O debate era preparatório para o Conselho Europeu, mas a última presença de António Costa no Parlamento transformou-o numa despedida, num momento para a direita voltar a atacar a geringonça (e a forma como o PS chegou ao poder em 2015) e no espaço por excelência para o primeiro-ministro demissionário mostrar que ainda está por cá e a participar ativamente na pré-campanha. No fim, despediu-se com a certeza de que “se alguém o melindrou” no Parlamento, já esqueceu — e de que o PS vai vencer as eleições de 10 de março de 2024.
Foi numa resposta à deputada comunista Paula Santos — que comparou as políticas socialistas ao PSD, CDS, IL e Chega — que António Costa mostrou que, apesar de não ser candidato a primeiro-ministro, está longe de se querer manter à distância daquela que será uma disputa entre um dos seus herdeiros e um PSD que quer, a todo o custo, recuperar o poder. O ainda primeiro-ministro recordou que o PCP fez parte da história que, nos últimos anos, em particular nos tempos da geringonça, permitiu “o aumento do salário mínimo, do salário médio, da reposição de pensões e aumento de pensões acima da inflação” e pediu que à esquerda se acertem agulhas e se redefinam os inimigos.
Apontando como um “grande erro para o PCP e para a esquerda portuguesa” comparar o PS com a direita, António Costa aproveitou o momento para dar uma lição a quem já esteve do seu lado: “A esquerda é plural, o PS representa a esmagadora maioria da esquerda e centro-esquerda; é importante que outras as correntes da esquerda não continuem a definhar e sejam capazes de se afirmar, mas não se voltarão a afirmar continuando a eleger PS como inimigo principal.”
O pedido de reflexão de Costa aos comunistas — assente na ideia de que o partido “devia refletir um pouco e constatar que quantas mais vezes disser que o PS é igual ao PSD, IL e Chega menos os portugueses acreditam no PCP” — surgiu depois de defender que os portugueses têm “bem claro” aquela a que chamou uma mudança extraordinária” no país “desde que virámos a página da austeridade em 2015” em comparação com a experiência governativa da direita. Aliás, valeu até um bater de três vezes na madeira para afastar o azar por causa dessa mesma experiência que, disse, “a direita promete voltar a repetir se… viesse o diabo da direita reaparecer na governação do nosso país”.
A defesa da geringonça tinha começado antes, em resposta João Cotrim Figueiredo — que pediu clareza sobre a posição do PS para as próximas eleições e se “vai voltar a propor acordos de governo” com “partidos que votam contra os tratados europeus”. O pedido do deputado liberal para que haja “coerência” acabou com o primeiro-ministro a dizer que “o futuro do PS ao PS caberá”, mas a defender que no passado houve “uma primeira legislatura com acordos firmados com PEV, PCP e BE” que, crê, “não sacrificam identidade sobre política europeia e Governo não sacrificou um milímetro“.
Também o PSD, pela voz de Catarina Rocha Ferreira, enaltecia o momento como a “despedida da era socialista”, o período da governação de Costa que, insistiu, “começou com a derrota do PS”. O discurso da geringonça, que nunca foi arrumado, voltou em força com a candidatura de Pedro Nuno Santos e com a narrativa de direita de que “o PS quer voltar a dar mãos, braços e abraços a Bloco de Esquerda e PCP, que são antieuropeístas e com um líder que quer fazer tremer as pernas aos banqueiros”.
As palavras da social-democrata deram mais um motivo a Costa para se mostrar “perplexo” por considerar que “se houve coisa que estes anos [de governação do PS] demonstraram foi uma derrota da direita e que a visão de austeridade foi esmagada“. O primeiro-ministro demissionário reiterou que a receita da direita “foi um fracasso” e lembrou que o Governo que liderou permitiu que Portugal deixasse de “estar de joelhos e com posição subserviente e passou a ter posição construtiva”. Porém, os olhos de António Costa estão virados para o futuro: “Este ciclo político pode ter começado com derrota do PS, mas vai seguramente prosseguir com vitória do PS.”
O debate sobre o Conselho Europeu foi-se focando em várias questões externas — desde o reiterar da posição de Portugal de necessidade de um “apoio incondicional” à Ucrânia, à tese de que “destruir o Hamas não significa destruir a Palestina” e de que a paz deve estar assente na criação de dois Estados —, mas tudo foi tema para apontar o dedo a Costa. Bruno Nunes, do Chega, acusou o chefe de Executivo demissionário de ir “lá fora limpar a imagem com que se vai apresentar na Europa depois de tudo o que aconteceu no Governo internamente” e Isabel Pires, do Bloco de Esquerda, questionou Costa sobre “até quando é que Portugal vai ser o bom aluno da Europa”.
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A despedida de Costa
No final do debate, António Costa usou a última intervenção em jeito de despedida. “Sendo esta a minha última intervenção não só como primeiro-ministro mas também como parlamentar, foi uma grande honra ter sido seis vezes eleito para a Assembleia da República, ter exercido enquanto deputado na oposição seis anos, tendo aqui estado três vezes como ministro e nos últimos anos em três governos a que tive a honra de presidir”, apontou, cumprimentando “todos os que trabalham e trabalharam” no Parlamento.
E prosseguiu para “saudar todas as bancadas, sem exceção”. “O Parlamento é feito de controvérsia, de contraditório, às vezes mais vivo, outras vezes menos vivo. Se ao longo destes anos alguém melindrei quero dizer que não o fiz intencionalmente, se alguém me melindrou, devo dizer que já esqueci“, referiu o ainda primeiro-ministro. Àqueles que poderão ser eleitos, desejou “continuação de bons mandatos” e àqueles que poderão não ser reeleitos deixou uma mensagem que serve para o próprio: “Que este seja o primeiro dia do resto da vossa vida e que sejamos tão felizes nas vidas que teremos a seguir como fomos nas vidas que exercemos ao longo destes anos.”