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Tentativa honesta de última hora ou manobra política já a pensar nas inevitáveis eleições, a proposta de Pablo Iglesias, quase a fechar o debate da investidura de 25 de julho de 2019, deixou Pedro Sánchez sem resposta. Depois de uma negociação falhada, com o Unidas Podemos a exigir três ministérios para viabilizar o governo socialista, Iglesias abdicava do mais importante para o seu partido: a pasta do Trabalho. Pior: fazia-o, garantiu, por sugestão de um socialista:
“Faço daqui uma nova proposta. Depois de ouvir o seu discurso, recebi uma mensagem de uma pessoa muito relevante no seu partido, uma pessoa com muita autoridade moral dentro do Partido Socialista, que me disse: ‘Ouvi o discurso de Pedro Sánchez. Pede-lhe que vos ceda as competências nas políticas ativas de emprego’. Portanto, estou a seguir a recomendação que me fez alguém do seu partido: renunciamos ao Ministério do Trabalho se vocês nos cederem as competências para dirigir as políticas ativas de emprego neste país.”
Primeiro, silêncio. Depois, burburinho. Só mais tarde, aplausos da bancada do Podemos. Enquanto Pablo Iglesias bebe um pouco de água, Pedro Sánchez cerra o maxilar e abana a cabeça. Nem se deu ao trabalho de responder.
Visto à distância, é possível que Sánchez nunca tenha desejado qualquer apoio. Longe da maioria absoluta no parlamento — com 123 deputados saídos das eleições de abril — deixou os possíveis parceiros à espera várias semanas, insistiu depois em reunir-se com todos os partidos e recusou passar várias linhas vermelhas. Na cabeça do socialista estaria uma ideia: o impasse ficará na quota de responsabilidades da oposição, que vai chumbar o governo, e os espanhóis lembrar-se-ão disso em novas eleições. Se não o pensou ali, repetiu-o até novembro: estabilidade só com um Partido Socialista mais forte.
Sánchez tinha um plano perfeito para conseguir o apoio de todos. Não conseguiu o de ninguém
O problema é que nem mais nem os mesmos: a 10 de novembro de 2019, o PSOE saía das urnas com 120 deputados, menos três que em abril. E Pablo Iglesias voltava a estar ali, ainda com a mão estendida, mas só para receber.
Foi ao Unidas Podemos que Pedro Sánchez mais teve de ceder, por implicar um governo de coligação — incluindo a vice-presidência. Mas os 35 deputados em troca — porque também o Podemos perdeu sete lugares — continuavam a ser insuficientes para viabilizar a governação. Ao líder do PSOE não restou alternativa senão voltar-se também para nacionalistas bascos e independentistas catalães, além de outros pequenos partidos. A todos teve de fazer cedências — de um novo olhar sobre a Catalunha (provavelmente a mais delicada), à gestão do trânsito e das autoestradas.
Os sete acordos para garantir a investidura não são só uma manta de retalhos que Pedro Sánchez teve dificuldades em coser. São a imagem da fragilidade do apoio ao governo: 167 votos a favor são apenas mais dois acima do necessário. Se algum dos atuais parceiros recuar durante a legislatura, voltará o impasse.
Unidas Podemos: ministérios, a vice-presidência e muitos abraços em público
Menos de 48 horas depois do anúncio dos resultados das eleições, a 12 de novembro, um abraço entre Pedro Sánchez e Pablo Iglesias firmava aquilo que pareceu sempre impossível durante o verão: estava feito um pré-acordo entre PSOE e Unidas Podemos para dividir as pastas do governo e introduzir no programa as bandeiras mais à esquerda.
O novo governo de coligação — um cenário inédito em Espanha — promete avançar com uma reforma fiscal ambiciosa, com uma subida nos impostos para os mais ricos e para as grandes empresas e um aumento significativo no salário mínimo, além de outras medidas sociais. O ponto mais importante para Iglesias, porém, será o que diz respeito à reforma laboral posta em marcha pelo executivo de Mariano Rajoy, em 2012, que será revertida, pondo fim a medidas como a flexibilização dos contratos e a facilitação dos despedimentos, nomeadamente durante baixas médicas.
No documento fica ainda clara a defesa da eutanásia e do direito à morte digna, além de uma tónica muito forte na salvaguarda dos direitos e da proteção das mulheres, com “políticas feministas”, e uma maior separação entre Igreja e Estado, com a disciplina de religião a deixar de contar para a média dos alunos.
Sánchez de arestas limadas com Iglesias, mas Catalunha é areia na engrenagem
O acordo também não esquece a questão da Catalunha, embora aí as referências sejam ainda vagas, apontando para um maior diálogo, e apesar de a independência estar afastada. No debate de domingo, Sánchez deixou claro que qualquer solução teria de respeitar a Constituição — que prevê a unidade de Espanha. E o próprio Iglesias confessou que o “encantaria” que os partidos independentistas abandonassem as suas convicções, sabendo que sabia que isso não é possível, mas que acreditava num entendimento alargado.
Até agora, não é clara a forma como será feita a divisão das pastas ministeriais. Os jornais espanhóis apontam como mais provável que o Unidas Podemos assuma a tutela de áreas como o Trabalho — aquele de que Iglesias esteve disposto a abdicar em julho —, Ensino Superior ou Igualdade. Certeza, por esta altura, é a de que a vice-presidência ficará para Pablo Iglesias. E isso não é coisa pouca.
Nas negociações falhadas de junho e julho, seria essa a condição que Pedro Sánchez mais recusava para um apoio. Numa entrevista à RTVE, a 18 de julho, o líder socialista deixava isso claro: “Não é possível que Pablo Iglesias entre no governo. É ele o principal obstáculo”. O tiro, porém, acabaria por voltar-se contra ele. Logo depois, num vídeo publicado nas redes sociais, Iglesias fazia-se mártir: afastava o próprio nome das negociações — algo que lembraria a Sánchez já durante o debate — sem que isso demovesse o socialista.
De lá para cá, ambos mantiveram a tónica no que os separava, acusando-se mutuamente de serem populistas, mentirosos e irresponsáveis. Os insultos acabaram num abraço — e em muitos outros que se seguiriam, na assinatura do acordo e no Congresso dos Deputados, durante as sessões de investidura. Talvez essa seja a maior cedência de Sánchez: o maior obstáculo é agora o melhor parceiro.
Seja como for, a coligação com o Unidas Podemos abriu também caminho ao apoio do Más País e à abstenção do EH Bildu.
Esquerda Republicana da Catalunha. Referendo ou consulta?
Não por acaso, o acordo que o PSOE assinou com a Esquerda Republicana da Catalunha tem apenas dois pontos — e ambos dizem respeito à questão catalã.
Perante esta “oportunidade para desbloquear o conflito político” e “estabelecer as bases para a sua resolução”, diz o texto, Pedro Sánchez aceitou reconhecer a existência do próprio conflito e “ativar a via política para o resolver”. Para isso, será criada uma mesa de negociação com dois lugares: um para o governo espanhol, outro para a Generalitat, o governo regional da Catalunha.
Esquerda Republicana da Catalunha vai mesmo abster-se e viabilizar governo PSOE/Podemos
Como é que vão decorrer as conversas entre independentistas e soberanistas? Ninguém sabe. Mas o compromisso prevê que todas as questões sejam discutidas e, mais importante que isso, que qualquer solução ou acordo bilateral que surja seja, primeiro, colocado à votação dos catalães. Isso é o mesmo que falar em novo referendo? A ERC espera que, pelo menos, abra esse caminho, os socialistas garantem que não. “À mesa, estamos dispostos a discutir qualquer iniciativa, mas obviamente isso não significa admitir nenhuma iniciativa”, garantiu o ministro do Desenvolvimento em exercício sobre o pacto com a ERC, sublinhando que o PSOE não é “a favor da autodeterminação”.
Pedro Sánchez saberá, porém, que é por aí que poderão chegar os maiores problemas no futuro. O acordo prevê “um diálogo aberto sobre todas as propostas apresentadas”. Se uma delas for uma consulta popular sobre a independência da região, o governo espanhol não poderá recusar, pelo menos, discuti-la de forma aberta. É para aqui que a direita já aponta as críticas: discutir uma proposta “de forma aberta” é, pelo menos, admiti-la como possível.
Se não o fizer, a consequência também é clara: perde o apoio dos 13 deputados da ERC. Sem eles, dificilmente conseguirá aprovar futuros orçamentos do Estado e, tal como aconteceu em fevereiro de 2019, o governo cairá.
As reuniões dessa mesa de negociação começam 15 dias depois da tomada de posse do governo. Terá um calendário público e está obrigada a dar conta de todas as discussões e cumprimento de objetivos. Para obrigar Sánchez a cumprir a palavra, o pacto prevê a criação de “mecanismos para garantir o início e a manutenção da atividade da mesa e o cumprimento dos acordos”.
A abstenção da ERC também dependeu de uma ajuda que Sánchez recebeu da Advocacia-Geral do Estado espanhol. A 30 de dezembro, o órgão — dependente do Ministério da Justiça — emitiu um parecer segundo o qual o antigo líder da Esquerda Republicana, Oriol Junqueras, tem o direito de assumir o cargo de eurodeputado para que foi eleito em maio. Junqueras foi condenado a 13 anos de prisão no processo que julgou os líderes independentistas por causa do referendo à independência da Catalunha, em 2017.
Com o parecer — e já depois de o Tribunal de Justiça da União Europeia ter determinado que Junqueras já deveria ter tomado posse no Parlamento Europeu, por ter imunidade —, a Advocacia recomenda ao Supremo Tribunal que lhe permita fazer isso mesmo, o que implicaria que o político fosse libertado temporariamente, voltando depois à prisão quando essa mesma imunidade lhe for retirada.
Apesar de não cumprir todos os desejos da ERC — que queria que Oriol Junqueras fosse libertado e pudesse depois continuar a exercer o cargo de eurodeputado —, o parecer foi fundamental para o acordo com o PSOE. Tão importante que chegou às mãos do partido independentista, de forma oficiosa, ainda antes de ser formalmente emitido pela Advocacia do Estado.
Partido Nacionalista Basco. Mais autonomia e influência
O mesmo parecer da Advocacia-Geral do Estado serviu de empurrão também para a confirmação do voto favorável do Partido Nacionalista Basco (PNV), que quis incluir no seu acordo garantias também para outras regiões — Navarra e Catalunha.
Para conseguir esse “sim”, Sánchez prometeu conceder mais influência ao PNV. No futuro, as medidas fiscais que o governo queira apresentar serão sujeitas ao acordo prévio do partido. Ao País Basco foi também prometida a transferência das competências pendentes para cumprir o estatuto autonómico.
Além disso, Sánchez vai entregar a competência do trânsito a Navarra, até agora a cargo da Guarda Civil — uma medida muito criticada pela direita, por poder significar a saída daquela força policial da região. Porque é que Navarra é referida num acordo feito pelo PNV? O governo regional não vê nenhum problema ou ingerência e, numa nota, elogia essa transferência de competências.
O compromisso com os nacionalistas bascos garante também que serão criadas condições para permitir que o País Basco seja representado de forma autónoma em competições desportivas e culturais internacionais, com as suas próprias seleções.
Compromis e Teruel Existe. Autoestradas e bilheteiras de caminhos de ferro
Para ter o sim do Compromis, o PSOE prometeu reformar o sistema de financiamento autonómico até ao final da legislatura. Não terá, porém, muito tempo para começar esse processo: a proposta para fazer essa reforma tem de ser apresentada nos próximos oito meses. Além disso, Pedro Sánchez passou a incluir na lista de obras públicas a construção de uma série de acessos a autoestradas e ligações entre vias de comunicação em Valência, mexendo também no preço das portagens, que passam a ser gratuitas na AP7.
Em Aragão, a rede rodoviária também teve um peso determinante para o acordo com o Teruel Existe. O novo governo comprometeu-se a desbloquear a construção de vários troços de autoestradas, variantes e acessos, avançando “decididamente” para o desenvolvimento da rede.
Além disso, por pelo menos seis meses, voltará para a gaveta a decisão dos socialistas de acabar com a venda de bilhetes presencial em 142 estações e apeadeiros dos caminhos de ferro, no interior espanhol, enquanto que poderá avançar o chamado “corredor cantábrico-mediterrânico” — uma ligação ferroviária de alta velocidade.
Nueva Canarias e BNG. Voos mais baratos e descontos nas portagens
Às Canárias foi garantido mais dinheiro — com a divisão dos fundos de financiamento autonómico a não contarem com os recursos já previstos no regime económico e fiscal. Pedro Sánchez promete passar a tratar a região com um regime de excepção, tendo em conta a sua “singularidade ultraperiférica”.
O pacto prevê, por exemplo, que sejam estabelecidos tetos máximos para os preços dos voos entre as ilhas e o continente, nas ligações consideradas de serviço público, além de descontos de 75% para os residentes também nas ligações marítimas.
Os descontos também chegam à Galiza, onde o BNG negociou uma bonificação no preço de algumas portagens — a AP9, por exemplo, passará a ser gratuita para os utilizadores mais frequentes. Haverá obras de manutenção e modernização da rede ferroviária galega e de algumas das rodovias, mas a maior cedência de Sánchez volta a estar relacionada com a autonomia. À Galiza é garantido que, caso haja mudanças na estrutura do Estado, terá o mesmo estatuto que tiverem a Catalunha e o País Basco.
Investidura à justa viabiliza governo frágil
Apesar de todas as cedências, o apoio conseguido com estes sete acordos — entre votos a favor e abstenções — só dá a Pedro Sánchez uma vantagem mínima de um deputado. Foi isso mesmo que mostrou a investidura: na segunda votação, quando já só precisava de uma maioria simples de mais ‘sins’ do que ‘nãos’, Sánchez teve 167 votos a favor e 165 contra — a margem mais curta numa investidura em democracia. Foi suficiente para permitir ao PSOE e ao Unidas Podemos avançar para a formação do governo, mas não deixa de ser demasiadamente à justa para garantir estabilidade na governação.
Pedro Sánchez até teve um exemplo dos riscos que corre durante o processo de investidura: contava com uma abstenção da deputada da Coligação Canária, mas, à última hora, Ana Oramas disse que as promessas feitas pelos socialistas não eram suficientes. “Não, não e mil vezes não”, disse no debate antes da primeira votação, contrariando a posição assumida pelo próprio partido.
A partir daqui, bastará que apenas um dos seus apoiantes nesta investidura decida retirar o seu apoio numa qualquer votação, ao longo de toda a legislatura, para se criar um impasse ou para as propostas do governo fracassarem. Se uma dessas propostas for o Orçamento do Estado, por exemplo, Espanha corre o risco de ir de novo a eleições.
Sánchez convoca eleições para 28 de abril. “Há derrotas parlamentares que são vitórias sociais”
Não é um cenário inédito, muito menos para Sánchez. Depois de ter conseguido juntar apoios suficientes para a moção de censura que fez cair o governo de Mariano Rajoy, o socialista assumiu o poder, mas perdeu-o pouco depois. Bastou que os independentistas, que o tinham apoiado na moção decidissem não o fazer no Orçamento do Estado para 2019. Em fevereiro desse ano, depois do chumbo da proposta do governo, o executivo caía. Pedro Sánchez olhou para o copo meio cheio, acreditou que sairia reforçado em eleições, dizendo mesmo que “algumas derrotas parlamentares são vitórias sociais”. Mas, apesar da insistência na tecla da estabilidade, as duas eleições que se seguiram não lhe garantem que não volte a acontecer.