Quando, há uma semana, Pedro Adão e Silva subiu ao púlpito do Parlamento com um discurso em mãos, preparado para encerrar o debate do Estado da Nação, o cenário não era habitual. Afinal, é raro, no mínimo, ver um ministro com a pasta da Cultura a assumir uma tarefa com tamanho grau de protagonismo. Entre socialistas, o diagnóstico é um: Adão e Silva é muito mais do que o sucessor de Graça Fonseca; tem um peso político muito próprio.
“Adão e Silva não é apenas um ministro da Cultura. É um ministro político”, comenta como o Observador um destacado socialista. E, como ministro político que é, não se limitou a falar do dossiê cultural. Apareceu no Parlamento com um discurso profundamente político, fez a defesa convicta dos primeiros 100 dias de governação e ainda malhou na oposição, atingindo em particular PSD e Chega. Gesto automático, a bolha política e mediática agitou-se: estava encontrada mais uma estrela da constelação costista.
Seja como for, há quem, no topo da cadeia alimentar socialista, venha pôr água na fervura: há um mar de distância entre reconhecer o mérito de Adão e Silva e incluí-lo no lote de possíveis sucessores de António Costa. “Isso são folhetins“, despacha um alto dirigente do PS. “Isso não é sequer assunto nos corredores”, garante outra fonte do PS.
De todo o modo, no início deste mandato, António Costa fez questão de manter Pedro Adão e Silva por perto e incluir o antigo comentador no restrito grupo de coordenação política do Governo, onde se incluem também os nomes mais falados para uma sucessão futura no PS, o que constitui prova provada da influência do ministro da Cultura — pasta historicamente delicada — e do peso político de Adão e Silva.
No partido, no entanto, há quem insista que atirar o independente — tecnicamente está desfiliado do PS e já não é militante — para o leque de eventuais sucessores é uma manifesta efabulação. “Foi fazer o discurso para ser apresentado como novidade. E era um desperdício uma pessoa com o perfil dele não estar na coordenação”, nota um colega de Governo.
À boleia desses cálculos sucessórios que se vão fazendo em torno de Adão e Silva, outro socialista recorda ao Observador o momento em que António Costa entregou o cartão de militante a Marta Temido no último congresso, em Portimão, sob uma ovação dos delegados, e chegou a dizer que poderia ser candidata à sucessão apenas para depois dizer que estava a ser “irónico“. Em resumo: para o partido, as hipóteses de Adão e Silva vir a suceder a Costa são idênticas às de Temido — improváveis.
Uma cumplicidade antiga com Costa
Contas feitas, os dirigentes socialistas atribuem a opção de Costa à importância que Adão e Silva tem no núcleo político do Governo. E isso não é nenhum pormenor na composição deste Executivo. Se Adão e Silva fez uma intervenção mais “macro”, política, sobre “grandes opções do Governo”, como se comenta no partido, é precisamente porque tem uma sensibilidade e instintos políticos mais transversais que não estão circunscritos apenas à área da Cultura.
Quanto à chegada ao Governo, os mais próximos admitem que foi uma “surpresa”: “Não era nada óbvio que estivesse interessado em voltar”, nota um deles. ” Sempre fez o seu próprio caminho, fez as suas opções, que não eram necessariamente as mais óbvias“, lembra o deputado, amigo e ex-secretário de Estado Miguel Cabrita.
O segredo estava tão bem guardado que Adão e Silva não partilhou a decisão com o seu próprio núcleo duro e acabaria por ser praticamente a única surpresa quando foi conhecida a lista dos nomes que integram este elenco governativo, no mesmo dia em que ainda esteve na abertura das cerimónias do 25 de Abril como comissário executivo.
No que diz respeito à integração de Adão e Silva no núcleo de coordenação política, frisa fonte próxima do ministro, “mais do que a pasta, interessa a pessoa”– é preciso recuar ao governante que estava há mais anos em funções, Augusto Santos Silva, para lembrar um ministro da Cultura que tenha sido incluído no núcleo duro de governos PS. O respeito político de Costa por Adão e Silva é evidente.
De resto, esta relação não é de agora. Em 2015, o próprio revelava ao Diário de Notícias que tinha hábito por hábito ir falando com António Costa, “geralmente por sms”, e que era a partir dessas conversas com vários elementos do universo socialista que o primeiro-ministro ia pensado estrategicamente e tomava as suas decisões políticas.
“Vou falando com ele e geralmente por telefone, por sms – ele fala muito por sms. Há umas fases em que falo mais e ou outras em que falo menos. Decide falando com muitas pessoas e em conversas cruzadas. É um padrão muito diferente do mais habitual, que envolve muitas conversas bilaterais“, elogiava na altura Adão e Silva.
O politólogo daria outro detalhe relevante sobre a forma de pensar de António Costa. “As conversas não são contra-argumentos, não são disputas. E forma a decisão tendo em conta o que ouviu. Uma coisa importante que se reflete não só na formação do governo — os ministros que vêm mais ‘de fora’, mais inesperados, resultam disso. Ouve pessoas muito variadas, de sítios diferentes, não só da área mais estrita da política. E isso também resulta nas decisões. Tem capacidade de envolver pessoas para além do espaço político do PS”, expunha Adão e Silva, longe de saber que, sete anos depois, seria ele a ser catalogado como escolha inesperada para ministro.
Habituado a ser uma espécie de comentador do regime — chegou a ocupar espaços de opinião na RTP, TSF, Expresso, Sport TV e Record –, António Costa não era o único a procurar os conselhos de Adão e Silva: também Marcelo Rebelo de Sousa e Eduardo Ferro Rodrigues costumavam ouvir o académico, que, apesar de ter abandonado o circuito partidário, nunca saiu verdadeiramente do circuito político.
O 25 de Abril, o melhor aluno e o trauma de 2003
A ligação à Cultura será por gosto, por prática e por consumo, mas não por ter alguma vez trabalhado no setor, e a nomeação como ministro depois da polémica à frente das comemorações do 25 de Abril voltou a colocá-lo no radar político, pelo menos de forma ativa.
Foi esse o polémico cargo que ainda há meses lhe trouxe acusações de não estar, afinal, assim tão longe da política partidária e do PS e de não ser verdadeiramente independente, além das críticas por causa do ordenado (3745,26 euros mensais e 780,36 euros em despesas de representação durante cinco anos) e da equipa a que teria direito para preparar a celebração (Rui Rio descreveu mesmo a escolha como uma “compensação” pela “propaganda socialista” de Adão e Silva — “pagamos nós, com os nossos impostos).
Na altura, Adão e Silva viria dizer-se “triste” com as acusações de que foi alvo e revelaria que já não era militante do PS: “Afastei-me da militância no dia em que Eduardo Ferro Rodrigues saiu de secretário-geral do PS. Nunca mais tive nenhum cargo, nunca mais participei em nenhum congresso. E há uma coisa que nunca tornei público, mas que nestas circunstâncias tenho de tornar, é que já nem sequer sou militante do PS”, dizia em entrevista à TVI. Pouco havia a fazer: o rótulo de “comentador do PS” estava colado à pele e, com a nomeação como ministro, dificilmente sairá.
A entrada nesse circuito aconteceu aos 18 anos, quando se filiou no PS, na altura em que escrevia textos para o Jovem Socialista. Já na faculdade, no ISCTE, onde se formou em Sociologia, encontraria Paulo Pedroso como professor. “Foi o meu melhor aluno de licenciatura no ISCTE”, garante ao Observador o antigo ministro, elogiando as “capacidades intelectuais” e a “sólida formação em teoria política” de Adão e Silva, mas também o facto de ser “muito disciplinado”.
Daí surgiria o convite para ser seu assessor na área da Segurança Social no Governo de António Guterres — tarefas que deixaria para rumar a Florença, com o objetivo de fazer doutoramento no Instituto Universitário Europeu.
O afastamento não durou muito: Pedroso, Eduardo Ferro Rodrigues e companhia “convenceriam” Adão e Silva a regressar para fazer parte do secretariado nacional do novo líder socialista, o próprio Ferro. “Ele voltou por crença, crença em Ferro Rodrigues”, assegura Miguel Cabrita. Em 2002, o Público escrevia sobre essa “ascensão fulgurante” do então jovem de 28 anos até ao órgão executivo do dia a dia do PS.
“Fizemos essa aventura das eleições de 2002 contra Durão Barroso, em que entrávamos super derrotados, e foi uma campanha muito forte”, recorda Paulo Pedroso, lembrando o “papel muito importante” de Adão e Silva a coordenar o grupo de jovens que preparava diariamente a campanha, atento à atualidade e ao discurso político.
Era a base de uma nova geração que se formava no PS, muito ligada ao ISCTE, e que incluía a ministra Mariana Vieira da Silva (colega, embora ligeiramente mais nova, de curso do ministro), Miguel Cabrita (que se tornaria depois secretário de Estado Adjunto, do Trabalho e da Formação Profissional) ou Hugo Mendes (atual secretário de Estado das Infraestruturas).
O trabalho da nova geração socialista não se resumiria ao circuito estritamente partidário: juntos criariam um blogue, o País Relativo, onde partilhavam as suas análises sobre os assuntos do dia. “MVS”, ou Mariana Vieira da Silva, assinou várias publicações sobre o Sporting, mas também sobre música; Adão e Silva comentaria depois a composição do primeiro Governo de José Sócrates e faria partilhas variadas (de um poema de Ruy Belo, por exemplo).
No entanto, se a ascensão parecia meteórica, a queda também foi rápida. Adão e Silva “desiludiu-se” com a política depois dos anos difíceis da direção de Ferro Rodrigues, onde o caso Casa Pia caiu como uma bomba, a somar depois à saída de Ferro, descontente com a escolha do então Presidente da República Jorge Sampaio de indigitar Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro (depois da ida de Durão para Bruxelas) em vez de convocar eleições e dar uma oportunidade ao próprio partido, o PS, no poder.
“Foi um período muito traumatizante para todos nós”, explica ao Observador Ana Gomes, que fez parte do mesmo secretariado de Ferro — a par de nomes como Maria de Belém, Paulo Pedroso, Vieira da Silva, António Costa, José Sócrates ou Alberto Martins — e recorda Adão e Silva como alguém “muito trabalhador, com grande sentido político”, mas “muito cauteloso” para o seu gosto.
“Não me admira nada que o primeiro-ministro tenha delegado nele o encerramento do debate. É um ministro muito político. Na direção de 2002 a 2004, escrevia boa parte dos discursos de Ferro Rodrigues”, recorda Ana Gomes.
O “player” que participou na moção de Sócrates
Acabado o projeto de Ferro e desiludido com a “forma como se fazia política”, decidiu “fazer uma escolha de inversão da carreira“, explica Pedroso, que manteve sempre a proximidade com Adão e Silva. Então, começaria o período de afastamento da política — acabou o doutoramento em Ciências Sociais e Políticas e tornou-se professor no ISCTE em 2007 — mas sempre com grande presença mediática, que tantas vezes fez com que a sua independência e o grau de verdadeiramente afastamento do PS fosse questionado.
O afastamento teve um interregno formal — a participação na moção do primeiro Governo de José Sócrates, a par de nomes como Alberto Martins, Augusto Santos Silva, Vera Jardim e de figuras do núcleo duro de Sócrates, como Pedro Silva Pereira e Edite Estrela. Pelo meio, fora da política, fez parte de uma candidatura à direção do Benfica, tornou-se praticante assíduo de surf, teve um programa de rádio sobre música (é fã assumido dos Smiths, por exemplo) e publicou vários livros.
Surpreendeu os amigos ao aceitar o convite de Costa, daí que Pedroso fale nos “dotes de persuasão” do primeiro-ministro, e junto dos mais próximos espera-se que o regresso não seja episódico (“se quiser continuar na política, é um player para todo o tipo de cargos”, comenta), embora ninguém arrisque adivinhar as futuras intenções do ministro.
Até ver, o regresso é mais ou menos simbólico: se em 2019 e 2020 coordenou, com Ricardo Paes Mamede, dois relatórios a propósito do Estado da Nação, desta vez foi um dos protagonistas do próprio debate, papel que nos últimos anos Costa atribuiu a nomes de confiança como Mariana Vieira da Silva e Augusto Santos Silva. O peso político no Governo parece garantido, mas se o futuro passará definitivamente pela política ou não, só Adão e Silva saberá.