O Orçamento do Estado para 2022 ainda não está apresentado, mas o Bloco de Esquerda vai deixando sinais que indicam que o filme do ano passado — o voto contra logo na primeira fase, a da generalidade — se deverá repetir. A três dias da apresentação da proposta do Governo, e apesar do “otimismo” que António Costa tem garantido sentir, entre os bloquistas reina a convicção de que as negociações estão longe de chegar a bom porto, empurrando a responsabilidade pela aprovação do documento para o PCP.
O sentimento nos bastidores do Bloco de Esquerda condiz com o empenho que os dirigentes têm mostrado, publicamente, em refrear o tal otimismo de António Costa. No debate parlamentar desta quinta-feira, a tensão foi clara: mesmo adotando um tom claramente mais cordial do que na negociação anterior, Costa foi recusando, ponto por ponto, as pretensões do Bloco, com quem assumiu que iria conversar mais tarde, em privado.
O debate com Costa em versão bolso. As irritações e os irritantes de uma tarde parlamentar
Fim dos cortes nas pensões por via do fator de sustentabilidade? Poria em causa a “sustentabilidade” do sistema. Medidas para fixar os profissionais no SNS, evitando a fuga para o privado? O Governo tem aumentado as contratações no serviço público de Saúde, fintou o primeiro-ministro. Fim das leis da troika na área laboral? Vejam-se as propostas que o Executivo tem levado à concertação social, que limitam, por exemplo, o trabalho temporário — mas não mexem nas reivindicações do Bloco, como o aumento das indemnizações por despedimento, que Costa recusou ser um tema “central”.
Feitas as contas, as exigências do partido foram caindo, uma após a outra. O guião nem sequer era imprevisível: em 2019, o Bloco tinha proposto ao PS um acordo para uma geringonça 2.0 que assentaria nas mudanças das leis laborais, uma negociação que acabou sem acordo e com as partes a acusarem-se mutuamente de inflexibilidade; no ano passado, o Bloco levou à discussão orçamental uma série de linhas vermelhas (a começar pelas leis laborais, de novo, e a acabar na recusa de novas transferências para o Novo Banco) que o PS relacionou, mais uma vez, com uma vontade não assumida de abandonar a geringonça.
Desta vez, várias dessas prioridades são, mais uma vez, postas em cima da mesa — e até ver, salvo mudanças de fundo que ainda podem acontecer até à votação do documento na generalidade, a 27 de outubro, e depois na negociação mais específica, na fase de especialidade, não há indicação de que vão ser incorporadas no Orçamento.
O anúncio estava, na verdade, feito há um ano: em novembro do ano passado, no encerramento do debate orçamental, Catarina Martins garantia que daí para a frente o PS seria obrigado a “negociar o que até agora pensou que podia recusar”, lembrando as linhas vermelhas vermelhas do Bloco — já na altura referia a exclusividade no SNS e o fim das leis laborais da troika.
“Ainda não foi neste orçamento que o conseguimos. Podia e devia ter sido agora”, insistia então, com fé em que a “cheguização do PSD” levaria o PS a fazer uma “escolha essencial” entre a direita que “já não existe”, a moderada, e as maiorias à esquerda. “É o que havemos de conseguir. É este o nosso compromisso e seremos incansáveis”, rematava.
Um ano volvido, e sendo certo que faltam semanas de negociação pela frente, a convicção no Bloco é que a decisão foi acertada e deverá repetir-se, caso não haja cedências de fundo do PS durante as semanas de negociação que estão por vir. Os bloquistas querem, desta vez, evitar para já a guerra mediática em que acabaram por se envolver no ano passado com o Governo, que apontava ao Bloco culpas por ir transmitindo a sua narrativa sobre a forma como as negociações privadas decorriam. E é registada uma mudança de tom, mais cordial, de António Costa em relação ao partido, sem que haja para já ameaças de dramatização e crise no ar — mas suspeitando de que essa cordialidade seja uma forma de pressão para que Costa possa, no fim de contas, voltar a acusar o partido de “desertar”, caso as negociações falhem mais uma vez.
Jerónimo, duro no tom, recebe sinais positivos do PS
Há outro fator em cima da mesa: os bloquistas continuam convictos de que o PCP estará mais disponível para viabilizar o próximo Orçamento, até porque António Costa continua a tratar o partido como o seu parceiro preferencial. O primeiro-ministro tinha feito questão, logo na noite eleitoral, de frisar os ganhos dos comunistas numas autárquicas que foram essencialmente de perda para o PCP. Depois, no debate desta semana, Costa pegou numa folha dos seus apontamentos com a lista de conquistas do PCP no Orçamento passado, do lay-off ao alargamento das creches gratuitas, para provar que a escolha de viabilizar o documento compensou e professar a sua fé em que os comunistas mantenham a sua posição, sem “falhar ao compromisso com o país” (leia-se: como o Bloco fez). E essa perceção também isenta os bloquistas de responsabilidades na aprovação do documento, permitindo ao partido fazer oposição sem ambiguidades.
O raciocínio é válido, pelo menos, enquanto o PCP estiver de facto disponível para aprovar Orçamentos — e o PS corresponder às exigências do partido, como Costa foi assegurando ao longo do debate. Até porque, se o cenário fosse de facto o de uma crise eminente, dificilmente o BE não voltaria à mesa das negociações, aí com uma posição negocial reforçada.
Por agora, a perceção que reina à esquerda é que o PCP estará mesmo mais envolvido nas negociações e mais posicionado para viabilizar um novo Orçamento. Mesmo que o tom de Jerónimo de Sousa, tanto nos debates como nos comícios regulares que tem marcado desde o fim da campanha, seja duro e não poupe o PS: da colagem dos socialistas à direita aos chumbos de medidas importantes para o PCP, como leis laborais e aumento do salário mínimo, o líder do PCP tem-se mostrado insatisfeito (“São estes os sinais que o Governo quer dar?”, perguntava a Costa durante o debate).
Mas várias das prioridades dos comunistas poderão ser acomodáveis: algumas já têm caminho feito em Orçamentos anteriores (rede de creches e aumento das pensões, para o qual fonte socialista garante que volta a haver “disponibilidade”); outras têm sido referidas publicamente pelo Governo (caso do desdobramento dos escalões do IRS, podendo ainda haver um englobamento parcial de rendimentos no IRS); e há matérias em que o Executivo está a mostrar mais flexibilidade do que tinha antecipado (a atualização geral dos salários na função pública, a somar à promessa de aumentar os salários de entrada em algumas carreiras no próximo ano).
Na semana passada, Jerónimo aproveitava o choque público entre Pedro Nuno Santos, que criticou o travão das verbas para a CP, e João Leão para frisar que o ministro tinha “dado razão” ao PCP e lembrar que o ministro das Finanças guarda “a chave do cofre” — o cofre que o Governo terá de abrir se quiser continuar a contar com o seu parceiro preferencial. Sendo certo que, a nível de contas eleitorais, não se vislumbram motivos para que nenhum dos partidos da esquerda possa estar particularmente interessado em ir a votos agora, nem seguro dos bons resultados que teria numa eleição surpresa.