Chamou-lhes “meninos”, “queques” que tentam “guinchar”, adeptos de “luta livre” e concorrentes do Chega no “lamaçal” do debate político. À primeira vista, a conclusão seria óbvia: a Iniciativa Liberal irrita particularmente António Costa (e o PS), que tem passado debates parlamentares, entrevistas e declarações no geral a “malhar” nos liberais. Mas a irritação, por muito genuína que possa ser, não surge do nada — e na análise do PS, este antagonismo pode ter efeitos favoráveis ao Governo Costa.
Por um lado, por motivos puramente eleitoralistas e cálculos a pensar na próxima visita às urnas; por outro, por motivos ideológicos, comprando uma disputa com o adversário mais “definido” que tem e aproveitando para abafar o PSD pelo caminho, dirigindo-se apenas ao que define como a “direita radical”… a que esse PSD pode acabar por se aliar.
Como um dirigente do PS resume, “isto não é um jogo de damas, é um jogo de xadrez”. E, como no xadrez, as jogadas não são as mais óbvias — e os socialistas têm em conta todas as peças do tabuleiro (político, claro está) quando decidem fazer da Iniciativa Liberal um inimigo declarado. E admitem ter “atenção e vigilância” ao crescimento do partido — tentando não o sobrevalorizar.
Uma guerra bem-vinda: “É a direita de quem o PS gosta de não gostar”
Estávamos a 29 de setembro quando António Costa decidiu levar uma capa de jornal para o Parlamento. Não era uma capa qualquer: era uma edição do Financial Times que exibia uma fotografia do ministro das Finanças de Liz Truss (Kwasi Kwarteng, que acabou por só aguentar seis semanas no cargo) e relatava o caos gerado pelo anúncio das políticas da nova primeira-ministra. A ideia era associar as políticas de Truss à IL, garantido que esse seria o “contra factual” para contrariar as ideias liberais.
“É muito saudável existir um partido que diz ao que vem, cria é um problema ao PSD”, explica um dirigente socialista. Ou seja: para o PS, até é útil ter um adversário à direita com quem possa discutir abertamente um modelo de sociedade diferente e definir-se por oposição às ideias liberais. “Atacamo-nos frontalmente e a dicotomia está bem desenhada. A IL é a direita de quem o PS gosta de não gostar, de desdenhar”, concorda outro dirigente do PS.
Definindo a IL como um “bom adversário na arena, para mostrar duas divisões da sociedade”, outro dirigente socialista frisa que com o PSD o PS até poderá conseguir fazer algumas “parcerias”, mas com a IL menos. E aqui toca no ponto que o PS se tem esforçado por passar, a começar pela capa do Financial Times: é que os liberais portugueses são diferentes dos de outros países, “um tea party liberal”, ironiza o mesmo dirigente, e “mais liberais do que o liberalismo”.
Ou seja, mesmo com os liberais a recusarem colagens a Liz Truss — em reação à saída da antiga primeira-ministra, a IL tweetava uma fotografia de Truss e José Sócrates lado a lado, comparando políticas como um aumento descontrolado dos gastos do Estado e da dívida pública para colar Truss ao PS (“Never again!”) — ao PS convém desenhar e sublinhar essa caricatura. E, com isso, arrumar a IL no canto da “direita radical” e aproveitar para entalar o PSD numa espécie de reino da indefinição política.
Objetivo: entalar PSD “indefinido” entre moderação e “radicalismo”
“A dualidade e a indistinção do PSD define a IL”, começa por atirar um dirigente socialista. Nas cabeças socialistas há alguns dados comuns: por um lado, a IL não entra no mesmo saco que o Chega — e há quem recorde que o líder parlamentar, Eurico Brilhante Dias, chegou a deixar essa ideia bem clara ao recomendar aos deputados o voto em “todos os que fossem democratas” quando João Cotrim de Figueiredo concorreu ao cargo de vice-presidente da Assembleia da República. E, por agora, e apesar de apontar alguns “truques” de comunicação semelhantes ao Chega, não põe os dois partidos ao mesmo nível.
Coisa diferente é a oportunidade que vê para condicionar o PSD ao atacar a IL. “Quando dizem que o PS instrumentaliza o Chega… a instrumentalização não é só do Chega, é de todos os que abafarem o PSD”, nota um socialista. Ou seja, ao PS também convém antagonizar os liberais, deixando um PSD que sente mais indefinido a navegar entre o que considera a “moderação” — aqui, leia-se PS — e o “radicalismo” de IL e Chega, partidos a que se poderá aliar nas próximas eleições. Um fantasma que faz lembrar, de resto, o que o PS agitava contra o Chega nesta campanha e que acabou por lhe valer a maioria absoluta.
O raciocínio ajuda a explicar os ataques violentos que Costa tem disferido contra os liberais, aparentemente ‘elogiando’ o Chega. Em outubro, à notícia da saída de Cotrim Figueiredo da liderança, Costa dizia compreender os motivos do líder cessante: “A Iniciativa Liberal, como já percebemos, decidiu passar a competir com o Chega no estilo de truculência e má educação democrática como intervém no debate público. E percebo que o doutor João Cotrim Figueiredo não se sentisse à-vontade nesse estilo de luta livre no meio do lamaçal. Conheço-o bem, admito que não se sinta bem, foi uma opção estratégica que a Iniciativa Liberal fez e, não sei porquê, a direita democrática em Portugal tem um fascínio pelo Chega”.
O ataque era à direita democrática, onde também se inclui o PSD, que o PS aproveita para colar ao Chega a qualquer oportunidade. Nesse dia, Costa prosseguia, dizendo que essa direita democrática, “em vez de se demarcar do Chega para afirmar a sua identidade, tem a voragem de normalizar e conviver com o Chega e de imitar o Chega”. E rematava: “Continuem com essa estratégia, que vão longe”.
As contas dos dirigentes socialistas revelam que a ideia é clara: menorizar ou ignorar o PSD sempre que possível e colá-lo às alternativas mais radicais, o que se torna mais fácil dada a “indistinção” em que os socialistas enquadram os sociais democratas. E até há quem acredite que Carla Castro, uma das candidatas da IL — a mais distanciada da direção atual — poderá ser uma líder mais conveniente para o PS: “Costa não terá melhor do que Carla Castro e André Ventura aos gritos no Parlamento e Joaquim Miranda Sarmento [do PSD] no meio deles…”. Ou, dito de outra forma: “Quanto mais o PS emprestar notoriedade à IL diretamente e ao Chega indiretamente, menos empresta ao PSD”.
“O PSD não é carne nem é peixe, diz que é o partido mais português de Portugal… é uma definição que não acontece e quem capitaliza com isso é a IL”, aponta um dirigente socialista. No confronto entre “liberais e sociais democratas verdadeiros [aqui leia-se PS]”, perde o PSD, acredita a cúpula socialista. “O PS tem uma experiência muito grande de estar entre a esquerda e o PSD. Para PSD é novidade. Se for muito moderado perde a direita, se for de direita perdem moderados. Costa quer fazê-los passar o que nós sempre passámos…”.
Se isto resultará a longo prazo, logo se verá, aponta o PS, lembrando casos de “partidos-fenómeno” noutros países, como foi o caso do Ciudadanos, em Espanha, que após um início fulgurante e amparado por uma comunicação eficaz acabam por perder gás.
Curiosamente, do lado da IL concorda-se com parte da análise dos socialistas, mas avisando que o partido está mesmo para ficar: “O PS sabe que o liberalismo é a única alternativa ideológica, com uma visão diferente da sociedade e do papel do Estado”, atira um dirigente da IL. Mas também que é um “projeto de médio, longo prazo” que irá ganhar raízes para o futuro — e aqui entra a importância do argumento geracional.
Jovens, uma dor de cabeça pós-troika
A cúpula socialista já tinha noção de que pode ter um problema entre o eleitorado mais jovem, mas os dados vieram solidificar essa ideia. Se na época da geringonça o PS se focou nos pensionistas, com aumentos extraordinários das pensões todos os anos, e pescou assim um eleitorado que até ver fugiu sem olhar para trás do PSD e da lembrança da troika, agora é hora de alargar os horizontes — e as faixas etárias que quer conquistar.
“Noutros países, os eleitores mais jovens e qualificados são de esquerda, e em Portugal é o contrário… Num país onde há cada vez mais pessoas qualificadas, é importante ter esses eleitores”, argumenta um dirigente do PS, admitindo que o problema tem de ser “motivo de preocupação e reflexão no PS”. E diz que essa mudança já é percetível: se na geringonça era óbvio o foco na faixa mais velha da população, nos tempos mais recentes “tem-se visto uma aposta na valorização dos jovens”, que até na “comunicação política” do PS ganharam centralidade.
Mesmo com o PS a desaconselhar que se “empolem” estas preocupações, os números parecem pintar um quadro claro: no estudo pós-eleitoral elaborado por Pedro Magalhães e João Cancela depois das eleições de janeiro, concluía-se que o PS recolheu 51% dos votos entre os votantes com mais de 54 anos e apenas 27% com menos de 25 anos. Na IL, o eleitorado é esmagadoramente jovem: metade tem entre 18 a 34 anos.
“Entre os menores de 25 anos, os partidos de direita ou centro-direita receberam 50% dos votos; entre os maiores de 54 anos, apenas 37%. A grande diferença aqui é a causada pela IL, que é por uma confortável margem o terceiro partido mais votado entre os eleitores mais jovens”, apontavam os autores do estudo. “Enquanto cerca de metade dos votantes no PS têm mais de 54 anos, apenas cerca de um em cada 10 dos que votaram no IL pertencem a esse grupo etário”.
Não por acaso, ainda no fim de semana passado o líder reeleito da JS, Miguel Costa Matos, tentava dissuadir os mais novos de se renderem aos encantos do liberalismo: “Os liberais que tanto se têm infiltrado na nossa geração… Não podemos deixar ludibriar as novas gerações a dizer que o Estado é o inimigo”, avisava.
PS quer falar aos liberais “zangados” com o Estado
E a disputa eleitoral pode nem sequer ficar por aqui: no PS, há quem note que se o PS não contesta muito eleitorado com a extrema-direita, “junto do eleitorado democrático” — ou seja, da IL — pode ter mais sucesso. Por outras palavras, se para o PS o eleitorado do Chega é praticamente “terreno perdido”, os liberais são eleitores que, atendendo ao seu perfil, “podiam perfeitamente votar PS”.
“São liberais nos costumes, acreditam na economia de mercado como nós, mas estão desiludidas com os serviços públicos e o motivo para pagar impostos. Temos de ser capazes de dizer a estes eleitores o quão importante é o Estado social para o modelo de crescimento que queremos ter e uma sociedade solidária…”, argumenta um dirigente do PS.
Cotrim Figueiredo concluía, numa entrevista à CMTV e reagindo à entrevista em que Costa falava dos “queques”, que a expressão fora “tola e mal-educada”, mas não vinda do nada: “Aquele tom não é por acaso”. Para o ainda líder liberal, seria a prova de que o PS tem “medo” da IL. Medo q.b., pode ser; fé numa oportunidade para encostar o PSD às cordas e radicalizar a imagem da direita, enquanto mostra o modelo alternativo que promete ao país… também.