O governo de António Costa não conseguiu “garantir a todos os portugueses uma habitação adequada”, como prometeu em 2018 o então primeiro-ministro. Carlos Guimarães, arquiteto e professor catedrático da Universidade Lusófona, diz que as “carências mais dramáticas são muito vastas” e há uma intervenção urgente, de grande porte, que é necessária para ajudar os jovens a conseguir acesso mais fácil à habitação. Há mais construção em curso mas apenas irá “amenizar” a crise da habitação, que “não vai acabar nos próximos tempos”.
O especialista diz que a solução passa por uma reformulação do mercado de arrendamento e, também, pelo regresso das cooperativas de habitação, que foram muito vantajosas no final do século passado mas caíram em desuso – o que, afirma Carlos Guimarães, contribuiu para que hoje a classe média tenha mais dificuldades em aceder a uma habitação de acordo com as suas necessidades.
Há poucos meses, o anterior governo aprovou o chamado “Simplex Urbanístico”, para tentar acelerar a construção de casas, mas, falando enquanto arquiteto, Carlos Guimarães receia que algumas partes da nova legislação irão provocar um “descalabro” e suscitar “batalhas jurídicas infernais”.
Em 2018, o primeiro-ministro António Costa anunciava um plano para acabar com as carências habitacionais até 25 de abril de 2024, o 50.º aniversário da democracia portuguesa. Prometia até este dia, “garantir a todos os portugueses uma habitação adequada”. À luz dos desafios que este setor enfrenta, essa era uma promessa realista?
Bem, não creio que se possa ver uma afirmação dessas como a execução de um programa de natureza prática para ficar fechado, resolvido, num determinado prazo – e ainda por cima um prazo muito curto. Eu vejo isso mais como uma orientação de natureza estratégica, porque as carências e os problemas da habitação não param nunca, não cessam, quer porque as carências reais mais dramáticas são muito vastas, quer porque as necessidades de renovação e requalificação também não cessam. O problema da habitação, que é um problema múltiplo, necessita de medidas diversas, complementares, não cessa nunca, nem vai cessar. Será sempre uma questão que se vai manter, mudando porventura os seus acentos tónicos, onde é que estão as prioridades mais agudas, mas não vai acabar nos próximos tempos.
Sim, mas há uma perceção de que se agravou muito nos últimos anos… Ou é uma perceção errada?
Sim, agravou-se porque houve uma mudança, particularmente nos últimos 10, 15 anos, um período em que os efeitos da globalização da economia se começaram a fazer sentir em todos os mercados – nos primeiros tempos sem que ninguém os identificasse como tal. É por isso que este problema, como também já ouvimos em algumas vozes, não é exclusivo de Portugal e é comum, por exemplo, a vários países na Europa. Isto porque os mercados imobiliários passaram a ser atrativos para capitais que flutuam no mercado internacional no sentido de investimento e fixação de capital. Ora, com fatores como uma procura diversificada de outros públicos, como estrangeiros que vêm residir em Portugal, o turismo etc., tudo isso são fatores que interferem na procura de espaços de habitação nas cidades europeias. E Portugal não é exceção.
Em Portugal, com a crise financeira, a banca durante alguns anos deixou de poder financiar tanto a promoção como a aquisição. Também é um fenómeno que não foi exclusivo de Portugal, sabemos, mas em Portugal isso levou àquilo que é apontado como uma das causas para a crise atual, que é, no fundo, um grande abrandamento no ritmo de construção nova. Concorda com isso? Acha que esse é um dos fatores?
Sim, é um dos fatores. A habitação tem vários setores diferentes, neste momento as principais carências estão, por um lado, nas condições de acesso à habitação por parte de camadas etárias até aos 35, 40 anos. Portanto, as gerações que estão neste momento a afirmar-se profissionalmente não têm, no mercado livre, condições para aceder a esse tipo de habitações, porque simplesmente os valores são completamente inacessíveis face aos rendimentos que tem a generalidade das pessoas que estão nessas faixas etárias. E esse é um um problema grave porque gera um sentido de frustração nas pessoas que estão nesta faixa, a partir dos 25 anos, particularmente 25 /40, porque é-lhes difícil encontrar formas de terem a sua própria casa para constituir em família ou viverem como quiserem.
Era mais fácil há 40 anos ou há 30 anos?
Há 40 anos não era nada mais fácil, mas neste momento este é um dos setores que precisa claramente de ser intervencionado. E há coisas que estão a ser feitas, embora, estranhamente, não tenhamos neste momento uma visão atualizada das iniciativas que muitas câmaras municipais têm em curso de projetos e de obra que certamente vão traduzir-se em resultados palpáveis daqui a um ano ou dois anos, pondo no mercado um conjunto de habitações, de custos controlados…
Públicas ou privadas?
É iniciativa pública, com custos controlados. Não é habitação social, é uma habitação que oferece condições de acesso à habitação sem ser com os valores que o mercado livre privado contempla.
Mas acredito que, então, dentro de um ou dois anos, podemos ter resultados…
Eu acredito, sim, porque há um conjunto vasto de municípios de norte a sul do país, particularmente situados dominantemente na orla litoral do país. Não nos podemos esquecer que nós temos uma espécie de cidade linear em formação entre Setúbal e Viana – podíamos até dizer entre Setúbal e Corunha – onde há um conjunto de municípios onde vivem mais de dois terços da população portuguesa. Nessa área, um conjunto de municípios tomou a iniciativa de aproveitar mecanismos que foram criados governamentalmente, para encontrar terreno, encomendar projetos e vão construir habitação.
Vão construir ou estão a construir?
Estão a construir e vão construir. Já há casos que estão a ser finalizados e outros que vão ser começados. Eu creio que vão ser alguns milhares, não se sabe quantos, mas vão ser alguns milhares. Não vão resolver o problema, mas vão amenizar o problema. De qualquer maneira, este é um setor. Depois há um outro setor diferente, onde estão todas as famílias e as pessoas de grande carência de natureza económica e social, muitas delas a viver em zonas degradadas que precisam de uma intervenção mais vasta, reabilitando os espaços urbanos, os conjuntos habitacionais, no sentido de pôr habitações de natureza precária e sem condições, pô-las a funcionar devidamente, aumentando, em alguns casos, os conjuntos existentes com novas habitações. E esse é claramente um setor diferente, porque obriga a um investimento de natureza pública e social, porque as famílias que têm que ser alvo dessa ação não têm condições sociais e económicas para suportarem os custos disso.
Quem é Carlos Guimarães?
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Carlos Guimarães é Professor Catedrático da Universidade Lusófona desde 2020, onde dirige o Centro de investigação TerrA.ID (Arquitetura, Desenvolvimento e Investigação) e o Curso de Doutoramento.
Foi Professor Catedrático da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), da qual foi diretor de 2010 a 2018 e Presidente do Conselho Científico entre 2018 e 2019.
Começou a atividade docente no curso de Arquitectura em 1981, doutorando-se em 1999, com a Tese “Arquitectura e Museus em Portugal — Entre Reinterpretação e Obra Nova”. Foi, também, presidente da secção regional do norte da Ordem dos Arquitetos entre 1999 e
2004.
Mas é uma grande prioridade do plano de recuperação e resiliência (PRR)…
É uma grande prioridade. Digamos que é algo de semelhante à prioridade de erradicação das barracas de há 30 e tal anos, que era um escândalo, mesmo na altura era um escândalo, particularmente nas áreas metropolitanas de Porto e Lisboa ver milhares de pessoas que viviam nas barracas de madeira com telhado de zinco – ou, melhor, uma cobertura de zinco – sem infraestruturas de água, de esgoto, sem acessos, sem transportes…
Falou sobre o fenómeno da especulação, dos fluxos de capitais e do facto de ser um problema que não é exclusivo de Portugal, mas o que é que em Portugal criou condições específicas para que tenhamos o problema que temos?
Eu poderia referir duas ou três coisas que, de alguma forma, estão também relacionadas com isto. Há uma que é a perda de importância que tiveram as cooperativas de habitação. As cooperativas de habitação permitiram, de há 40 anos para cá, resolver o problema de habitação de agregados familiares dos setores médios, de uma forma interessante, com habitações e conjuntos urbanos de habitação interessantes, bem encaixados nos territórios, nas cidades, em partes de cidade, e resolver o problema isso de uma forma equilibrada…
Como é que funcionavam as cooperativas, para quem já não viveu esse tempo, e em que modelo é que podiam regressar?
As cooperativas são essencialmente entidades da associação livre. Há um conjunto de pessoas que se associa criando uma cooperativa, em que os cooperantes participam com uma parte do esforço económico para virem a conseguir construir o que necessitam em termos de habitação, portanto, um conjunto habitacional com X habitações de diferentes tipologias – T2, T3, T4, o que for – e que eram apoiadas através de um financiamento público para a realização dessa construção. O financiamento tinha duas vertentes, uma vertente claramente financeira, com juros bonificados e um empréstimo para ser amortizado durante X anos, e através de terreno que, habitualmente, os municípios disponibilizavam – fosse através de uma bolsa de terrenos ou de uma ação direta que os municípios empreendiam para encontrar terreno para construir um novo conjunto habitacional.
Na sua opinião, era uma solução que acertava como uma luva nesta altura?
Era uma solução que devia ter sido continuada, deve continuar, modernizada, no diálogo com os municípios, contribuindo para a requalificação urbana, mas é uma situação a recuperar e incentivar. Depois há uma outra questão que se debate há muito tempo…
Relacionada com Portugal, especificamente?
Sim, que é a inexistência de um mercado livre de arrendamento. Repare, quando Salazar determina a fixação das rendas nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, faz isso para reequilibrar questões de natureza económica no tecido social penalizando os proprietários, fazendo-os pagar uma parte dessa fatura. A questão é que depois disso não houve nunca uma medida de repor verdadeiramente um mercado livre de habitação.
Desde essa altura?
Desde essa altura. Nenhum governo levou completamente a sério a necessidade de repor um mercado livre de habitação. Isto teve vários efeitos. Um deles foi que uma das soluções que se tornaram particularmente importantes foi tornar o português um proprietário da sua habitação. E a banca contribuiu para isso de uma forma brutal, com financiamentos que atingiram valores absolutamente incríveis. Isto sem que ninguém discutisse, por exemplo, que isso é um limitador da mobilidade das pessoas. Se alguém estiver a trabalhar num sítio e tiver uma oportunidade de trabalhar noutro a 200km de distância, vender uma casa não é a mesma coisa que terminar um arrendamento. E isso introduziu uma certa rigidez e fixação dentro do próprio mercado de trabalho e na vida social. Ora, o mercado livre de arrendamento, se funcionasse – como funcionava anteriormente embora numa dimensão muito mais pequena – permitia que qualquer pessoa pudesse encontrar um andar para viver, uma habitação para viver, com padrões diversos, aqui ou acolá, e poder trabalhar onde quisesse com alguma facilidade, sem afetar uma parte significativa do seu rendimento à aquisição da habitação própria. Gerou-se uma espécie de bloqueio relativamente a isto, curiosamente, por um lado, numa espécie de convergência estranha entre interesses que a banca tinha em desenvolver um mercado que lhe permitiu negócios interessantes ao longo de várias décadas e uma visão que alguns setores políticos viam como um pouco selvagem na visão capitalista do mercado e que, portanto, não deveria ser permitida.
Como Cavaco, Costa e Cristas foram moldando a lei das rendas até se chegar ao Mais Habitação
Aquilo que foi feito nomeadamente durante o programa da troika, houve alterações na lei do arrendamento que algumas pessoas criticam, a lei Cristas… Acha que isso não foi suficiente para, no fundo, amortecer os impactos da crise que aí viria?
Não, não foi suficiente. Também o modo como algumas das medidas foram colocadas possibilitou que se gerasse um certo receio, particularmente nos setores etários mais avançados, com menores capacidades de enfrentar uma situação em que as rendas começassem a subir, ano a ano, de uma forma que poderia não ser comportável para algumas famílias ou algumas pessoas. A par disto há um problema que tem a ver com investimentos que foram feitos ao longo dos últimos 30 anos em conjuntos habitacionais, muitos deles de fraca qualificação e que acabaram por não ter ocupação. Daí que, quando se ouve dizer que Portugal pode ter milhares de fogos de habitações por ocupar, muitos desses fogos estão em áreas territoriais e urbanas de má localização… muitos deles não têm acesso a transportes, linhas de transporte, têm também uma qualificação construtiva muitas vezes má, e é um problema porque muitos desses fogos e muitos desses conjuntos dificilmente terão nas circunstâncias atuais procura por parte de quem precisa de uma casa.
Portugal tem uma crise de habitação porque tem muitas casas mas não estão onde fazem falta, é isso?
Também, também. Nós precisamos de uma nova geração de medidas para combater, para tratar as questões da habitação, que combinem políticas de natureza diferente.
O que quer dizer com isso, concretamente?
Como eu dizia há pouco, com um novo incentivo em instituições como cooperativas que tiveram um papel importantíssimo e que podem voltar a tê-lo; políticas dirigidas a setores importantes da sociedade portuguesa, aqueles que, entre os 25 e os 40 anos, estão a iniciar as suas atividades profissionais, as suas famílias, a sua autonomia, etc. E a reabilitação e o tratamento dos conjuntos habitacionais degradados, muitos deles, aquilo que há uns anos chamavam as periferias clássicas que existem sobretudo nas áreas metropolitanas de Porto e Lisboa. Estes são setores importantes, referir também a conveniência de se pensar um mercado de arrendamento que permita flexibilidade para quem o quiser usar, flexibilidade para quem arrenda, flexibilidade para quem dispõe de habitações para arrendar e, portanto, a conjugação de medidas diferentes para alvos diferentes do tecido social e económico.
Falávamos há pouco sobre as casas vagas que, segundo dados do INE, são mais de setecentas mil no país. Há uns meses foi muito badalada a questão do arrendamento coercivo. Que opinião tem sobre a forma como isso pode avançar?
Não sei se o número será esse. Eu acho que também uma questão que era importante era refazer estudos que foram feitos, completá-los, atualizá-los para termos um cenário mais credível do que existe e aquilo que está vago…
E porque é que está vago…
Exatamente… Essa medida do arrendamento coercivo, eu pessoalmente vi isso mais como uma narrativa de natureza política para agradar a certas perspetivas, porque dificilmente seria uma medida exequível. Estava inclusivamente previsto que fossem os municípios a concretizar essas medidas. Ora, dificilmente qualquer município iria exercer no seu território uma medida pouco simpática do ponto de vista da opinião pública e administrativamente altamente complexa, altamente complexa, dificilmente exequível e, portanto, isso foi mais uma narrativa de enquadramento ou de perspetiva do que uma medida para pensarmos que seria exequível. Aliás, que eu saiba, não foi executado um único arrendamento coercivo no país, portanto, não creio… Acho é que houve uma certa desfocagem e uma perda de intensidade em continuar a promover ações nos setores que eu referi, no setor cooperativo, no setor das rendas a preços controlados para estes setores mais jovens e uma intervenção nos setores degradados.
Qual era a primeira medida que tomava se tivesse responsabilidade nesta matéria?
A primeira medida que tomava era fazer um simplex administrativo. Eu sei que saiu um, mas temos de eliminar uma quantidade de questões de natureza administrativa ou burocrática que dificulta tudo isto. E temos de dar, claramente, mais autonomia aos municípios para poderem delinear de forma mais rápida e eficaz a conjugação destas medidas de requalificação urbana e territorial.
Mas o problema também não estava nos municípios, que atrasam muitos os processos? Essencialmente, é isso que o simplex urbanístico quer resolver…
Sim, é, vamos ver como é que vai fazer isso e as novas questões que se colocam. De qualquer maneira, só para terminar a parte anterior, não é novidade para ninguém que nós temos um país ainda fortemente centralizado. E, portanto, há muitas medidas, mesmo esta atuação dos municípios na área da habitação implica sempre um controlo e uma dependência de instituições da administração central. E isso tem efeitos positivos, devia ter efeitos positivos no que diz respeito a normas genéricas que devemos todos respeitar e ter todos em comum. Mas do ponto de vista da aprovação, da verificação, apreciação dos projetos, verificação das condições de financiamento é uma tramitação tão pesada, tão pesada que arrasta ainda mais o tempo já longo para a elaboração de projetos habitualmente os mais sofridos para serem rápidos e o tempo de construção. Portanto, vamos ver este simplex, que é muito virado para o mercado privado, que vê nas câmaras ou tem nas câmaras muitas vezes bloqueios, quando quer licenciar um edifício ou outra coisa qualquer, ou uma fábrica, ou um conjunto de escritórios, e muitas vezes os licenciamentos demoram ano e meio, dois anos, o que é de facto incrível.
O simplex quer acabar com isso…
A estratégia que está subjacente a este simplex é tentar reduzir fortemente estes tempos de licenciamento. E nós conhecemos imensos casos em que há investimentos privados que demoram tempos como este – ano e meio, dois anos – para serem licenciados sem que os projetos que foram submetidos tivessem sido alvo de identificação de estarem a cometer ilegalidades ou algo que não era razoável, é apenas tramitação burocrática. Porque a Câmara recebe, depois consulta os bombeiros, consulta os serviços municipais de águas e esgoto, etc., por aí fora uma quantidade de entidades que tem que dar opinião, muitas vezes de forma contraditória umas com as outras. Ora, eu quando digo reforçar as câmaras também significa, em primeiro lugar, reforçar a sua capacidade de acordo com os planos que têm e de acordo com os seus planos plurianuais de investimento, poderem não ficar dependentes de uma tramitação centralizada que atrasa a possibilidade de realizar conjuntos habitacionais, por exemplo. Vamos ver, o simplex é uma incógnita neste momento, porque também uma das coisas que se começa a perceber que gera é uma deslocação de responsabilidades…
Fala, nomeadamente, como arquiteto, uma classe que tem mostrado ter algum receio face ao que está no simplex…
Claro, porque há a possibilidade de eu entender, de um arquiteto entender, que está a fazer um projeto que cumpre tudo o que deve cumprir, que está bem localizado, que está bem implantado, que tem o volume certo, etc… E depois poder vir a alguém que faz uma interpretação diferente, quando a obra já está a correr, isso é dramático, isso não pode acontecer.
O que estamos a falar, só para as pessoas que não estejam a acompanhar neste tema, é que, com o simplex urbanístico, há a possibilidade de haver, no fundo, uma responsabilização do arquiteto, que depois pode haver uma fiscalização sucessiva, mais tarde, e que pode voltar atrás e achar que não estava nada bem…
Exato, isso pode ser um descalabro. Pode ser um descalabro.
Porquê?
Porque repare o que é, por exemplo, um arquiteto ter um cliente que quer fazer um edifício de escritórios, por exemplo. E ser verificado, com os passos legais que o simplex prevê, que não há problema na implantação, na localização do edifício, no volume, na maneira como se relaciona com a rua… E depois vir alguém que diz assim “ah, mas você não reparou que era preciso… qualquer outra coisa“. E portanto, o edifício vai ser embargado ou eventualmente demolido, imagine a atribuição de responsabilidades de uma coisa destas. Esta possibilidade, se não for devidamente esclarecida e acautelada pode tornar o simplex numa batalha jurídica infernal para o futuro próximo. É uma questão que está em aberto, a Ordem dos Arquitetos anda a discutir isso. Vamos ver nos próximos tempos o que é que vai sair daqui.
Mas não discorda, à partida, da intenção, ou seja, concorda com o objetivo de simplificação. Quer é que haja mais forma de salvaguardar riscos, nomeadamente para o seu trabalho. É isso?
É um mundo muito complexo. Por exemplo, há coisas que o simplex prevê [eliminar] e que eram de facto, enfim, um pouco de espanto. Como é que uma Câmara Municipal muitas vezes pedia documentos que ela própria é que produz? Como quando nos pedem: “junte ao seu processo um extrato da planta do Plano Diretor” – a Câmara Municipal é que o tem, é ela que o fornece. Portanto, há uma série de tramitações de natureza administrativa que podem ser, por isso, simplesmente eliminadas, sem nenhum problema…
O que está a preocupar os arquitetos é essa responsabilização que lhes pode sair cara…
Repare, hoje um projeto para um edifício, por exemplo, pode ter cerca de 21 a 22 termos de responsabilidade. O arquiteto é o coordenador-geral, é o autor-geral da obra, mas depois há toda uma série de outras especialidades, fundações de estruturas, todas as questões ligadas à eletricidade, às águas, esgotos, ventilação, térmica, etc., têm outros responsáveis que o arquiteto no seu projeto de arquitetura coordena e integra. Isto tem, portanto, uma complexidade imensa e essa complexidade também está no lado de quem licencia, de quem verifica. Portanto, o simplex, se for visto em extremo e desequilibrar apenas para um lado as responsabilidades isso poderá introduzir aqui desequilíbrios que podem ter efeitos muito negativos na vida futura.
Como é que se pode acautelar que isto funciona, não para não ser algo prejudicial?
Através de estudo e de muita reflexão sobre estas matérias.
Mudança da lei, também?
E mudança de lei também, evidentemente. Hoje, apesar de tudo isto, estamos muito longe – e isto é a propósito do 25 de Abril – do que era a realidade portuguesa nas vésperas do 25 de Abril. É difícil para quem nasceu após o 25 de Abril ter uma noção do que era essa realidade, que eu vivi, sou mais velho, e o mundo era outro, porque as carências basilares nas cidades de espaço público qualificado, dos transportes, de habitação minimamente decente, de saneamento básico, eram imensas. No 25 de Abril dizia-se, sem grandes estudos, mas dizia-se, era a voz comum que a carência grave de alojamentos variava entre 500 mil e 600 mil.
Fogos…
Sim, entre 500 mil e 600 mil fogos. De 25 de Abril para cá construiu-se muito mais do que isso, muito mais do que isso. Muitos deles acabaram depois por perder eficácia, alguns estão abandonados, uns poderão estar fechado. E as novas necessidades não são satisfeitas também com o que tenha sobrado desse esforço construtivo que tem vindo a ser constante desde o 25 de Abril até agora. Pelos vários governos, por várias políticas com diferentes medidas, estamos portanto numa situação em que, na comemoração do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril, o simples facto desta realidade hoje ser tão diferente merece-nos que nos congratulemos com isso.