António Costa esteve este domingo perto de ter uma noite perfeita para as suas ambições como presidente do Conselho Europeu. Até para um otimista irritante, ocupar um top job europeu é uma lotaria, mas os astros continuam a alinhar-se para o português suceder a Charles Michel. Em apenas uma noite, o ex-primeiro-ministro ultrapassou dois obstáculos que não dependiam dele e fintou um terceiro: os socialistas foram a segunda força mais votada na Europa, Luís Montenegro manifestou o apoio público do Governo português e o processo judicial já não é um problema incontornável.
Passo 1. A vitória europeia: o segundo lugar que coloca Costa em primeiro
A menos que a decisão seja adiada para o outono, existem quatro grandes cargos europeus que vão ser decididos entre este domingo e meados de julho: a presidência da Comissão Europeia, a presidência do Conselho Europeu, a presidência do Parlamento Europeu e o Alto Representante da UE para a Política Externa. O Conselho Europeu, onde se sentam os chefes de Estado ou de Governo, é que tem uma palavra decisiva sobre os nomes, mas a escolha da presidente da Comissão Europeia tem de ser aprovada pelo Parlamento Europeu, o que obriga os líderes europeus a olhar para o resultado das europeias e a negociar os cargos em conjunto.
Os resultados provisórios (mas quase finais) mostram que o partido mais votado é o PPE (família europeia de PSD e CDS), que cresce; que o segundo mais votado são os S&D (os socialistas europeus, família à qual pertence o PS); e o terceiro o Renew (os liberais), que se mantêm no pódio apesar da quebra eleitoral. Os três juntos chegam para uma maioria europeísta, o que faz com que o PPE não tenha de ceder à tentação de negociar com o grupo dos conservadores (o ECR) ou com qualquer outro grupo que venha a ser criado.
Por norma, o partido mais votado (neste caso, o PPE) não abdica de ter o presidente da Comissão Europeia. Para esse lugar há uma escolha óbvia: Ursula von der Leyen, embora fosse um nome mais consensual antes de admitir negociar com Giorgia Meloni e os conservadores. Mesmo que houvesse uma surpresa e a escolha não recaísse em Von der Leyen (Mafred Weber foi ‘tramado’ em 2019), o Partido Popular Europeu jamais abdicaria de presidir ao órgão executivo da UE.
Ora, com o PPE a assumir a presidência da Comissão, a segunda família europeia ficará, naturalmente, com o segundo cargo mais desejado: a presidência do Conselho Europeu. O cargo está nas mãos dos liberais desde 2019 (pelo peso que tinham há cinco anos no Conselho Europeu), mas agora os socialistas (com o peso de terem a Alemanha e a Espanha) não vão abdicar do cargo. Apesar de serem a terceira força em termos de membros no Conselho Europeu, os socialistas representam quase um terço da população do bloco europeu. Além disso, os liberais perderam força, e de que maneira, nesta eleição para o Parlamento Europeu. O partido de Macron caiu, aliás, com estrondo.
O próprio António Costa, que até este domingo tinha evitado falar sobre o assunto, disse de uma forma muito clara que o segundo mais importante cargo europeu vai cair para os S&D. “Com estes resultados que hoje já são conhecidos, diria que da comissão vai ser o PPE e o cargo de presidente do Conselho Europeu será dos socialistas“, disse o antigo primeiro-ministro no papel de comentador da CMTV.
António Costa respondia a Pedro Santana Lopes, colega de painel no mesmo canal televisivo, que tinha dito imediatamente antes que “está o caminho aberto para Von der Leyen ser presidente da Comissão Europeia e António Costa presidente do Conselho Europeu”. Costa riu-se e não respondeu, mas admitiu que o cargo deverá ser dos socialistas.
Entre os socialistas, António Costa continua a ser um dos mais bem posicionados para o cargo. Desde logo, tem características que Bruxelas tem seguido: ser um país médio da UE e ser primeiro-ministro ou em funções ou, no mínimo, ter saído há pouco tempo no cargo. O duplo critério, no qual o português encaixa, foi seguido em três representantes anteriores do cargo: Herman von Rompuy (Bélgica), Donald Tusk (Polónia, neste caso um país grande, mas não tão influente como os gigantes França e Alemanha ou mesmo Espanha e Itália) e Charles Michel (Bélgica).
O facto de Pedro Sánchez continuar a governar em Espanha é bom para os socialistas manterem peso no Conselho Europeu (e poderem exigir a presidência desse órgão), mas podia ser mau para Costa caso existisse um interesse do atual primeiro-ministro espanhol no cargo. Sánchez teve, no entanto, um pretexto para sair da Moncloa há pouco mais de um mês e decidiu ficar. Além disso — apesar de ter assumido um papel internacional de relevo no reconhecimento da Palestina — é uma figura muito menos consensual (também por isso) do que Costa. Além do mais, a perda de peso dos liberais vai fazer com que abdiquem do segundo maior cargo e se contentem com o terceiro: o de Alto Representante para a Política Externa da UE.
Passo 2. O apoio do Governo português e um Montenegro que “fará tudo”
António Costa era, até há poucos meses, o principal adversário de Luís Montenegro. No entanto, jamais Portugal, enquanto país, poderia desperdiçar a oportunidade de ter um português à frente de um órgão como o Conselho Europeu. E jamais o antigo primeiro-ministro socialista teria hipótese de ser presidente do Conselho sem o apoio do seu país.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, já tinha dado pistas ao referir-se no início de abril a candidatura de António Costa da seguinte forma: “Não tenho dúvidas de que o Governo português tomará uma posição sobre isso. E com certeza que não será uma posição negativa.” Mas, como o Observador escreveu nessa altura, o apoio só seria vocal e ativo após as eleições europeias. E assim foi.
Contados os votos, na resposta à primeira pergunta — que até motivou apupos na sala à jornalista do Observador — Luís Montenegro não podia ter sido mais claro no apoio: “É possível que a presidência do Conselho Europeu seja destinada a um candidato socialista. Se o Dr. António Costa for candidato a esse lugar, a AD e o Governo de Portugal não só apoiarão como farão tudo para que essa candidatura possa ter sucesso”. A sala, afinal, aplaudiu com estrondo. Passou a gostar de Costa assim que o chefe falou.
Depois de Montenegro manifestar esse apoio, Costa remeteu a decisão para os socialistas europeus, mas também foi mais explícito do que nunca na sua intenção: “Cumprirei, se houver essa oportunidade. Acho que é bom para o país”. E confessou que Luís Montenegro se comprometeu a apoiá-lo para o Conselho Europeu, ainda antes de ser primeiro-ministro. E deixou ainda uma garantia: “Nunca aceitaria ser presidente do Conselho Europeu sem o apoio do governo do meu país”. Estava assim cumprido mais um passo para o sucesso da candidatura de Costa.
Passo 3. O processo judicial que deixou de ser impeditivo
António Costa tem ainda um problema grande: o processo judicial em que está envolvido. Num primeiro momento, o próprio garantiu que só seria candidato a um lugar europeu se tivesse esse caso resolvido. À partida, isso pressupunha o arquivamento, que ainda não aconteceu, mas parece que essa já não é uma exigência do próprio nem da sua família europeia.
Já havia várias vozes no PS e no S&D a considerar que, depois do dia 30 de maio, o jogo tinha mudado. António Costa foi ouvido no processo, a seu pedido, e não saiu de lá como arguido. O que faltava era o próprio assumir que isso não seria uma inibição para uma candidatura ao cargo. E o próprio deu ontem esse passo. Durante o comentário à noite eleitoral na CMTV, o ex-primeiro-ministro disse que desejava que o processo “nunca tivesse existido” e que continua a querer que “rapidamente se esclareça”.
Costa sugere, no entanto, que as últimas decisões já não o impedem de seguir a sua vida: “Para o conjunto de cidadãos e para mim próprio, depois de duas decisões dos magistrados judiciais e do acórdão da Relação da forma como o Ministério Público atendeu ao meu pedido para poder ser ouvido e ter explicitado que o fazia não como testemunha, não como como arguido, mas como mero declarante, eu tanto quanto sei de direito e do que diz o Código de Processo Penal retirei as devidas ilações”. A ilações, claro, é que vai seguir em frente.
As ameaças a Costa e o aviso de “quem entra Papa sai cardeal”
Paulo Rangel — conhecedor dos meandros destas negociações de forma privilegiada como vice-presidente do PPE — já tinha avisado há dois meses: “Devemos ser cautelosos e prudentes se quisermos ter uma posição vencedora porque, quem entra Papa, sai cardeal.” António Costa também foi prudente e avisou este domingo que “há sempre outras hipóteses.”
O antigo primeiro-ministro e potencial candidato lembra que, quando entrou para a negociação no Conselho em 2019, “o nome de Von der Leyen nem era consensual”. Além disso, acrescentou: “Há sempre uma extensa lista de ex-primeiros-ministros excelentes, mas há uma diferença: há uns que estão à volta da mesa.” O que Costa quer dizer é que um primeiro-ministro em funções pode sempre passar-lhe à frente.
O que favorece António Costa é que não não há muitas opções: Pedro Sánchez (Espanha) está ocupado, Robert Abela (Malta) é de um país demasiado pequeno que ainda agora teve (e pode continuar a ter) Roberta Metsola a presidir ao Parlamento Europeu, Mette Frederiksen (Dinamarca) é odiada pela família socialista devido às posições sobre imigração. Existe, depois, Olaf Scholz, mas esse é um caso à parte: sendo chanceler alemão nunca poderia (nem quereria) abandonar o cargo para assumir um alto cargo europeu. Além disso, um dos “big four” já estaria ocupado por uma alemã (Ursula von der Leyen).
Olhando a lógicas geográficas, Costa (que é do sul, do mediterrâneo e da ibéria) também não está propriamente mal posicionado. O eixo franco-alemão não seria um problema, já que o socialista Olaf Scholz é um camarada de família europeia e o líder dos enfraquecidos liberais (Emmanuel Macron) vê nele um aliado. Com o grupo de Visegrado são conhecidas as boas relações entre o conservador Viktor Orbán, com quem Costa viu, por exemplo, o jogo da final da Liga Europa no verão passado. A mudança na Polónia para o moderado Donald Tusk (antigo presidente do PPE) também é um bom sinal para António Costa, que veria sempre mais resistência por parte dos conservadores do PiS. Ainda em Visegrado, há ainda o novo primeiro-ministro eslovaco Robert Fico, que, apesar de ser um novo inimigo de Costa, tem agora novas prioridades — desde logo a de recuperar fisicamente depois de ter sofrido um atentado.
Há, no entanto, um obstáculo no que diz respeito ao equilíbrio geográfico. A guerra na Ucrânia deu força aos países eslavos que defendem uma deslocação do centro de poder da UE para Leste, que quererá, naturalmente, ter um dos seus nos quatro grandes cargos europeus. Ora, se Von der Leyen ocupar um dos cargos e Costa outro, sobra apenas o cargo de Alto Representante da UE para a Política Externa e a presidência do Parlamento Europeu (que é partida a meio). Pode ser curto para um Leste reivindicativo.
O facto de Durão Barroso ter ocupado a presidência da Comissão Europeia entre 2004 e 2014 é também apontado como outro dos fatores negativos para Costa, uma vez que há 27 países que têm de ir sendo representados. No entanto, essa regra não-escrita não colhe no historial que existe: a Bélgica, país médio como Portugal, teve dois dos presidentes do Conselho e o Luxemburgo, um país pequeno, três da Comissão, dois deles relativamente recentes (Jean-Claude Juncker e Jacques Santer).
Mas há mais ameaças e em Bruxelas nada é linear. Pawel Zerka, investigador principal do European Council on Foreign Relations, disse em declarações ao Observador que “António Costa e Kaja Kallas continuam a ser os principais candidatos aos cargos de Presidente do Conselho Europeu e de Alto Representante para os Negócios Estrangeiros, respetivamente – mas ainda estão muito longe de serem selecionados”.
Zerka vê, no entanto, mais dificuldades para Kallas: “Apesar da distribuição tradicional dos três papéis entre centro-direita, centro-esquerda e liberais, o mau resultado dos liberais está a debilitar a posição de Kallas. Entretanto, uma vitória convincente de Donald Tusk na Polónia e de Giorgia Meloni em Itália colocou-os numa posição que lhes permite reivindicar uma parte na liderança central. Isto, tal como as eleições francesas, poderá atrasar as decisões até ao início do outono“. O adiamento de julho para outubro é um obstáculo para Costa porque permite o aparecimento de novos candidatos — daí que a diplomacia portuguesa e os socialistas europeus tenham agora de acelerar os contactos se quiserem fechar a solução Costa.