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Da Margem Sul? Empresas hesitam na hora de contratar. E a culpa é dos transportes públicos

M.M. não vai ter o contrato renovado. A zona residencial de Rita "não era desejada". Sandra já nem procura emprego em Lisboa. Seis relatos mostram que viver na margem sul do Tejo pode ser um problema.

M.M., 39 anos e com uma filha de 7, já sabe que, em setembro, não terá o contrato de trabalho renovado, num call center em Lisboa. “Naquelas reuniões de feedback que temos ao fim de um tempo na empresa, disseram-me que estava tudo bem em relação ao meu trabalho. Como tive a minha filha doente, falámos das faltas, mas principalmente dos atrasos, porque muitas vezes não conseguia chegar a horas“, conta ao Observador. Como não cumpria o horário de entrada, as chamadas dos clientes não eram atendidas. “E isso é um prejuízo para a empresa.”

O turno de M.M., que mora na Moita, deveria começar às 9 horas. Só que as sucessivas supressões, “que se intensificaram nos últimos meses”, nos barcos da Soflusa — o transporte que, a par do metro, usa para chegar ao Marquês de Pombal — dificultam a tarefa de entrar a horas. “Houve duas semanas em maio em que as supressões foram constantes. Cheguei vários dias atrasada. Agora em julho foram três dias de greve dos mestres.”

Nesses dias acabou por chegar sempre 15 minutos depois da hora de entrada. “Somados, são 45 minutos… 45 minutos que não posso recuperar e que me são descontados do ordenado“. Em três dias, entre boleias que pagou para a estação de comboios, porque não tinha barcos, e os descontos no salário, M.M. estima ter perdido “mais dinheiro do que os 60 euros que eles [os mestres] reivindicam”.

O caso de M.M. não é único. Nas redes sociais, o Observador encontrou testemunhos de vários trabalhadores, que garantem terem sido informados pelos recrutadores de que o facto de residirem na Margem Sul seria tido como um problema, ou que não viram o contrato de trabalho renovado devido aos atrasos frequentes, motivados por constrangimentos nos transportes.

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Do Metro à CP. Fizemos um raio-X aos transportes públicos de Lisboa

Mal disse que vinha de barco para o trabalho fizeram uma cruz no meu nome“, diz mesmo Ana (nome fictício). E Sandra Soares, 41 anos, já nem procura trabalho em Lisboa porque “neste momento, para quem vive nesta zona [Margem Sul] é impossível”. Falam numa situação de caos, que se tem agravado nos últimos meses — embora os problemas, garantem, sempre terem existido. Tanto que já obrigaram Maria de Jesus, 56 anos, a ter de dormir “num colchão numa arrecadação”, no hospital onde trabalha.

Com poucas oportunidades de trabalho naquele lado do Tejo — os Quadros de Pessoal do Ministério do Trabalho davam conta de que, em 2017, todo o distrito de Setúbal empregava 161 mil pessoas e o de Lisboa 847 mil — a alternativa, para muitos, é a capital. E para 30 mil é a Soflusa. Como reagem as empresas quando essa e outras opções falham?

“O meu chefe disse-me: ‘Mas tu vives numa ilha? Antes eram problemas com o autocarro, agora são com o barco…”

M.M. começou a trabalhar num call center em Lisboa, em abril deste ano. Até junho, a empresa estava localizada no Oriente, pelo que M.M. preferia apanhar o autocarro 333, que ali chegava partindo do Vale da Amoreira (Moita). Só que entre 10 de maio e o final do mesmo mês, as ligações fluviais entre o Barreiro e Lisboa registaram várias perturbações devido à falta de mestres. Por isso, as filas para o autocarro cresceram.

O cenário piorou com uma paralisação parcial de dois dias na Soflusa e com a greve às horas extraordinárias iniciada a 23 de maio pelos mestres. Resultado? “Os autocarros, quando chegavam à minha paragem, já estavam cheios. Ainda tentei apanhar duas estações antes, mas as filas eram enormes. Se não conseguia apanhar o primeiro, o seguinte era meia hora depois.”

Em junho, a empresa onde trabalha mudou-se para o Marquês de Pombal. Por isso, passou a apanhar a Soflusa no Barreiro até ao Terreiro do Paço e depois o metro. Só que as greves — ainda que parciais — continuaram. Mais recentemente, em julho, três dias de greve paralisaram as ligações. “O meu chefe olhou para mim e disse: ‘Então mas tu vives numa ilha? Antes eram problemas com o autocarro, agora são problemas com o barco…'” Sair mais cedo de casa em dia de paralisação não é alternativa — a escola da filha só abre às 7h30 e não tem ninguém com quem a deixar antes.

Não é a primeira vez que M.M. tem complicações no trabalho por perturbações nos transportes. No final do ano passado, esteve dois meses numa outra seguradora para substituir um trabalhador de baixa. Ao início garantiram-lhe que havia a possibilidade de ficar. “Só que foi num mês em que apanhei vários atrasos nos barcos e uma greve no metro. Podia apanhar o 333, mas depois como ia até ao Saldanha, estando o metro em greve? Cheguei três ou quatro vezes atrasada. Foi o suficiente.”

Também em entrevistas de emprego, ser da Margem Sul era visto como uma desvantagem. M.M., fluente em francês, chegou a ir a uma entrevista numa seguradora francesa, na Avenida da Liberdade. “Eles precisavam mesmo que eu entrasse às 8h30, porque em França seriam 9h30 e eu teria de atender chamadas de clientes franceses. Disse que morava mesmo do outro lado [na altura, na Baixa da Banheira], que não havia problema. Depois disseram-me: ‘Mora na Baixa da Banheira… então deve ter dificuldade em chegar às 8h30’. Por mais que eu garantisse que conseguia, disseram que tinham tido más experiências com trabalhadores da Margem Sul: quando o problema não eram os barcos, eram os autocarros ou os comboios”. M. M. não foi aceite.

Em março de 2018, já os utentes da Transtejo e da Soflusa se manifestavam contra a degradação dos serviços

Situação semelhante conta Ana (nome fictício). Desta vez foi uma agência de recrutamento a ter dúvidas. “Na entrevista leram o meu CV e a minha morada. ‘Ah, é do Barreiro? Vinha de barco, então? Mal eu respondi que sim, [o recrutador] fez uma cruz e explicou que a empresa onde eu ia prestar serviços tinha vários colaboradores do Barreiro que chegavam várias vezes atrasados por essa situação [os atrasos na Soflusa]. Disseram que iriam mesmo assim mostrar o meu CV e que, se a resposta fosse positiva, me ligavam novamente.” A entrevista foi em abril. Até então não obteve resposta.

Discriminação? Empresas negam

Durante 12 anos, e até ao início de 2018, Ana trabalhou em Lisboa. Ao Observador, relata que o serviço da Soflusa se deteriorou durante esse período. Até 2017, “chegava atrasada entre 8 e 9 vezes” por ano por causa de atrasos e greves nos barcos. Depois, o cenário foi mudando — para ela e para os colegas da Margem Sul. “Posso dizer que, só em outubro ou novembro de 2017, foi uma semana e meia de atrasos”.

Foi por opção própria que saiu da empresa na capital e foi trabalhar para a outra margem. “Esta situação [os atrasos] causava mau ambiente entre chefias e aqui [na Margem Sul] não apanhava essa confusão” — como “pessoas a saltar cancelas e seguranças aos berros”. Além disso, “passava mais tempo com a minha filha, de 3 anos”. Só que a empresa entrou em falência e Ana ficou desempregada. Desde então que envia vários currículos por mês, mesmo para Lisboa. A última vez que foi chamada para uma entrevista foi em abril, por uma agência de recrutamento, a Egor.

Segundo Ana, em duas entrevistas para duas empresas através da Egor os recrutadores mostraram hesitação assim que os informou onde morava. Contactada pelo Observador, fonte oficial da Egor nega que o facto de um trabalhador morar na Margem Sul seja para a empresa um motivo de exclusão. “É uma situação que nos é completamente estranha. Essa informação não faz sentido — aliás, vai ao arrepio das nossas práticas“, disse a mesma fonte. “Durante o processo, apresentamos ao cliente vários candidatos e o cliente toma a decisão com base nos critérios de escolha”, afirmou, acrescentando “não encarar como possível” que um trabalhador tenha sido excluído por morar na Margem Sul.

Em dezembro do ano passado, vários utentes da Transtejo invadiram um barco, que devia fazer a ligação Seixal-Lisboa

Ana tinha a informação de que as empresas para as quais concorria, em regime de outsourcing, eram a EDP e a Galp. Ambas foram igualmente contactadas pelo Observador, negando que exista algum tipo de discriminação.

Numa resposta por escrito, a EDP assegura que nunca deu indicações a uma agência de recrutamento para que fossem excluídos trabalhadores da Margem Sul e que esses profissionais não são preteridos face a outros que morem do outro lado do Tejo. “O processo de recrutamento para a EDP é feito de forma estruturada, com o objetivo de garantir a seleção dos candidatos mais adequados às funções e com as competências identificadas como mais importantes para o grupo – e essas orientações são também garantidas pelos parceiros, nomeadamente agências de recrutamento, com os quais trabalhamos“, refere fonte oficial.

Salienta ainda que “esse processo de avaliação, através de um conjunto de testes e entrevistas, além das competências técnicas necessárias ao desempenho da função, analisa a formação académica, o percurso profissional e também outras experiências relevantes que demonstrem proatividade e iniciativa, abertura a novos desafios, curiosidade e vontade de aprender e de trabalhar em áreas diversificadas”.

"Eles precisavam mesmo que eu entrasse às 8h30, porque em França seriam 9h30 e eu teria de atender chamadas de clientes franceses. Disse que morava mesmo do outro lado [na altura, na Baixa da Banheira], que não havia problema. Depois disseram-me: 'Mora na Baixa da Banheira... então deve ter dificuldade em chegar às 8h30'. Por mais que eu garantisse que conseguia, disseram que tinham tido más experiências com trabalhadores da margem sul: quando o problema não eram os barcos, eram os autocarros ou os comboios"
M.M.

Já a Galp sublinha, por sua vez, que “respeita e promove a diversidade das suas pessoas e usa critérios objetivos e não discriminatórios para a seleção de novos colaboradores. Temos e continuaremos a procurar as pessoas mais competentes nas suas áreas de especialidade, seja qual for a sua morada de residência ou qualquer outro fator.” A empresa diz mesmo que “mais de 200 pessoas com residência na Margem Sul de Lisboa trabalham diariamente na sede da empresa”.

É difícil averiguar

Carmo Sousa Machado, sócia da Abreu Advogados e especialista em direito laboral, é perentória: “Conseguindo-se provar que efetivamente as pessoas não são selecionadas apenas pelo local de residência, é claramente uma situação de violação do direito à igualdade no acesso ao emprego”.

Na primeira alínea do artigo 24.º do Código do Trabalho pode ler-se que:

“O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.”

A eventual discriminação com base no local de residência, “de tão bizarra que é”, não está prevista no artigo, mas a legislação “não é taxativa, é exemplificativa”. A violação do direito à igualdade no acesso ao emprego é uma contraordenação muito grave e o valor das multas depende do volume de negócio da empresa. Por exemplo, uma firma com um volume de negócio de 500 mil euros pode chegar a ter de pagar entre 4590 e 9690 euros, em caso de dolo, por cada contraordenação.

A especialista avança ainda que as empresas podem reagir aos atrasos de forma disciplinar, mas “em casos limites” (em que os atrasos sejam efetivamente recorrentes), ou cessar o contrato por justa causa. Para que isso aconteça, tem de tratar-se de uma “uma situação que determine de alguma forma prejuízo para o empregador e que determine que seja impossível a manutenção do contrato de trabalho” — por exemplo, nos casos em que um trabalhador responsável por abrir um estabelecimento a uma determinada hora se atrasa frequentemente.

José João Abrantes, advogado e especialista em direito do trabalho, concorda que “tem de haver um racional” na escolha dos candidatos e que o candidato não pode “ser discriminado por um fator que não tem nada a ver com a sua aptidão com trabalho”. Mas tem dúvidas quanto à determinação de situações de discriminação.

A violação do direito à igualdade no acesso ao emprego é uma contraordenação muito grave e o valor das multas depende do volume de negócio da empresa. Por exemplo, uma firma com um volume de negócio de 500 mil euros pode chegar a ter de pagar entre 4590 e 9690 euros, em caso de dolo, por cada contraordenação.

“O problema está na prova. A entidade patronal não vai admitir que excluiu um candidato por ser ou não da Margem Sul”, diz ao Observador. Até porque é difícil averiguar que, efetivamente, um trabalhador foi excluído com base nesse critério. “No acesso ao emprego há mais liberdade contratual. Não se pode contratar toda a gente e, portanto, há uma seleção. Por vezes intervém não só o domínio do racional mas também do emocional, porque se simpatiza mais com esta ou aquela pessoa”, considera. Ainda assim: “Custa-me a admitir que o local de residência possa ser um critério legítimo”.

Carmo Sousa Machado acrescenta que “não é completamente impossível” provar que uma empresa discriminou um candidato durante o processo de recrutamento, até porque as firmas são obrigadas a preservar os papéis de recrutamento durante cinco anos. “É possível perceber se todos os rejeitados são da Margem Sul, ou se são mulheres, ou se têm mais de 40 anos”, exemplifica. Mas, para que isso aconteça, “o caso tem de ser denunciado”.

O Observador procurou saber junto da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) se há registo de denúncias, mas fonte oficial respondeu que a entidade “não tem conhecimento de situações de discriminação por parte de empregadores com base na residência na Margem Sul”.

Ainda assim, a questão tem sido colocada em entrevistas de emprego. “Tenho uma filha pequena e sempre achei que, para as empresas, se houvesse algum ‘problema’ seria esse. Mas não. É o facto de eu morar na outra margem. ‘Então como é que vem trabalhar? Vem de barco, comboio, tem carro próprio?’ São logo essas perguntas”, atira M.M.

Paralisações em junho provocaram constrangimentos aos 30 mil utentes da Soflusa

Rita (nome fictício) também mora na Margem Sul. E garante que a justificação que lhe foi apresentada para não continuar num processo de recrutamento foi precisamente essa.

Quando disse que morava no outro lado do Tejo “referiram a minha zona residencial como não desejada, devido à situação mediática” da Soflusa, conta ao Observador. “Eu estava em fase de recrutamento com uma série de entrevistas sequenciais previstas. A justificação para não avançar foi essa. Não pude refutar. De facto, utilizo os barcos como transporte. Não possuo outra alternativa rápida para me movimentar, neste caso, para Lisboa.”

Rita estava a concorrer para uma posição numa empresa (como se encontrava numa fase inicial do processo, não sabe para qual) através de uma agência de recrutamento, a Adecco, que, ao Observador, garante não ter “registo declarado de quaisquer políticas de exclusão de candidatos“. “A Adecco respeita a igualdade de tratamento e não discriminação, pelo que se guia pela igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego”, acrescenta.

Há quem tenha de dormir no trabalho

Sandra Soares, 41 anos, está desde junho a trabalhar na Margem Sul — “num emprego que não corresponde às minhas qualificações”, conta.  “Trabalhar em Lisboa, neste momento, para quem vive nesta zona é impossível”, atira. Por isso, já nem procura trabalho na capital.

Sandra não foi discriminada pela empresa onde trabalhava, em Lisboa, da qual saiu recentemente. Foi, aliás, a própria a decidir pôr um ponto final devido aos atrasos frequentes. “Da primeira vez que faltei porque não tinha barcos disseram-me ‘tudo bem’, depois faltei uma segunda vez, também deixaram passar. À terceira eu própria tive o bom senso de dizer que ia sair, senão seriam eles a dizer, mais dia menos dia”, refere. Frisa, no entanto, que a empresa lhe deixou as portas abertas para voltar.

Foi o “chegar à estação e não haver barcos” e “o nunca saber se tinha transporte para casa” que motivaram Sandra. “Num dia de greve, uma pessoa que entrasse às 10 horas, por exemplo, chegava a ter de apanhar o barco das 6h30, porque depois só havia pelas 14h30. Isso era impensável para mim”.

Desde o início do ano e até final de junho, foram suprimidas 1117 ligações na Soflusa, de entre as quais: 646 por falta de operacionais e 385 por motivo de greves/plenários, revelou a empresa ao Observador. Na Transtejo, o número ficou pelas 299 supressões.

A empresa informou ainda que, para efeitos de justificação de faltas ou atrasos no local de trabalho, o passageiro deverá efetuar o pedido no momento, junto do chefe de terminal, caso não tenha validado o título de transporte. Se houver validação, pode efetuar o pedido de justificação posteriormente, num dos terminais afetos à ligação fluvial, “uma vez que mediante consulta do registo de validações é possível verificar a sua presença à hora do atraso/supressão”.

Numa entrevista recente à Rádio Observador, Marina Ferreira, presidente da Transtejo/Soflusa, garantiu que a partir do final deste mês vão entrar novos mestres na empresa, “que vão ajudar a corrigir os problemas com as horas extraordinárias”. “Entrando ao serviço estes quatro novos mestres, esta variabilidade total dos horários que tem ocorrido por causa da greve às horas extraordinárias deixará de existir, porque os horários passam a ser feitos pelos trabalhadores.”

Por agora, para muitos utentes, todos os dias são uma incerteza. Maria de Jesus, 56 anos, procura prevenir-se como pode. “Nesta altura de supressões, a Soflusa afixa nas estações as carreiras que vão ser suprimidas. Há sempre alguém que tira uma fotografia à noite e mete no Facebook. É lá que vejo”, conta. Mas mesmo assim as travessias podem ser canceladas.

Auxiliar num hospital em Lisboa, já chegou a ter de dormir num “colchão numa arrecadação” das instalações onde trabalha — se não apanhar um barco às 23h30 perde o comboio e o autocarro até casa. Em junho aconteceu duas vezes. “Quando saí do trabalho às 23 horas, cheguei ao cais e não tinha barco. Voltei para trás [para o hospital]. No outro dia, nem sequer arrisquei.”

“Entrando ao serviço estes quatro novos mestres, esta variabilidade total dos horários que tem ocorrido por causa da greve às horas extraordinárias deixará de existir, deixam de ser necessários porque os horários passam a ser feitos pelos trabalhadores.”
Marina Ferreira, presidente da Transtejo/Soflusa

“Uma falta, mesmo que justificada, é cadastro”

Sandra conta ao Observador que já chegou a recusar entrevistas porque sabia que não ia ter barco. “Acho que nem toda a gente sabe o que é que realmente está a acontecer. Só quem vive na Margem Sul e falta ou chega atrasado e depois tem de sair mais cedo para apanhar o barco é que sabe”. O problema, diz, é que naquele lado do Tejo há poucas oportunidades. “Aqui o que é que fazemos? Num call center são 500 candidatos a um osso. Depois há a Autoeuropa, mas não pode ir para lá toda a gente.”

Pedro (nome fictício), 35 anos, agora só procura trabalho no estrangeiro. Até ao início de julho trabalhava num call center em Lisboa, mas o contrato não foi renovado. “Eu perguntei porquê e disseram-me que tinha sido pelas faltas e pelos atrasos. Eles nunca tiveram problemas com o meu trabalho”. Admite que essas faltas e atrasos não tiveram só origem nas perturbações da Soflusa, mas também com problemas de saúde do pai. “O problema às vezes não é só a Soflusa. É a maneira como as empresas trabalham, porque uma falta, mesmo que justificada, fica sempre marcado, é cadastro“, critica.

Formado em informática, o barco era a opção de Pedro para chegar ao trabalho. “Num dia de greve, a empresa até esteve a ver o preço para o Uber ou o táxi. Ida e volta ficava entre 75 e 100 euros. Como o transporte era mais dispendioso do que terem-me lá a trabalhar, e para eles eu não ia fazer lucro mas perdas, disseram-me que não precisava de ir trabalhar”. Ao início, a empresa ainda “foi impecável”. Mas as supressões foram aumentando, assim como a pressão sobre Pedro. “Disseram-me: ‘Se tens problemas com a Soflusa, a empresa não tem nada a ver com isso. Arranja outra maneira de vires para o trabalho’.”

Durante a greve dos mestres da Soflusa de maio, houve quem tivesse de dormir no cais de embarque por não ter alternativa de transporte

E Pedro tentava. Em dias de greves a alternativa era o comboio — mas, antes da entrada em vigor dos novos passes a 40 euros, só tinha acesso a uma rede limitada. Tudo o que não fosse barco, acrescia na despesa. “Acabava por ir para o comboio, mas num dia de greve está à pinha. Cheguei a sair às 6 horas da manhã de casa e mesmo assim chegava pelas 8h30 [a hora de entrada era às 8 horas].”

E o carro não é opção? “A não ser que se receba muito mais do que o salário mínimo, não é. Entre o que se gasta em gasolina, portagem, combustível no pára arranca, estacionamento em Lisboa…”

“Há lutas para entrar no barco”

As supressões na Soflusa têm sido frequentes nos últimos meses, devido a avarias das embarcações, falta de pessoal ou paralisações — totais ou parciais. Desde 6 de julho que os mestres estão em greve às horas extraordinárias, situação que se deverá prolongar até 31 de dezembro, caso as negociações não evoluam. Exigem o aumento do prémio de chefia, em cerca de 60 euros, que dizem ter sido numa primeira fase acordado e depois suspenso.

Os 30 mil utentes são apanhados neste medir de forças — queixam-se da degradação do serviço e dos desacatos a que muitas vezes assistem de passageiros desesperados por conseguirem apanhar o barco.

M.M. lembra as situações mais extremas: “Há lutas para entrar no barco. Já tive crises de ansiedade e de pânico, já não me consigo ver numa fila apertada. Parece que somos vacas a ir para um matadouro. Estamos fartos. Temos de nos sujeitar a essas coisas para podermos ir trabalhar. Claro que fico nervosa… e isso interfere no meu trabalho. Chego a casa muito saturada. Na sala de embarque tem sempre havido confusão, as pessoas a gritar e a bater contra os vidros e as portas. Depois, é uma interrogação saber quando vou buscar a minha filha, quando lhe vou dar jantar, quando é que lhe vou dar banho. Os meus colegas dizem ‘Muda-te para Lisboa’, mas eu só olho para eles e digo ‘Como?’ Na Moita, pago 300 euros por três quartos, e em Lisboa não tenho sequer a garantia de ter um contrato fixo. Já saí do trabalho a chorar. Dizem-me: ‘Porque é que não deixas a tua filha na casa de alguém às 6h30?’ Mas em casa de quem?”.

Pedro é ainda mais direto: “Se os transportes páram, nós paramos na Margem Sul“.

Vereador diz não conhecer ninguém que não possa trabalhar em Lisboa por causa dos transportes 

Em entrevista à Rádio Observador, Miguel Gaspar desresponsabiliza as pessoas pela discriminação de que estarão a ser alvo por viverem na margem sul.

“Se há pessoas prejudicadas é porque, cada vez mais, as entidades empregadoras têm que se preocupar com a mobilidade dos empregadores. E isso nas empresas mais maduras começa-se a ver cada vez mais”, afirma o vereador. A não renovação de contratos e a eliminação de candidatos às vagas de emprego da margem sul das listas não é legal.

Este cenário não é comum a todas as empresas, ressalva Miguel Gaspar, acrescentando que Lisboa é procurada por multinacionais que perguntam como podem adquirir passes para os trabalhadores.

O vereador da mobilidade também considerou que, apesar de as greves serem um direito previsto na Constituição, “é preciso ponderar e convidar aquelas 18 pessoas que constantemente fazem greves a pensar quando é que é razoável continuar a condicionar 36 mil pessoas todos os dias”.

Miguel Gaspar alertou ainda para o papel dos passes sociais e a forma como estes podem ajudar as pessoas que vivem fora da capital a aceitarem empregos na zona de Lisboa.

“As pessoas faziam contas e não podiam aceitar aquele emprego. Agora com passes de 40 euros passam a aceitar”, adiantou Miguel Gaspar, confessando que não conhece moradores da margem sul que não possam trabalhar em Lisboa por causa das dificuldades nos transportes.

À Rádio Observador, o vereador da mobilidade ainda acrescenta que vai haver um aumento de 40% do investimento nos transportes suburbanos e os municípios vão passar a colocar no sistema 40 milhões de euros para reforçar o transporte público. Até 2020, o número de carreiras vai crescer.

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