Colecionador de arte, maratonista e líder do Eleven Madison Park, o restaurante nova iorquino que a listagem The World’s 50 Best Restaurants elegeu como sendo o melhor do mundo. De forma muito simples, é assim que se pode descrever Daniel Humm. Simplicidade é mesmo a melhor palavra para o resumir, seja ela aplicada nos pratos que serve ou na decoração do seu apartamento na zona do Upper East Side, área afluente da cidade norte-americana onde Daniel costuma correr todos os dias, antes de ir trabalhar.
Nascido em Zurique, Suíça, diz ter começado a sua aventura no mundo dos tachos e panelas aos 14 anos. Hoje, com 42, Daniel é um dos mais importantes cozinheiros do mundo, afirmação que se justifica, por exemplo, ao olhar para o seu CV: primeira estrela Michelin aos 24 anos, foi um dos cozinheiros mais jovens de sempre a receber o prémio, no Gasthaus zum Gupf, na localidade helvética de St. Gallen; sete prémios da James Beard Foundation (a mais prestigiada instituição gastronómica norte-americana), entre eles o de Melhor Chef e Melhor Restaurante dos EUA; as três estrelas que ainda mantém no Eleven Madison Park (EMP); e, claro, o primeiro lugar na lista dos 5o Best.
Depois de uma fugaz visita ao seu restaurante — que infelizmente não coincidiu com a sua presença, já que o chef, neste momento, multiplica-se em vários projetos gastronómicos associados à Make It Nice, empresa que divide com Will Guidara, sócio e co-proprietário do EMP –, aceitou apresentar-se ao Observador, via e-mail. “Estou em Bombaim, neste momento”, afirmou. Mesmo assim, a distância não o impediu de falar (ou melhor, escrever) sobre assuntos tão variados como pastéis de nata, o leite quente com mel que fazia com a mãe e Nova Iorque, a sua nova “casa”. Saiba ao pormenor tudo aquilo que quis contar.
O seu restaurante, o Eleven Madison Park (em Nova Iorque, EUA) ocupa o primeiro lugar da lista The World’s 50 Best Restaurants há quase um ano. Qual é a sensação de estar à frente de tantos e tão talentosos chefs de cozinha?
Foi tudo muito surreal, quando anunciaram que tínhamos alcançado a primeira posição da lista. Nós tentamos sempre dar o nosso melhor, mas chegar a este primeiro lugar foi uma das maiores honras da minha vida. Daquelas coisas que te fazem sentir humilde. Passado algum tempo, porém, o mindset muda um bocado. Nós fazemos o que fazemos porque adoramos o mundo da restauração e acreditamos mesmo que estamos a fazer algo de especial, no sentido gastronómico da coisa.
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E em relação à parte mais empresarial do assunto? Que alterações sentiram depois desta distinção?
É inegável que nos trouxe um nível de exposição e reconhecimento muito elevado. As expectativas dos clientes e da indústria também aumentaram consideravelmente. Mas, relembro, nós não queremos mesmo que isto defina aquilo que somos ou que influencie as nossas decisões. Não podemos deixar de ser aquilo que somos, por muito que queiramos celebrar e aproveitar o momento.
Estavam à espera de alcançar o 1.º lugar?
Nem pensar. Foi totalmente inesperado. Apesar disso, sempre tivemos confiança na comida que servimos, na forma como recebemos os nossos clientes e na experiência que lhes proporcionamos — sem esta convicção, nunca é possível atingires um patamar de excelência. Fico contente, sobretudo, pela nossa equipa. Acho que isto foi a melhor maneira possível de validar o trabalho árduo que fazem todos os dias.
Como foi o momento em que souberam?
Ninguém sabia de nada até ao dia da cerimónia. Só soubemos quando foi anunciado, lá. Um momento surreal: a sala estava em silêncio absoluto, conseguia-se ouvir um alfinete a cair. De repente, depois de anunciarem, houve uma torrente de energia que explodiu e toda a gente começou a aplaudir e a puxar por nós. Nesse momento, muito sinceramente, ainda estava a tentar interiorizar o que eles tinham acabado de dizer. Só via luzes, gritos, toda a gente a abraçar-me. Lembro-me perfeitamente de ter olhado para o meu sócio Will [Guidara] e de nos termos partido a rir, quase como se não estivéssemos a acreditar no que tinha acontecido.
O Daniel nasceu na Suíça. Como foi a mudança para os EUA e os primeiros contactos com a gastronomia norte-americana?
Tive de aprender muita coisa, acredita. Vir trabalhar para os EUA foi uma experiência totalmente nova, especialmente se tivermos em conta que cresci e fiz grande parte da minha carreira na Suíça. Tive de adaptar muita coisa na minha vida, é verdade, mas não posso esconder que foi tudo muito entusiasmante. Entrei em contacto com muita coisa nova e isso foi essencial para alimentar a minha curiosidade, a minha paixão pela comida. Foi, sem dúvida, algo que me fez crescer enquanto chef e pessoa.
Como reagiu o público norte-americano à sua comida?
Por acaso a reação foi bastante positiva, logo desde o início — o que me fez sentir aliviado, na verdade. É difícil saíres do teu país, ires para um sítio totalmente novo e diferente sem sequer dominares bem a língua. No meio disso tudo, ainda queres dar o teu melhor para conseguir fazer alguma coisa de realmente diferente…
Na sua opinião, quais são as principais diferenças entre a comida nos EUA e na Europa?
Hoje em dia há tanta sobreposição de tendências e fenómenos gastronómicos que as diferenças são cada vez mais pequenas. Acho, porém, que uma das coisas mais contrastantes é a forma como se educa e treina o pessoal de cozinha. Ter começado a minha carreira na Europa, fazendo lá todo o percurso tradicional dos estágios e trabalhando sem redes sociais ajudou-me imenso. Ensinou-me a melhor abstrair-me das distrações. Hoje em dia ser um jovem cozinheiro é bastante complicado, tendo em conta a quantidade de cobertura mediática que se dá ao mundo da cozinha — seja na América ou em qualquer outro lado, na verdade. Se não fores capaz de te manter concentrado naquilo que realmente importa, é muito fácil acabares por sair dos eixos.
O Eleven Madison Park (EMP) já existia antes de ter assumido a sua chefia de cozinha. Mudou muita coisa, quando lá chegou?
Praticamente tudo. Quando eu e o Will assumimos o EMP ele tinha sido gerido como um bistrô normal, que servia centenas de refeições todos os dias. Uma casa que servia pratos que iam dos bifes com batatas fritas às ostras. Estava sempre à pinha, mas a grandiosa sala de refeições não correspondia àquilo que nela era servido. Decidimos dar-lhe um novo rumo, mais virado para o fine dining, onde a magnificência do espaço e da comida coincidissem. Mudámos tudo: menu, bebidas, mesas, cadeiras… Até os uniformes do pessoal. Tudo mudou nesses primeiros dias e, felizmente, foi muito bem recebido. Nós acreditamos que a evolução é uma necessidade permanente, não podemos ficar estagnados — especialmente numa área como esta.
Acha que os norte-americanos têm abertura para experimentar coisas novas?
Sem dúvida. Especialmente em sítios como Nova Iorque.
Mas tem saudades da Europa?
Sabes, acho que não. Nova Iorque e os EUA já se tornaram a minha casa.
No The World’s 50 Best já houve vários primeiros lugares atribuídos a restaurantes que não têm três estrelas Michelin, como o EMP tem. Que justificação encontra para estas discrepâncias?
São listas diferentes com critérios, juízes e gostos diferentes.
O Daniel foi um dos vários cozinheiros que participaram no livro “We, Chefs”, do português João Wengorovius. Um dos temas explorados nessa obra é o percurso que um chef tem de percorrer até descobrir a sua “voz gastronómica”, a sua identidade no mundo da comida. Quando é que o Daniel encontrou a sua?
Não foi há muito tempo, sabes? Talvez nos últimos três anos… Na minha opinião, o prato que mais representa aquilo que eu sou enquanto cozinheiro é o Celery Root en Vessie, uma criação muito simples, monocromática, onde impera o minimalismo. Sinto que ele é extremamente impactante tanto em apresentação como em sabor. Quando finalmente o dei por concluído, senti mesmo que aquela era a linguagem que queria nos meus pratos. A partir daí percebi que os meus pratos deviam ter apenas quatro elementos. Isso é o suficiente para se contar uma história, para se ser criativo, delicioso e intencional.
Cozinhava quando era mais novo?
As minhas memórias gastronómicas mais antigas estão sempre associadas à casa onde cresci, às tarefas que ia fazendo com a minha mãe, quando a ajudava a preparar ingredientes ou até mesmo a cozinhar, estivesse ela a fazer um coelho estufado ou um copo de leite quente com mel. Acho que essa experiência foi determinante e fez-me dar valor à comida e àquilo que ela representa.
O Daniel ganhou a sua primeira estrela Michelin aos 24 anos. Sentiu-se surpreendido por receber essa distinção tão cedo na sua carreira?
Claro, principalmente porque nessa fase eu nem ligava muito às estrelas. Queria uma, claro, mas estava sempre tão atarefado, tão embebido naquilo que estava a tentar fazer, que esse meu sonho não motivava as minhas decisões, a minha cozinha.
A pergunta de um milhão de dólares: gosta mais das três estrelas Michelin ou do 1.º lugar no 50 Best?
É impossível responder a isso, ambas são muito importantes — tanto para mim como para a minha equipa.
O que conhece da gastronomia portuguesa?
Por embaraçoso que seja, tenho de admitir que ainda não consegui visitar o teu país, mas uma coisa é certa: tenho ouvido maravilhas da vossa comida, especialmente de uma espécie de guisado de marisco que costumam fazer em potes de barro. Dizem-me que é um dos sabores mais maravilhosos do mundo. A juntar a isso há todas as vossas especiarias e temperos, os queijos, o pão e, claro, os pastéis de nata. Quero visitar-vos muito em breve!
Ainda existe algum preconceito em relação ao fine dining, muitas pessoas continuam a querer compará-lo com a “comida da avó”, afirmando que uma coisa nunca será melhor ou mais saborosa que a outra. O que acha em relação a isto?
O fine dining pode ser verdadeiramente mágico e talvez não seja para toda a gente. Eu adoro fine dining que evolui e mantém-se atual, mas ao mesmo tempo também gosto muito dos pratos mais clássicos e das tradições. Muitas vezes, o fine dining pode evocar ligações emocionais com coisas que comíamos quando éramos crianças, por exemplo, mas fá-lo de forma diferente, mais elevada, de certa forma. Acho isso muito especial.