Conta (pelo menos de forma oficial) 25 anos a compor canções e a fazer-se à estrada. As suas composições, em inglês, mas também em português, entranharam-se no quotidiano coletivo, tal como o timbre e a imagem deste jovem acabado de virar cinquentão, que nos acompanha desde o fim dos anos 90. David Fonseca, multifacetado artista que sempre fez o que quis. Lançou mais de uma dezena de discos, foi compositor e cantor dos Silence 4, banda fenómeno na viragem do milénio e depois, quando menos esperava, tornou-se num músico que abandonou de vez o hobby para ser um escritor de canções a tempo inteiro. No meio disto há tempo para balanços? Nem por isso, explica: “Quando me perguntam o que é que está por fazer, honestamente sinto que está tudo por fazer. Não vejo isto como uma espécie de um castelo que estou a construir. A minha missão é andar por esses campos fora e logo se vê o que acontece depois”.
Ainda o podemos ver como um miúdo no recreio, rodeado de instrumentos – agora também de sintetizadores e controladores midi – à procura de algo que quase nunca se transforma na primeira ideia (e ainda bem). “Acontece ainda hoje, que é o eu estar à solta dentro de uma sala com instrumentos musicais. Nunca sei se vou fazer um disco, mais para a esquerda, mais para a direita, não interessa. Não faço a mais pequena ideia e a verdade é que não tenho assim tanto controlo da situação”, diz em entrevista ao Observador. Há ideias que servem de premissa, motivações e intuitos, mas muitas vezes tudo acaba “radicalmente diferente do que estava à espera”. A viagem desconhecida é o que lhe mantém o fascínio por criar, que não se perdeu 25 anos depois de ter começado.
Recentemente, embarcou numa outra aventura, uma rara novidade no leque de projetos que coleciona: compôs a banda sonora da segunda série dos Podcast+ do Observador, “Piratinha do Ar”, algo que em boa verdade sempre desejou. “Foi uma experiência muito interessante. Na minha vida sempre desejei fazer bandas sonoras, até pela minha ligação ao cinema, mas nunca aconteceu. É uma arte que admiro e gostava de ter mais oportunidade de fazer. Este desafio foi como um aproximar de um desejo de fazer bandas sonoras de filmes, neste caso para um podcast e gostei dessa missão. É fazer música para um universo que já está de certa forma definido, no qual entro e que posso tentar traduzir à minha maneira, de forma musical. Atraiu-me muito e foi uma das coisas que mais gostei de fazer este ano.”
[“Paranoia”, o novo vídeo da nova canção de David Fonseca, feita a partir de samples de canções antigas do músico:]
Voltamos ao seu percurso. Cumpridas mais de duas décadas de carreira, David Fonseca explica que olhar para trás seria artificial; apenas uma forma de comemorar o que já fez, e é raro ir por aí. “Da mesma maneira que o meu pai era bancário, não creio que ele, aos 25 anos de carreira, se tenha sentado a pensar no balanço desse percurso. Esse olhar para trás acaba sempre por ser um pouco artificial no sentido em que serve para comemorar algo que já sucedeu. Tenho mais fascínio por querer continuar a fazer coisas, do que a olhar para as que fiz”. Mas a ocasião motiva pelo um facto inegável, livre de saudosismos: uma boa história. E uma que faz o músico afirmar: “Tive sempre muita sorte”.
Um breakdancer em Leiria
David Fonseca nasceu na aldeia de Marrazes, no concelho de Leiria, a 14 de junho de 1973. Filho de uma professora e de um bancário, sempre se considerou um miúdo tímido. “Eu tinha as características de um ‘whizz kid’ [alguém que é extremamente bem-sucedido ou competente], era muito fechado, tinha muito boas notas, na altura eu era o melhor aluno da zona centro. Já usava óculos, era o típico nerd, não jogava à bola, ficava sempre na reserva, a única hipótese que tinha de conviver com miúdos era a saltar à corda. Eu era mesmo o retrato do nerd, o desgraçado”, disse em entrevista à NIT.
Já estava, no entanto, muito ligado ao universo da artes. Na música que ouvia, nos filmes que via e, por estranho que isso pareça – até para o próprio – na dança que gesticulava como extensão onírica dessa sua timidez. No fim dos anos 80, conta-nos, teve um “crush” no breakdancing. “Fiquei vidrado naquilo e fazia demonstrações em frente a turmas da minha escola, o que era uma coisa absurda vinda da pessoa que era… esse impulso não deixa de ser interessante, é uma coisa muito pública, muito exposta, mas que me dava muita alegria”. Por essa altura, Leiria era a cidade da infância e da adolescência, mas de onde só queria fugir. “Gostava de morar lá, era muito calmo, mas no alto dos meus 16 anos não era nada disso que queria no meu futuro”, explica.
Aí voltam as memórias dos filmes. “Lembro-me de nessa altura ter ido a um cinema que se chamava Cine-Bingo e de assistir a uma matiné em que vi alguns filmes do Spike Lee. Foi quando vi pela primeira vez o ‘Do the Right Thing’ [1989], que em português tinha o nome horrível de ‘Não Dês Bronca’. Tinha lido no jornal que o Spike Lee era o realizador a seguir e que era uma nova voz daquela geração e a verdade é que o filme me passou a ferro por várias razões. Pelas mensagens que tinha e por espelhar uma realidade que embora não tivesse nada a ver com a minha, o número de aspetos em comum era enorme. Havia coisas ali com as quais facilmente me identificava, mesmo sendo um mero habitante de Marrazes, em Leiria. Isso fascinou-me e mostrou-me que algures podia existir um mundo com o qual me identificava, mas que não era em nada parecido com o meu”.
Com Spike Lee chegou ao jazz do Brandford Marsalis, quando viu, logo de seguida, “Mo’ Better Blues”. “Uma recordação que tenho é de ter saído do cinema e ter ido à loja de discos comprar a banda sonora do filme.” Falava muito alto a vontade de ver o mundo, de absorver experiências que até ali só tinha podido fazer através da fotografia – outro hobby que sempre o acompanhou. “Tinha uma vontade enorme de conhecer o mundo. Acho que nunca soube como fazê-lo, porque sempre fui uma pessoa tímida.” Encontrou uma primeira fórmula na fotografia, como forma de se relacionar com o mundo. “Desde os 15 anos passei a andar com uma máquina fotográfica e cheguei a fazer o meu próprio laboratório de revelação em casa, numa casa de banho improvisada para o efeito. Parecia que estava a construir uma coisa em segredo”, relata.
Lisboa, Leiria e um escritor de canções a partir do seu quarto
Do pequeno mundo de referências que ia construindo, Lisboa passou a ser o destino. Inscreveu-se na Faculdade de Belas-Artes, mas o objetivo era indefinido. “Na altura, ser fotógrafo não era bem uma profissão. Então fui para Belas-Artes e pus na cabeça que ia ser designer de comunicação, mas nem imagino como é que alguma vez isso me passou pela cabeça. Estive lá um ano e chumbei a praticamente todas as disciplinas em que estava inscrito. Passava o tempo a vaguear por Lisboa, numa altura em que havia muita gente a tocar guitarra acústica e foi quando ganhei o mesmo bichinho”, conta.
Na indefinição e já depois de ter estudado na Escola Superior de Teatro e Cinema, voltou para Leiria e para casa dos pais. Seria o início de uma outra aventura muito marcante. “Fui para casa dos meus pais e passei semanas a fio a tentar ocupar o meu tempo. Foi assim que nasceram os Silence 4”, sublinha. Mal sabia nesta altura o fenómeno em que a banda se iria tornar no final daquela década. Naquele momento, explica ao Observador, interessava-lhe compor canções, o melhor que pudesse e que o próprio gostasse de ouvir. Aqui entram mais referências como Robert Smith, dos The Cure, Morrissey, dos The Smiths ou Michael Stipe, dos REM. “Parece que todos tiveram esse historial de voltar a casa para se tornarem músicos, mas de alguma forma porque encontraram no lar esse espaço seguro e confortável e isso é uma mais-valia. Talvez sem a quebra nos meus estudos nada disso nunca teria acontecido”, reflete o músico.
Leiria acabou por ser o sítio onde compôs muitas canções que iria dar forma ao primeiro disco dos Silence4, Silence Becomes It, de 1998. Para o jovem que no ano em que completou 18 anos tinha tido oportunidade de ouvir Nevermind dos Nirvana ou Out of Time dos R.E.M., tudo estava prestes a mudar com aquela banda da qual nunca esperaram nada. “Quando tivemos de fazer o segundo disco, foi tão complexo porque sabíamos que as pessoas esperavam e queriam ouvir, que resolvi novamente voltar para casa dos meus pais. Era, aparentemente, um sitio onde compunha muito bem”, salienta entre risos.
Nesses primeiros passos, nada fazia prever que aquela banda tivesse algum tipo de destino ou apeadeiro onde assentar. “A preocupação era fazermos uma canção o melhor que podíamos. Não estávamos propriamente certos de que aquilo ia ser ouvido por alguém, talvez apenas por amigos e pessoas mais próximas. Não sabíamos que se iria tornar assim tão grande. Mas havia a preocupação de fazer o melhor que podíamos e isso é algo que trouxe para o resto da minha vida. Fazer uma canção continua a ser algo muito particular e de abrir o coração”, diz. Mas certo é que persistiram: enviaram uma maquete para o jornal Blitz, conseguindo alguma notoriedade, concorreram ao Festival Termómetro Unplugged e ganharam. Entre avanços e recuos, chegou o convite da Polygram. Foi assim que surgiu o disco de estreia, que alcançou, contra todas as expectativas, a quíntupla platina, passando vários meses em número 1 do top nacional de vendas.
Um mundo na estrada e uma carreira a solo ao virar da esquina
Para quatro jovens – David Fonseca, mas também Sofia Lisboa, Rui Costa e Tozé Pedrosa – a realidade tinha acabado de mudar. Estava ao nível da fantasia. 90 concertos em seis meses, vários momentos e canções inesquecíveis e um segundo disco, Only Pain Is Real, lançado em 2000. Vista as coisas, a banda que foi um dos maiores fenómenos da década de 1990 no campo da música em Portugal, tem um lugar especial na vida de David Fonseca, mas hoje o compositor não está certo que tenha realmente mudado o seu paradigma como músico. “A única coisa que nos diferenciava seriam as nossas referências, que era muitos dispares e nada mainstream. Eu era muito apaixonado pelos discos de R.E.M. ou pelos Grant Lee Buffalo, era apaixonado por jazz… a única coisa é que se percebeu que uma banda portuguesa cantar em inglês não era o fim do mundo e isso abriu um precedente enorme, mas teve a ver com o público que mostrou essa disponibilidade. Foi algo que aconteceu, mas não sinto que tivéssemos feito algo de particularmente diferente. Tivemos foi muita sorte as pessoas gostarem tanto daquelas canções.”
Certo é que a nostalgia nunca foi um aspeto determinante na vida do músico. Terminada a aventura dos Silence 4, seguiu-se um caminho que não deixou de ser de autodescoberta. Um ano depois do fim da banda, surge, em 2003, um primeiro disco a solo, Sing Me Something New e dois anos depois um segundo, Our Hearts Will Beat As One. “Novamente, tive muita sorte. Os primeiros dois discos eram altamente experimentais e as pessoas queriam ouvi-los e saber o que é que eu estava a fazer. Isso para mim foi uma surpresa.” Pelo meio, um projeto que se tornou inesquecível, “Humanos”, dando voz a temas inéditos de António Variações ao lado de Manuela Azevedo e Camané. O sucesso do disco culmina em três espetáculos nos Coliseus de Lisboa e Porto e uma atuação no festival Sudoeste.
“Durantes estes primeiros anos, achava sempre que estava só a fazer uma experiência, mas que eventualmente iria regressar à minha vida. E depois curiosamente, ao terceiro disco, foi a primeira vez na minha em que pensei ‘se calhar sou mesmo um músico e se calhar estou a olhar para isto de forma errada’. Olhava para a música como um hobbie que me dava prazer fazer, mas foi quando pensei que podia ser mesmo a minha atividade e fazer canções que chegassem às pessoas. Isso sim mudou o paradigma da minha carreira – e a forma como passei a ver o mundo criativo depois disso. Já tinha 30 e tal anos e queria fazer algo que fosse pensado por mim de forma séria”. O terceiro disco a que se refere, Dreams in Colour, afirmou-o como uma das vozes da sua geração, numa altura em que já acumulava nomeações para os MTV European Music Awards.
Seguiram-se anos de digressões, de coliseus esgotados e mais discos, o último deles, lançado em 2022, a que chamou Living Room Bohemian Apocalypse, lançado de forma independente, sem a editora que o acompanhara desde o primeiro disco. “Estive quase todos estes anos com a Universal, mas tive sorte porque eles sempre me incentivaram a ser um artista independente. Nunca tive quem me impusesse algum tipo de coisa. A razão para este disco não tem a ver com nenhuma razão específica senão apenas com o facto de nunca ter lançado um disco eu mesmo – olhando para todo o processo do início ao fim”, explica. De qualquer forma, sempre se viu como um artista independente, não tem rodeios em afirmá-lo. “A música nunca foi uma imposição e a minha preocupação continua a ser a de fazer boas canções que cheguem às pessoas.” Não deixa de suscitar uma reflexão.
“Acho que cada vez mais os artistas querem ser independentes porque há sempre o medo que a música seja engolida por uma máquina que é maior do que eles e porque querem segurar a trajetória da sua carreira; ou então por pura necessidade. Não foi o meu caso. Sempre me considerei um artista independente, embora associado a uma multinacional, mas foi sempre um percurso livre”.
O entusiamo para um “I guess I’ll try again tomorrow”
Aos 50 anos mantém o mesmo entusiasmo pela estrada, por dar concertos e por criar – musicalmente ou extravasando esse domínio. Mas se tivesse de eleger os passos dados nessa jornada, escolheria sempre os palcos. “Continuo a achar que faço muitas coisas divertidas na minha vida, mas nenhuma como um concerto ao vivo. Não há nada que se compare a um bando de malucos em cima de um palco a tocar, com luzes a acender e a apagar, com todas as coisas absurdas que só fazem sentido no palco. É uma fantasia em que temos a sorte de ter pessoas à nossa frente que embarcam nessa loucura, onde por duas horas não existe mais nada senão aquele momento. Nem creio que nos batam palmas a nós, artistas… batem palmas à alegria de se poderem esquecer, por momentos, das coisas difíceis da vida e de entrarem num universo que é alegre e feliz. É uma festa interior que acontece ali e que só quem está é que pode testemunhar”, sintetiza.
Melómano assumido, continua a fascinar-se por novos artistas. Para já, está bem acompanhado por Arlo Parks ou Little Simz. Já no panorama musical muito mudou desde então, o que também é motivo de satisfação. “O cenário alterou-se bastante – veja-se Leiria, com tantos projetos incríveis – e na maioria para o melhor. O mundo já não é o mesmo. Houve uma democratização do acesso a ser-se criativo e a poder-se fazer música. Hoje podemos fazer música no quarto e isso está acessível a pessoas que não sabem tocar uma única nota musical. É incrível.”
David Fonseca tem orgulho em 25 de profissão e em saber, com boa dose de conforto, que a incerteza dos primeiros anos se transformou numa forma convicta de estar na vida. “Muitas vezes digo que estou a levar um hobby longe demais, neste caso há 25 anos, mas ainda bem que assim é.”