Das 26 carreiras da administração pública, apenas 11 escapam às perdas salariais, em termos reais. Ou seja, a maioria acumulou perdas nos últimos oito anos, de acordo com os cálculos do Observador. Quem mais ganhou foi a carreira de assistente operacional, onde o peso do salário mínimo é particularmente relevante. Em termos nominais, o crescimento salarial foi de 31%, mas em termos reais foi de 15%.

Já as perdas foram mais significativas na carreira de pessoal de investigação científica (-10% em termos nominais e -26% em termos reais) e nos médicos (+4,41% e -11,65%, respetivamente). O Observador questionou os ministérios da Ciência e da Saúde sobre os motivos desta evolução, mas aguarda resposta.

Este é o cenário quando se analisa a remuneração base. No que toca ao ganho médio mensal, um indicador que inclui complementos remuneratórios, o cenário é mais positivo: o aumento nominal de 20,6% traduziu-se num ganho real de 4,5%. Neste caso, em 26 carreiras, apenas nove registaram perdas. Também aqui, a maior perdedora é a carreira de “pessoal de investigação científica”. Já os médicos, por outro lado, saem a ganhar, embora ligeiramente (o ganho médio cresceu 1,3% em termos reais), o que pode justificar-se com o peso elevado dos complementos remuneratórios, incluindo o pagamento de horas extraordinárias, no bolo do ordenado que levam para casa.

Para o próximo ano, o Governo tem dito que cerca de 164 mil funcionários públicos (que recebem o salário mais baixo) vão ter aumentos de 6,8% e que 235 mil terão uma atualização salarial de 3%, enquanto os restantes terão aumentos de 52 euros (acima dos 3%). Isto significa que “35,1% dos trabalhadores da Administração Pública já estão a assistir a uma recuperação de parte do poder de compra, sendo a expectativa do Governo que nos próximos anos esta recuperação se consolide”.

Fechados os aumentos salariais para o próximo ano, que podem — e vão — avançar mesmo sem o Orçamento do Estado, o Ministério liderado por Mariana Vieira da Silva revelou aos sindicatos da função pública, depois de Marcelo Rebelo de Sousa anunciar as eleições antecipadas, que está, afinal, disponível para antecipar a produção de efeitos da revisão do sistema de avaliação de 65% dos funcionários públicos, de forma a refletir-se já no ciclo avaliativo de 2023 e 2024. Outras negociações setoriais ficam pelo caminho, à espera do Executivo que sair das eleições de março.