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Nasceu na Croácia, cresceu em Itália, há três anos que vive em Londres e desde setembro que trabalha para uma startup portuguesa, a Utrust. Sanja Kon, 33 anos, tem mais de 10 de experiência em multinacionais e gigantes da tecnologia como a Vodafone, o eBay ou o PayPal, onde foi responsável pelas parcerias com marketplaces e grandes empresas. No projeto português que conta com 21 milhões de dólares (cerca de 17,8 milhões de euros) em investimento e que quer ser “o PayPal do blockchain [protocolo que permite transações virtuais sem intermediário e de forma anónima]”, é responsável pelas parcerias globais desde setembro de 2018. A Utrust emprega 49 pessoas nos escritórios de Londres, Suíça, Braga e de Lisboa, e também está incubada na aceleradora norte-americana 500 Startups.
Ao Observador, numa passagem pelo Pixels Camp (organizado pela Bright Pixel), Sanja Kon explicou porque é que é preciso uma camada de centralização sobre a descentralização — esta tecnologia não não é governada ou supervisionada por nenhuma entidade — que tanto caracteriza este tipo de tecnologias: “Acho que a descentralização é um conceito ótimo, contudo, temos de ter alguns intermediários que possam agir se alguma coisa correr mal”. E não tem dúvidas de que o dinheiro vai desaparecer, só não será é para já: “Estamos de certeza a caminhar para nos tornarmos numa sociedade sem dinheiro [físico]”.
Oradora em diversos eventos sobre tecnologia financeira (fintech), é uma mulher num mundo tradicionalmente dominado por homens, mas discriminação só sentiu uma vez: quando começou a trabalhar na Vodafone em Milão. Aos empreendedores e startups portuguesas, deixa um apelo para irem a eventos fora de Portugal, darem mais entrevistas fora de Portugal e abrirem-se para uma rede de contactos diferente, fora de Portugal.
“Somos o PayPal do blockchain”
Estava a trabalhar em gigantes da tecnologia como o eBay e o PayPal. O que a fez mudar para uma startup como a Utrust?
Trabalhei durante 11 anos em organizações grandes — Vodafone, eBay e PayPal — e tem sido uma viagem mesmo muito interessante: muito dinâmica. Contudo, quando estava no PayPal fiquei responsável pelo desenvolvimento de uma plataforma de pagamento para marketplaces e percebi o quão ineficiente era trabalhar numa organização grande, que não consegue escalar rapidamente. E percebi que queria ter uma experiência diferente, numa empresa que consegue ser mesmo rápida e capaz de trazer inovação ao mercado. Foi por isso que me juntei à Utrust. Na verdade, foi um processo bastante aleatório: encontrei a Utrust num dia em que que estava a pesquisar empresas de blockchain focadas em pagamentos. A ideia inicial era mais do género: “Posso ver o que eles estão a fazer e fazer o mesmo no PayPal”. Mas depois percebi que demoraria 10 anos a fazê-lo no PayPal. Entretanto conheci a equipa e o CEO da Utrust e decidimos trabalhar juntos. Fiquei mesmo muito impressionada pelo que estavam a fazer e com a qualidade da equipa e do projeto. E por isso decidi saltar para lá.
Então, foi a Sanja que encontrou a Utrust.
Sim.
E o que é que a atraiu mais no projeto?
Acho que foi aquilo que é o problema dos pagamentos online hoje: são muito caros, sobretudo se estiveres no lugar do vendedor, porque vendes os teus itens e pagas mais em comissões. É muito ineficiente, lento, a percentagem de comissão é muito elevada. E, para mim, ter a oportunidade de trabalhar numa empresa que está focada em pagamentos digitais com recurso a criptomoedas era uma grande meta. A cereja no topo do bolo foi ter ficado muito impressionada com o facto de a Utrust se estar a focar, sobretudo, na proteção dos compradores. Isso impressionou-me muito e foi por isso que decidi trabalhar com eles.
O que é que a impressionou mais no PayPal e no eBay?
Regra geral, as pessoas comparam o eBay com a Amazon, mas são duas coisas completamente diferentes. A Amazon é um retalhista, o eBay é uma plataforma muito humana. Desenvolveram uma tecnologia para ajudar os vendedores, mas não vendem diretamente. Está muito perto dos comerciantes e ajuda-os com uma plataforma. A Amazon é mais ditatorial: se não cumprir com as regras, as pessoas podem estar fora num segundo. Na minha opinião, não está mesmo a ajudar as pequenas e medias empresas a vender. É uma ótima empresa, mas não está a ajudar os vendedores. E foi por isso que adorei trabalhar no eBay. O nosso diretor-geral visitava as casas dos vendedores. E foi ótimo trabalhar no PayPal pelo reconhecimento que a marca tem: não tens de explicar a ninguém quem és, a penetração no mercado é tão grande que toda a gente te conhece.
Como defines de forma simples o que a Utrust faz?
Então… Somos o PayPal do blockchain. É muito simples: tornamos os pagamentos com criptomoedas muito fáceis, seguros e baratos. O que fazemos é permitir a toda a gente comprar com as suas criptomoedas preferidas e convertemos esse pagamento para o vendedor em dinheiro — euros, dólares ou outras moedas — para que o vendedor fique protegido da volatilidade. Mas também protegemos o comprador, ou seja, se alguma coisa correr mal podemos reportar e o comprador é reembolsado, tal como acontece numa plataforma de comércio eletrónico tradicional, como o eBay. Basicamente, replicamos em blockchain os serviços que já temos nos sites de comércio online tradicionais.
E vai ser fácil implementar um sistema destes a nível global?
Nada é fácil e escalar isto até haver uma adesão massiva das pessoas vai levar algum tempo. Primeiro, porque é uma questão de educação. O pagamento em criptomedas e a tecnologia blockchain começaram por ser adotados massivamente em países onde há uma inflação maior ou naqueles cujos governos não sejam de confiança. Aí, as pessoas precisaram de encontrar alternativas. Em países como os nossos, nos quais as moedas são bastante estáveis e os governos também, as pessoas não se estão a questionar sobre as opções de pagamento que têm. Mas com o tempo isso vai acontecer. E os vendedores também vão perceber que podem pagar menos e poupar tempo se aceitarem pagamentos em criptomoedas. Acho que também vamos alcançar uma taxa de adoção massiva [deste tipo de pagamentos] em países como os nossos, é só uma questão de tempo.
O dinheiro físico vai morrer em breve?
Acho que vai morrer, provavelmente não será em breve. Mas estamos de certeza a caminhar para nos tornarmos numa sociedade sem dinheiro [físico]. Há países que já estão a fazer isto, focados nisto e acho que, provavelmente em 10 ou 20 anos, vamos chegar a uma fase em que as pessoas já não vão pagar nada com dinheiro.
Mas ainda existe muita resistência e falta de confiança neste tipo de pagamento. A indústria tem de educar as pessoas?
Sim.
Como?
Na Utrust estamos a fazer parcerias com os grandes players do mercado. Não te posso dar nomes, mas vamos fazer programas educativos em todas as parcerias que assinamos. Vamos às bases de dados de comerciantes e compradores explicar porque devem pagar ou aceitar as criptomoedas como método de pagamento. Um dos nossos parceiros é uma grande plataforma de pagamentos, com mais de 10 mil comerciantes. Temos outra na Alemanha com mais de 25 mil comerciantes. Começar pelos nossos parceiros, fazendo chegar o nosso conteúdo aos vendedores e compradores, é o primeiro passo. Esse conteúdo pode acontecer no formato de um webinar, de um streaming de vídeo ou outro qualquer. Apenas para ajudar as pessoas a perceberem.
Vai ser fácil convencer as pessoas a confiar neste tipo de plataformas?
Isso é exatamente a razão pela qual estamos a criar a Utrust. A Utrust nasceu porque o CEO [Nuno Correia] foi um dos primeiros investidores em bitcoin, tinha muitas [criptomoedas] e queria usá-las. Isto foi há alguns anos. Nessa altura, ele foi a um site e comprou umas férias com bitcoins. Dois dias depois, percebeu que o site era uma fraude e que não tinha ninguém a quem pudesse ligar ou contactar, por causa da descentralização destas plataformas. E essa é a razão pela qual decidiu criar a Utrust: para que não tenhas de ter estes medos de não saber se é seguro ou o que vai acontecer. Porque se alguma coisa acontecer tens alguém a quem ligar. Por isso, isto constrói confiança e vai trazer mais adoção massiva.
E a bolha das bitcoins já acabou? É hora de começar a investir outra vez?
Acho que este ano e provavelmente o próximo vão ser muito importantes. Vão ser cruciais para haver foco nos projetos com boas equipas, um bom produto e futuro, e para limparmos o resto. Provavelmente, por esta altura do próximo ano, vai haver cada vez menos barulho e volatilidade e só os projetos fortes e estáveis vão permanecer. É o que acho.
“Quando tens uma equipa só de homens parece natural não incluir a mulher”
Mencionou um bom produto e uma boa equipa. O que é que na indústria do blockhain é um bom produto e uma boa equipa? Quais são as competências de liderança que é preciso ter? E que características deve ter o produto?
Acho que um bom produto é aquele que tem aplicabilidade real. Nos últimos dois anos vimos muitas pessoas a fazerem ICO [Initial Coin Offering, em inglês, é o termo que refere uma oferta inicial de moedas digitais, operação semelhante à dispersão do capital de uma empresa em bolsa, mas neste caso dispersa em criptomedas], mas nalguns projetos não havia aplicabilidade real. Um bom projeto é um projeto que resolve um problema real. Qual é o problema que podemos resolver na tua plataforma e projeto? A Utrust é uma boa inovação, porque resolve o problema da confiança: faz com que as pessoas tenham confiança nos pagamentos com criptomedas.
Em termos de liderança, é uma combinação de coisas: precisamos de um mix de diversidade em todas as equipas. Estamos numa fase em que cada vez mais pessoas de grandes empresas e indústrias se estão a mudar para a tecnologia blockchain, o que é muito saudável e bom porque vai trazer muita diversidade às equipas.
Falando em diversidade, é mulher num mundo tipicamente masculino. Alguma vez sentiu discriminação por ser mulher? Como tem sido a sua experiência?
A minha experiência tem sido muito difícil nos diferentes países em que trabalhei. O meu primeiro emprego foi na Vodafone, em Itália, e aí trabalhava num departamento que era muito masculino. Às vezes, sentia-me um pouco discriminada e também não era incluída nas conversas que estavam a decorrer, porque quando tens uma equipa só de homens parece mais natural não incluir a mulher. Mas depois, com o tempo, acho que trabalhei em empresas incríveis. O eBay e o PayPal eram empresas onde a diversidade era mesmo um problema que estavam a tentar resolver e havia um maior nível de atenção nas proporções entre homens e mulheres em todos os cargos. Nestas empresas nunca me senti discriminada. Mas nas startups de tecnologia financeira, no geral… Hoje, estava a ler de manhã que apenas 5% dos CEO das fintech são mulheres. Às vezes, estou em eventos como oradora e olho para o lado e percebo que sou a única mulher. Não consigo explicar porque é que isto acontece, mas é algo que precisa de ser resolvido.
Como? O que está a faltar para captar a atenção das mulheres?
Uma das coisa que tenho visto desde que estou a morar no Reino Unido é que há uma atenção particular à percentagem feminina de oradores em eventos, por exemplo. Prestam atenção ao número de mulheres que falam e é preciso um equilíbrio. Cada empresa ou organizador deste tipo de eventos precisa de prestar atenção e tentar convidar mais mulheres, fazer com que se sintam bem-vindas. Acho que o blockchain é o ambiente perfeito por causa desta descentralização. Uma das formas de trabalho que temos na Utrust é a remota, é muito flexível. Para uma mulher com família e crianças, que queira ter um equilíbrio entre a vida familiar e a profissional, é mais fácil assim do que se estiver inserida num ambiente muito corporativo. Acho que precisamos de promover isso para atrair mulheres.
Também se devia apostar na educação das crianças?
Estava a falar sobre isto ontem. Se olharmos para as estatísticas e percentagens de homens e mulheres que estudam engenharia ou ciências de computação, percebes que é mais ou menos 50-50. Existe um interesse das mulheres pelo assunto, mas depois, por algum motivo, com o tempo, as mulheres em papéis de liderança começam a descer. E acho que isto está relacionado com o facto de, infelizmente, ainda ser a mulher o membro que tem mais responsabilidades na família. Infelizmente, ainda vivemos neste tipo de ambiente. Por isso, acho que se as empresas derem mais flexibilidade aos colaboradores, isso vai fazer com que as mulheres se mantenham mais no mercado de trabalho. Acho que é um dos primeiros problemas e, infelizmente, ninguém fala sobre ele. Mas é a realidade.
Muda-se isto com mais exemplos de mulheres em cargos de liderança?
A CEO do eBay para Itália e Espanha é mulher e é a única pessoa que trabalha na família. O marido foi para Milão e é ele quem fica com os filhos e isso é uma coisa perfeitamente normal. Empresas como a Google, Facebook ou eBay também estão a tentar promover este tipo de exemplos. Talvez seja um extremo, mas precisamos de promover mais role models que sejam iguais em homens e mulheres, que tenham responsabilidades iguais, que tenham opções iguais. Acho que há grandes role models, só é preciso trazê-los à superfície e mostrar às pessoas que é possível fazer outras coisas.
A Sanja sentiu que houve algo mais difícil na sua carreira por ser mulher?
Aconteceu algumas vezes, sobretudo no mercado italiano, porque também pareci sempre mais nova do que a idade que tenho. A perceção que as pessoas têm de mim antes de começar a falar é diferente da que têm depois. Então, é do género: “É mulher e é nova, o que é que me vai dizer?”. Mas também acho que há este preconceito sobre as mulheres mais jovens e precisamos de mudar isso também.
A imagem pode ser um obstáculo?
Sim, acho que sim.
“A descentralização por si própria não funciona”
O blockchain vai ser mesmo o futuro da Internet?
Sim, acho que precisamos de diferenciar o blockchain das criptomoedas, porque são duas coisas diferentes. Mas o blockchain enquanto tecnologia tem potencial para irromper muitas indústrias, não apenas a dos pagamentos, mas dos cuidados de saúde, educação, estatais, todas as indústrias. Isso vai acontecer de certeza. Quanto às criptomoedas, ainda não estamos numa fase de adoção massiva, mas há moedas estáveis a chegar ao mercado para evitar problemas de volatilidade. As pessoas vão usar cada vez mais a tecnologia das criptomoedas.
Quanto tempo vai demorar até termos o blockchain totalmente integrado na sociedade?
Acho que entre 5 e 10 anos, dependendo do país.
E os perigos da descentralização [não há supervisão ou governo sobre este tipo de tecnologia], do roubo de identidades? Como garantem às pessoas que não vão ter problemas?
O que acho, e isto é a minha opinião pessoal, é que a descentralização por si própria não funciona. É preciso haver uma camada de controlo, uma centralização no topo da descentralização. É exatamente isso que fazemos na Utrust: somos um sistema de centralização, porque tens pessoas que estão a ver as transações e a certificarem-se de que acontecem e sabem que, se alguma coisa acontece ou corre mal, nós podemos intervir. Acho que a descentralização é um conceito ótimo, contudo, temos de ter alguns intermediários que possam agir se alguma coisa correr mal. Acho que as empresas vão perceber isto e vamos acabar por ter uma rede descentralizada com alguns níveis de controlo.
Portanto, os humanos ainda vão ser precisos?
Sim, sim, tenho a certeza. Provavelmente, vamos ser mais livres para fazer mais coisas por causa do blockchain, porque muitos processos vão ser automatizados, alguns intermediários vão deixar de ser precisos, mas vão ser precisos, sem dúvida.
E o que acha do ecossistema de startups português?
É incrível. Antes de me ter juntado à Utrust, não fazia ideia, mas fiquei impressionada com o número de empresas tecnológicas, de fintech que nasceram em Portugal Na equipa de liderança da Utrust, sou a única mulher mas a equipa é fenomenal, não me sinto diferente de ninguém. Temos programadores ótimos: mais de 65% da equipa é composta por programadores. E é impressionante. Não sabia que as universidades em Portugal eram tão boas, sobretudo a nível técnico. Acho que Portugal tem pessoas com um perfil altamente qualificado, mas isso não é conhecido lá fora. E fiquei surpreendida.
Podemos mesmo ser o próximo hotspot da tecnologia na Europa?
Acho que podem ser, mas precisam de se promover mais.
Como?
Indo a eventos fora de Portugal, dando mais entrevistas fora de Portugal, abrindo-se para uma rede de contactos diferente, fora de Portugal. A Utrust participa em 40 eventos por ano em diferentes países, porque não quer ser entendida como uma empresa portuguesa, mas como uma empresa global.