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O bispo de Setúbal, D. José Ornelas, é o novo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O bispo de Setúbal, D. José Ornelas, é o novo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

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D. José Ornelas, novo presidente da Conferência Episcopal. "A Igreja identificar-se com um partido? Isso não existe"

Em entrevista, o recém-eleito presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, fala sobre as suas ideias para a Igreja em Portugal e critica políticos que aproveitam a religião para se promoverem

Da mesma forma que, em 2013, o cardeal argentino Jorge Bergoglio já tinha um bilhete de regresso de Roma para Buenos Aires, que nunca chegou a usar, o bispo de Setúbal, D. José Ornelas, não imaginaria que voltaria de Fátima, na semana passada, com o cargo de presidente da Conferência Episcopal Portuguesa — o órgão máximo da hierarquia da Igreja Católica em Portugal, que reúne todos os bispos do país. Após dois mandatos de três anos, o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, deixou o cargo e é sucedido por um dos bispos mais recentes do país: Ornelas é bispo desde 2015, ano em que foi enviado pelo Papa Francisco para Portugal após mais de uma década em Roma como superior geral da congregação dos padres dehonianos, de que faz parte.

D. José Ornelas é o novo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

Em entrevista ao Observador, o novo presidente da Conferência Episcopal fala das suas prioridades para o mandato que agora começa — a defesa da vida, sobretudo em plena discussão sobre a eutanásia, vai continuar na agenda, mas o bispo quer que a intervenção da Igreja não se limite aos assuntos clássicos e destaca a importância de trazer para o debate público os temas sociais. Porém, rejeita as críticas frequentemente apontadas relativamente à ineficácia da própria Conferência Episcopal e diz que não pretende que o organismo tenha poder executivo nem autoridade sobre os bispos de cada uma das vinte dioceses católicas portuguesas.

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D. José Ornelas deixa ainda críticas aos líderes políticos que usam a religião como forma de autopromoção — como Trump e as fotografias em igrejas ou André Ventura e a influência de Fátima na sua vida política. Um ano depois da grande cimeira internacional no Vaticano sobre os abusos sexuais de menores na Igreja, e numa altura em que todas as dioceses portuguesas já criaram comissões específicas para a proteção dos menores e das pessoas vulneráveis, o novo presidente da Conferência Episcopal diz-se confiante no funcionamento destas estruturas: embora viradas para a prevenção, garante que nenhuma denúncia ficará por ouvir nem por comunicar à polícia.

[Veja o vídeo com o essencial da entrevista a D. José Ornelas:]

Tem um perfil muito diferente do seu antecessor — tem um percurso enquanto bispo mais curto, mas em contrapartida uma grande experiência internacional. Quais são as suas grandes prioridades para este mandato à frente da Conferência Episcopal, o que quer fazer de diferente?
Na Conferência Episcopal, não se chega com um programa, até porque eu não estava nada esperando ser eleito presidente da conferência. Portanto, não levava um programa. Esse programa nós vamos fazê-lo juntos, até porque a função de uma conferência episcopal e do presidente da conferência não é propriamente uma função executiva dentro da Igreja portuguesa. Eu sou o presidente da conferência, e é como conferência que os bispos têm um papel de dar orientações para a Igreja em Portugal, mas, mais do que orientações, o seu papel é o de coordenar colegialmente a responsabilidade desta Igreja em Portugal, de dar as orientações pastorais necessárias, que são concordadas juntos. Portanto, o programa há de ser da conferência e, para já, não é um programa que se inventa agora. Falou de dois perfis diferentes, mas o D. Manuel e eu fomos colegas da Universidade Católica.

Falo do percurso depois.
Depois os percursos são diferentes e isso é muito bom, porque assim a gente completa-se também com o percurso social, formativo e eclesial que cada um vai tendo. Agora, linhas que são importantes, nós fomos também fazendo. Eu fazia parte do Conselho Permanente da conferência presidida pelo D. Manuel e posso dizer-lhe que há sintonia em termos de valores e de objetivos fundamentais, estamos todos de acordo. Agora, a forma depois de atualizá-los e o estilo de cada um pode ser diferente. E é bom que seja assim.

Os bispos portugueses agora entenderam que o D. José era a figura adequada para o fazer neste período.
A gente diz que cada um vai à missa com o fato que tem, não é? Se me pediram isto, eu vou fazer o melhor que possa.

Antes de vir para Setúbal, em 2015, tinha passado mais de uma década em Roma à frente de uma congregação.
Sim, 12 anos na congregação. A maioria das congregações é assim. Nós temos mandatos de seis anos e eu fiz dois mandatos. Foi no fim desse mandato que fui nomeado bispo.

"Isto não é uma questão de poderes. Isto é uma questão de servir o melhor possível a ligação e a vida das nossas Igrejas em Portugal"

Durante o seu percurso enquanto padre e superior da congregação, teve uma grande experiência internacional, participou na vivência desta congregação que tem um espírito missionário muito relevante por todo o mundo. Depois, houve o tempo que passou em Roma, o epicentro da Igreja Católica. Como é que a Conferência Episcopal e a Igreja Católica em Portugal podem beneficiar dessa sua visão mais internacional?
Nós temos outras pessoas com grande experiência internacional, seja no clero dos bispos provenientes das dioceses, seja de congregações religiosas. É evidente que, para mim, pessoalmente, foi um dom muito grande, seja a experiência em Roma, junto com as outras congregações religiosas, o centro da vida da Igreja Católica, mas também na experiência pelo mundo inteiro. Isso sim, é uma das experiências que eu retenho como das mais preciosas da minha vida, e isso também me dá logo uma perspectiva de olhar a Igreja. Uma Igreja que está presente em tantas e tantas nações e culturas, exprimindo-se de modos diferentes, acho que ao mesmo tempo não deixa de ser a mesma Igreja.

Há uma crítica antiga à Conferência Episcopal, que nestes momentos surge novamente: não tem um poder de governo sobre os bispos, não tem uma autoridade executiva.
O direito canónico pede à conferência episcopal que dê normas de acordo, orientações. Por exemplo, agora vão sair novas missais para cuidar da vida litúrgica e dar orientações práticas, e isso é da Conferência Episcopal. Mas é a conferência, no seu conjunto, que se põe de acordo sobre isso. Não é um poder executivo que tem. Isto não é uma questão de poderes. Isto é uma questão de servir o melhor possível a ligação e a vida das nossas Igrejas em Portugal.

Era menos pela lógica do poder e mais pela lógica da voz, de haver uma voz una da Igreja em Portugal. Muitas vezes, quando os jornalistas procuram ouvir a Igreja Católica, ouvem muitas vezes o argumento de que “não há uma Igreja, há vinte”, porque em cada diocese cada bispo tem autoridade e toma as suas decisões. Concorda que às vezes falta uma voz central à Igreja Católica em Portugal?
Também é preciso que as vozes sejam escutadas, porque na realidade o que acontece é que há realidades, há assuntos de caráter geral da Igreja, e compete a quem preside falar deles. E veja que nós temos sempre o diálogo com a imprensa, de todas as reuniões saem comunicados. Só estou aqui há cinco anos, mas olhe que a Igreja não tem tido falta de pronunciamentos sobre a realidade, seja da realidade social, seja da realidade eclesial. Agora, pode estar mais bem organizada? Isto é, realmente, uma das coisas que já estavam em cima da mesa nestes últimos tempos e que, certamente, merece uma atenção maior.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Acha que há momentos em que a Conferência Episcopal devia ter mais autoridade sobre os bispos? Estou a lembrar-me concretamente da questão dos abusos sexuais: vários bispos portugueses discordaram publicamente sobre a necessidade de criar ou não comissões de acompanhamento. Agora com a pandemia nem todos os bispos estiveram imediatamente de acordo sobre suspender as missas e fechar as igrejas. O facto de não haver uma voz de autoridade a nível central na Igreja pode dar a ideia de que os bispo às vezes não se entendem?
A primeira questão é a dos abusos. Não está minimamente em causa toda a política que se tinha sobre isto. Desde 2012 que a Conferência Episcopal Portuguesa tem orientações muito claras sobre este tema. Agora, a questão concreta de formar uma comissão é uma determinação da Igreja em geral, mas o problema também foi de linguagem. O que se disse, analisando muitos dos pronunciamentos, é que “nós temos orientações para isto”. De qualquer forma, as comissões são dentro da diocese. O que se passa em cada nível diocesano é da dependência do bispo, e o bispo já tinha comissões destas, só que não tinha uma nomeação formal. “Vamos formar uma comissão porquê?” Além disso, do ponto de vista de investigação, estas comissões não têm um poder investigativo real e próprio, porque eu, por exemplo, não posso convocar ninguém para depor. Não tenho autoridade civil para isso. Daí que, também, as investigações a fazer devem ser feitas dentro. Estas comissões não têm um caráter judicial para julgar quem quer que seja. Do ponto de vista canónico, por exemplo, se mete uma pessoa do clero, isto também tem um processo canónico. Agora, do ponto de vista da responsabilidade civil, nós não temos capacidade nem competência para sermos nós a julgar.

Portanto concorda que a Igreja, quando se depara com um caso de abuso sexual, deve reportá-lo às autoridades civis?
Isso está nas nossas normas…

Não foi unânime durante muito tempo.
Não, mas toda a sociedade aprendeu muito, e de uma forma por vezes dramática, sobre isto. Isto é uma consciência. Mesmo a nível recente e mesmo a nível cultural, ainda vamos devagar. Agora, estas comissões, uma das primeiras funções que têm é que, antes de mais, eles são de proteção de menores. Isto é, criar uma cultura na Igreja — e a partir da Igreja nas instituições que dela dependem e para a sociedade — de defesa e de segurança para as nossas crianças, para os nossos jovens e para as pessoas em qualquer forma de fragilidade.

No ano passado, uma das coisas que mais saltaram à vista foi uma recusa liminar da Conferência Episcopal em fazer uma coisa que foi feita noutros países, uma investigação para trás, para o passado, para as últimas décadas, para tentar perceber qual era a realidade dos abusos na Igreja em Portugal.
Essas coisas foram feitas e agora estão aí as comissões, que podem ajudar nesse sentido, para que toda a gente tenha a liberdade de falar. Mas isso está claro e não creio que alguém tenha chegado recentemente, à luz destas orientações, a uma diocese a fazer uma denúncia e não tenha sido acolhido.

"Do ponto de vista canónico, por exemplo, se mete uma pessoa do clero, isto também tem um processo canónico. Agora, do ponto de vista da responsabilidade civil, nós não temos capacidade nem competência para sermos nós a julgar"

Mas a minha pergunta é mais do que estar aberto a receber denúncias. É ativamente fazer como foi feito na Alemanha, por exemplo, uma investigação grande, um relatório…
Na Alemanha — conheço o processo, até na minha própria congregação —, o que fizeram foi formar uma comissão que fosse capaz de acolher as pessoas que tivessem alguma denúncia para fazer. E isso foi muito, muito útil. É natural que aqui apareçam. Mesmo isto, ir à procura, investigar no diz-que-disse… Mas, depois, confrontar pessoas e a disponibilidade das pessoas para falarem disso, é algo que eu não posso dizer: as comissões podem ajudar também nesse sentido. Agora, a sua principal questão não é simplesmente ir atrás dos desastres que acontecem, mas prevenir esses desastres. E criar uma profilaxia e formação de pessoas e de mentalidades de tal maneira que se erradique o mais possível isso dentro da sociedade. É claro que nós todos queremos evitá-la. Não vamos conseguir totalmente, nem ninguém vai prometer. Mas são muito claras as orientações que nós temos sobre tudo isto.

Por exemplo, a Universidade Gregoriana tem um curso para prevenção, para sensibilizar as pessoas do clero. Portugal pretende mandar alguém fazer esse curso?
Nós temos isso. Normalmente está inserido não só em especialidades próprias, mas dentro de outros cursos que se fazem lá, com uma orientação e especialização nisso. Por exemplo, do ponto de vista canónico, há especializações diretas sobre isso. Depois, isto é muito pluridisciplinar, como são estas comissões que se estavam a formar. Têm gente da área jurídica, têm gente da área psicológica, psiquiátrica, médica, etc. Portanto, esta pluridisciplinariedade é importante. Também os cursos, não há um curso propriamente sobre isto, mas a confluência de saberes que são postos ao serviço desta causa.

Depois de ter sido eleito, nas primeiras declarações à Ecclesia, reforçou que o grupo dos bispos devia ser um “sinal de união da Igreja”. Foi esta a expressão que usou. Neste contexto da pandemia, parece ter surgido de forma muito evidente uma certa desunião dentro da Igreja, entre grupos mais conservadores e grupos mais progressistas, se quisermos usar estas etiquetas. Por exemplo quando começaram a surgir petições contra a suspensão das missas, depois na questão da comunhão nas mãos. Existe um problema para lidar com esta ala mais tradicionalista da Igreja e a pandemia agravou-o?
Para dizer a verdade, ao chegar aqui, e também do conhecimento que tinha fora, não alinho nem pouco nem muito com essa leitura. Os bispos, e eu tenho repetido isto, não são simplesmente para fazer de conta ou tapar o que quer que seja. Nós discutimos e discutimos tudo abertamente, e as linhas de orientação gerais são muito claras. Agora, se me diz que todos estamos de acordo sobre os pormenores disto e daquilo, não é preciso que estejamos.

Não falo de desunião entre os bispos, porque sobre isso parece unânime, mas entre os fiéis.
Se isto é verdade entre os bispos, que temos uma união, de facto, podemos é não ter tempo e capacidade de organizar depois a resposta mais coordenada a isto. Isto tem de ser trabalhado. Mas isso em qualquer sociedade tem de ser assim e vivemos num mundo novo, que impõe desafios novos e encontrar respostas adequadas para isso. Temos de ir à procura todos. Aqueles que já souberem tudo são os que mais se enganam. Agora, do ponto de vista da Igreja, é muito natural que haja alguém que está mais ligado, por tradição, por sensibilidade, a um tipo de manifestações eclesiais, porque um gosta da missa mais assim ou mais assado, porque um gosta mais do gregoriano. Eu gosto muito do gregoriano, mas gosto também da música de violas e tambores. Mas pode haver pessoas que têm perspetivas diferentes e isso não é mau.

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Não o preocupa uma certa rigidez?
A rigidez desfaz-se dentro do conjunto de caminhos que vamos procurando encontrar. Nós temos de ter, por um lado, a liberdade de nos sentirmos livres de procurar. Quando eu já soubesse tudo, estaria fossilizado.

Qual a sua perspetiva sobre os fenómenos crescentes — em alguns sítios já bastante assentes — de líderes políticos populistas e de extrema-direita na Europa, nos Estados Unidos e também em Portugal? Isto preocupa a Igreja Católica?
Acho que preocupa qualquer ser humano, neste sentido — e também aí sem demonizar nada: é uma tentação, e isto não é de agora. Quando a gente começa a constatar exageros, por exemplo, mesmo agora recentemente, o desconfinamento que levou a exageros de quem se encontra de novo na rua e agora parece que tudo voltou a dantes, então agora é preciso uma mão forte. E é preciso, e será necessário também, mas é necessário que a mão forte não dê cabo da vida e das coisas. Que, por um lado, tenhamos responsabilidade com a saúde e que depois sejamos capazes de encontrar também soluções para que não se morra da cura. Agora, há muita gente a aproveitar isto. E a facilidade de fazer isso também depende das próprias instituições. As instituições, tantas vezes, se não criam um clima de liberdade e de dignidade para as pessoas, o que acontece é que vamos ter anticorpos, que vão reagir contra esta situação. Pode ser por via de uma manifestação cultural própria, por exemplo em relação aos nacionalismos: eu gosto de ser português e não gosto que me enxovalhem por isso. Eu gosto da minha terra, gosto da minha pátria, etc. Mas aprendi também que a minha pátria não é tudo. Que existem outras pátrias e que este mundo é cada vez mais a tal aldeia comum.

Preocupa-o que alguns desses líderes políticos se apoiem muitas vezes na sua própria dimensão religiosa? Por exemplo, Donald Trump foi tirar uma fotografia numa igreja durante as manifestações nos Estados Unidos. André Ventura, em Portugal, diz que a sua missão política está “profundamente ligada” a Fátima. Isto é um aproveitamento da sensibilidade religiosa?
São problemas dele. Para fazer com que alguém diga isto, “eu sou a emanação de…”, o partido da Igreja, isso não existe. A própria noção da Igreja no Vaticano II é de diálogo. Nós temos uma visão própria que tem uma vertente política. Agora, a Igreja identificar-se com um partido, não existe. Essa tentação de querer identificar é má, porque a própria definição da Igreja, da relação entre a Igreja e o mundo no Vaticano II é muito clara, mas também na Bíblia, ao dizer que Deus está acima das realizações humanas. Mesmo quando se fala do Reino de Deus, qualquer realização humana disto é sempre uma aproximação ao ideal que está sempre à nossa frente. Essa identificação é completamente descabida. Agora que as pessoas, sejam de qualquer espaço do espectro político, que se inspirem naquilo em que creem, nos valores em que creem, ou como os interpretam, isso é mais que normal e eu espero que seja assim.

Mas preocupa-o que isto possa ser, de alguma forma, visto como um aproveitamento da sensibilidade religiosa dos portugueses?
Há muita manipulação da atividade religiosa. Por exemplo, na questão da violência de tipo religioso, em que se invoca Deus para atos de violência, até de morte, e de afirmação de uma ideologia e pelos meios da violência. É interessante que também os líderes religiosos — e o Papa — têm estado muitas vezes no centro de uma busca de condenação da violência como aquilo que mais contradiz uma inspiração religiosa. Porque Deus não se defende com a violência. E qualquer que seja uma atitude destas — a violência não é simplesmente a violência da guerra e da morte, mas é a violência também da manipulação da informação, a violência de pôr Deus ao nosso serviço. Quando eu me ponho numa atitude dessas de manipulação da informação, estou a colocar-me eu no lugar de Deus. Não estou a aceitar Deus como aquele que está acima de mim, estou a colocar é Deus ao meu serviço.

Falava antes da necessidade de os católicos se basearem naquilo em que acreditam para a sua intervenção pública e política. Na primeira conferência de imprensa, logo depois de ser eleito, colocou entre as suas prioridades as questões da defesa da vida. Agora, concretamente, existe a questão da eutanásia, que é o debate que ainda temos agora em curso. O texto final da lei está adiado para a última metade do ano e entretanto entrou no Parlamento a petição da Federação Portuguesa pela Vida, com 95 mil assinaturas, para que seja feito um referendo. A Igreja vai manter-se ativa neste debate sobre a eutanásia?
Para nós isto é muito claro. A vida é inviolável desde a sua concepção até à morte. Isso é muito claro e não está minimamente em discussão. O que é que significa a vida em todas as suas vertentes? É importante, não é simplesmente a questão do aborto. É a questão do aborto, mas a questão de dar dignidade às pessoas em todas as etapas da sua vida. Na fragilidade da doença, que tantas vezes leva as pessoas a perderem o gosto de viver. E aí entra toda a própria sociedade, entra a motivação da pessoa, entram os seus valores sociais, valores humanos, religiosos etc. Tudo isso tem o seu lugar. E a Igreja Católica nunca vai abdicar desses valores. Em diálogo com os outros. Eu respeito outras posições, mas o meu contributo para uma sociedade que se quer humanista e humanizadora é uma defesa constante da vida.

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Portanto, a Igreja vai manter um papel ativo neste debate.
Não tenho a mínima dúvida. Não é uma coisa que muda com os tempos. A manifestação e a forma de mostrar ativamente esse interesse pela vida pode mudar com os tempos, e temos problemas, não é só a questão do aborto e da eutanásia. O problema é que nós temos hoje questões muito sérias para discutir, a nível da genética e da intervenção sobre o ser humano, que preocupam qualquer pessoa, a começar pelos próprios cientistas. A capacidade que a gente tem de influenciar as pessoas sem elas saberem, desde o controlo visual, social, até às pedras básicas do seu comportamento, e a nível de neurónios, que que nos abrem para perspetivas que podem ser muito muito interessantes, mas também preocupantes.

Preocupa-o uma sociedade com uma dimensão tecnológica descontrolada?
Preocupa me os aprendizes de feiticeiro que se colocam precisamente no lugar da pessoa e que vão decidir por ela. Aqui, coloco-me, com muita humildade, a partir daquilo que eu creio e dos meus valores, mas com muita humildade, junto daqueles que honestamente buscam uma forma correta de lidar com todos estes instrumentos. Nós temos um progresso científico e tecnológico enorme, que não tem sido acompanhado, nem a nível normativo nem a nível ético, por uma reflexão aturada e que tome responsabilidade disto, para dizer “nós queremos uma humanidade assim e não nos deixamos levar simplesmente por aquilo que é possível”

Está aí uma oportunidade para a Igreja promover esse debate?
Acho que isso é importante. A Igreja, a ciência, a política e o sistema jurídico. Nós temos de ter responsabilidade. Mas isto é a todos os níveis, é a nível da genética e da microbiologia, mas é também da economia. Por exemplo, nós globalizámos a economia mas não globalizámos a ética económica, nem sequer globalizámos a justiça económica, de tal maneira que o que nós globalizámos foi a capacidade de intervenção daqueles que já tinham o poder e a capacidade de enriquecer à custa dos outros. O facto é que, se é verdade que a economia e a globalização de facto contribuíram para diminuir a pobreza a nível mundial, fizeram-se progressos sem dúvida, também se globalizou uma vertente em que os mais pobres não têm voz. Por outro lado, é verdade que as tendências de regionalizar e nacionalizar as questões económicas — veja-se as lutas pelo novo confinamento do comércio —, o que é que dizem? Quando eu começo a dizer “a minha nação primeiro”, e sobretudo quando isso vem da parte de nações ou grupos de nações que têm uma preponderância económica muito grande, estou a distorcer tudo e estou a dizer que os outros são aqueles que estão ao serviço da minha grandeza.

Deixe-me recuar ainda para a questão da eutanásia e do aborto. Não acha que o facto de a Igreja colocar nestes poucos temas praticamente toda a sua intervenção de maior expressividade no espaço público pode deixar os católicos com a sensação de que estes são os únicos temas em que se justifica uma intervenção pública?
Mas isso é mais a visão que os jornalistas dão da Igreja, porque a Igreja tem feito mesmo intervenções constantemente, daquilo que eu disse da minha experiência nestes anos. A Igreja tem feito intervenções sobre variadíssimos temas da sociedade e da própria Igreja, no campo social, também no campo político. Estes são pilares que nem sequer são aquelas que a Igreja foi buscar. É claro que quando há uma lei destas nós temos a nossa visão e afirmamo-la. No respeito à autonomia dos que pensam diferente, mas temos a nossa visão sobre isso. Não concordo minimamente que estes sejam os tópicos de interesse da Igreja. Estes são quadros, do ponto de vista de referencial, e é por isso que eu mudei para outros temas. Porquê? Porque, para mim, a defesa da vida não está simplesmente destes dois extremos. Toda a justiça social no meio é fundamental. Tantas vezes a gente faz a defesa do princípio e do fim, mas depois acaba, no meio, por permitir toda a injustiça que leva à despersonalização das pessoas. A tal que o Papa Francisco diz de uma economia que mata, de uma política que discrimina. A mesma coisa que acontece com o aborto… Com os imigrantes, quando eu proíbo até que sejam socorridos pelos barcos que os vão salvar de morrer afogados, isto é um aborto para adultos, ou para crianças recém-nascidas.

A eleição do bispo de Setúbal para líder da Conferência Episcopal pode ajudar a pôr estes temas mais na agenda da Igreja? Durante a pandemia falou sobre as condições em que vivem as pessoas no bairro da Jamaica, que faz parte da sua diocese, esteve ao lado dos estivadores do porto de Setúbal, historicamente já tem um antecessor muito ligado à defesa dos direitos dos trabalhadores. Isto pode dar uma nova força a estas preocupações sociais da Igreja?
Do ponto de vista factual, temos a nossa história em Setúbal, também das sucessivas crises que a península foi sofrendo nestes últimos decénios, desde a década de 70, 80, quando chegou o D. Manuel [Martins], etc. Penso que não é simplesmente de Setúbal. A gente também cria, às vezes, clichés, que são importantes. A península de Setúbal, até pela concentração de imigração, primeiro dentro do país e agora de fora, é um espelho daquilo que se passa também noutros sítios. Mas eu vivi sempre em Lisboa e ouvia falar de Setúbal, mas não precisava de vir a Setúbal para ver esses contrastes sociais. Nos anos 70, havia toda a barracópolis que à volta de Lisboa e à volta do Porto, e a Igreja não esteve a dormir também ali. Aliás, quando era jovem, tinha 20 anos, dava aulas de alfabetização nas barracas. Nós estamos aí para isso, e vamos continuar. Muitas vezes, este é um trabalho que não vem nos meios de comunicação. Quando falo, o meu problema não é pôr a Igreja em bicos de pés. É chamar a atenção para a necessidade de estes problemas serem resolvidos, porque senão é a tal coisa que eu tenho repetido: a miséria sai-nos muito caro.

A sua diocese acaba por ser um microcosmos com muitos exemplos de problemas sociais que podem ajudá-lo a pôr estas questões na agenda.
Não tenho dúvida de que continua a ser. Nós temos uma comissão, temos departamentos próprios a que chamamos comissões dentro da conferência, e estes temas estão constantemente a ser debatidos. Não há reunião da Conferência Episcopal em que estes temas não estejam em cima da mesa. Depois, há a articulação entre as análises e as respostas — veja o papel da Cáritas a nível nacional, também nas emergências que surgiram, de incêndios e de desastres desastres naturais e assistência, e aquele de que não se fala todos os dias, que é a assistência precisamente às pessoas que precisam. Para nós, dentro da filosofia do Evangelho, é assim: a gente trabalha a nível espiritual e as pessoas transformadas transformam o mundo. É a lei básica do cristianismo: quem não ama o irmão que vê, é inútil que fale do amor de Deus que não vê. A transformação e o testemunho de que eu amo a Deus é se realmente ajudo a transformar este mundo e a torná-lo melhor, e é ir sobretudo ao encontro das pessoas que precisam. Isto é a lei básica do cristianismo e sempre foi.

Na assembleia plenária que o elegeu como presidente da Conferência Episcopal, fizeram uma reflexão sobre o futuro depois desta pandemia. Um dos pontos diz que não se pode fazer da exceção regra. O que é que aprendemos com esta pandemia, o que é pode ficar depois e o que é que não pode ficar?
Penso que a sociedade toda aprendeu uma coisa, e este mundo está aprendendo, se é que aprende. Tornou-se evidente que o problema do futuro não é um problema simplesmente nem de uma família ou de uma pessoa, mas o problema é que cada pessoa colabora para esse futuro e esse futuro só é possível em conjunto. E também a nível mundial. O vírus surgiu na China, mas rapidamente se tornou o vírus comum a todos. É importante que esta solução não seja simplesmente para aqueles mais dotados de capacidade de chegar mais rapidamente às vacinas ou o que quer que seja. A nível europeu, o que está em cima da mesa é saber se a Europa é simplesmente uma Europa do salve-se quem puder, ou se nós temos uma situação para dizer que se alguém na Europa sofreu particularmente a nível de saúde e a nível económico com este vírus, isto tem de ser tem de ter uma resposta de todos, porque senão todos também vão sofrer com isto.

"Temos de aprender que uma sociedade saudável e uma sociedade com meios mínimos de dignidade, de salubridade e de educação é fundamental para que tenhamos uma sociedade a funcionar."

Durante o período do confinamento o que é que aprendemos o que é que podemos levar para o futuro?
Muita coisa. Da minha experiência vejo muitas coisas. A primeira é essa: não deixar ninguém infectado abandonado. Não deixar uma criança sem computador em casa e dizer-lhe “vais ter telescola”. Não vai funcionar. Nós temos de ter meios de chegar às pessoas com coerência e criar a tal integração. Falar da integração nas últimas semanas, falar da situação das pessoas vulneráveis, vulneráveis não pela saúde em si mas vulneráveis em termos de habitação, em termos de transportes, em termos de meios higiénicos, levou a uma contaminação que depois passa para todos. Temos de aprender que uma sociedade saudável e uma sociedade com meios mínimos de dignidade, de salubridade e de educação é fundamental para que tenhamos uma sociedade a funcionar.

Como é que avalia a forma como Portugal está a gerir esta resposta à pandemia? Dizia que a questão de mandar as crianças para casa sem computador, só com a telescola, não vai funcionar. Parece-lhe que faz sentido o processo de desconfinamento não incluir as escolas, que ficam fechadas até ao fim do ano?
É uma pergunta mais técnica do que de desejos. Todos estamos a favor de que as crianças vão para a escola. Por outro lado, vão à escola em condições? E que condições é que a gente consegue garantir às crianças para que o vírus não se transmita, porque se transmite, que o tragam de casa… Nenhum Governo tem soluções perfeitas para isto. Mesmo no desconfinamento que se está a fazer houve exageros — porque há muitas coisas que eram evitáveis se as pessoas tivessem responsabilidade. Até porque isto não vai ser uma coisa fácil e rápida. É importante que aliemos a responsabilidade com a coragem de criar condições para que todos possam ter o necessário e ter trabalho, porque isto que agora vem aí vai ser uma coisa muito complicada. Por outro lado, se não tivermos saúde as outras dimensões param. Acho que Portugal tem feito um caminho interessante, e já se esperava que este período de desconfinamento fosse mais complicado. Acho que, cientificamente — pelo menos aquilo que me é dado a conhecer, mas deixo isso aos responsáveis e técnicos — o esforço que se está a fazer em termos de detecção, em termos de seguir o rasto do vírus, etc., é a forma certa e inteligente de lidar com um problema que não é de modo nenhum fácil. E todos temos de ser responsáveis, assumir a responsabilidade nisso.

Há o risco, há a grande preocupação de que na sequência da pandemia venham a aumentar os níveis de pobreza em Portugal. A Igreja vai novamente ter de estar preparada para dar uma resposta?
Cada um faz o que pode agora e vamos fazer isso. Não tenho dúvida. Agora, vamos estar lá onde for preciso e com os meios que temos à disposição, e partilhando aquilo que temos. Nós também na Igreja sofremos isso. As nossas comunidades vivem da contribuição das pessoas, e as pessoas não apareceram na Igreja nestes momentos, portanto é ali que se faz a partilha. Para nós, as igrejas não são simplesmente um lugar onde se vai rezar. É onde fundamentalmente nos encontramos, e encontramo-nos para encontrar Deus, que é nosso pai — e Deus, sendo nosso pai, ensinou-nos a sermos irmãos e irmãs.

[Veja aqui o vídeo da entrevista na íntegra]

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