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Aquela senhora de cabelo grisalho, que a propósito da privatização do Metro do Porto, no pico do verão, procura misturar a mensagem do Bloco de Esquerda com a paisagem, ao largo da estação da Câmara de Gaia, está prestes a embarcar numa viagem que a há-de levar à Assembleia da República, embora não o saiba.
Por entre a multidão e o tempo que passa, dá entrada na linha número um daquela acção política o tema das legislativas e da composição das listas do Bloco no distrito do Porto. “A Domicília aceita?”, perguntam, e a Domicília primeiro pensa que os companheiros “estão na brincadeira”, só depois vê “que era a sério”. “E a Domicília aceita? Entrar na lista em quarto lugar?“, insistem, e a Domicília aceita, sem reserva ou ambição: “Pode ser em quarto ou em décimo lugar, qualquer coisa serve, foi o que disse na altura. Esperava que o partido tivesse uma boa votação, mas não esperava tanto. Apanhou-nos desprevenidos a todos”.
Ao cabo de um trimestre e de uma campanha eleitoral sobre esses primeiros passos de uma jornada surpreendente, a mulher que tinha ido à Avenida da República semear propaganda, em Vila Nova de Gaia, apanhou o comboio do Parlamento com a eleição de 4 de Outubro, contados os 106.954 votos que o Bloco reuniu no Porto.
“Encaro este resultado com sentido de responsabilidade. Não estava a contar com isto.” As confissões têm mais caminho por onde andar. Domicília Costa, 69 anos, residente em Oliveira do Douro, diz-se preparada para deixar para trás o percurso “casa-Porto-casa”, que de tão batido a faz encolher os ombros e aceitar que essas pequenas voltas ao seu mundo particular a tenham levado mais longe do que alguma vez imaginara: “Olhe, há rotinas que terei de alterar, somos animais de hábitos. Vou ter de me aplicar a fundo”.
Esquerda, volver
A eleição de Domicília é o mais recente capítulo de uma história que começou antes de haver Bloco de Esquerda. Vem este encontro de mentalidades do tempo da Política XXI, a propósito de campanhas pela despenalização do aborto: “O assunto interessava-me. Ia-me encontrando com eles em manifestações, as pessoas iam-me reconhecendo. Cheguei a acompanhar leituras de sentenças de enfermeiras e de mulheres que tinham feito abortos, em Aveiro e Matosinhos“.
Em 1999 o Bloco aparece no mapa partidário nacional. E a sede do Bloco de Esquerda aparece, no mapa da cidade do Porto, na rua da Torrinha. É por essa porta aberta que Domicília entra, pela mão de um dos filhos, tem dois, e esse começara a “habitar” aquele espaço recente de novas movimentações políticas, levado até lá por amizades da Universidade de Letras.
“Os amigos do meu filho começaram a dizer ‘a tua mãe pode passar por aqui’. Eu começava a pegar em alguns papéis e a ajudar, embora sem grande regularidade no início”
A mãe, embora mantendo posição independente – ainda hoje não encontra motivo para se filiar no partido – logo se torna num elemento activo daquela comunidade: “Os amigos do meu filho começaram a dizer ‘a tua mãe pode passar por aqui’. Eu começava a pegar em alguns papéis e a ajudar, embora sem grande regularidade no início”. Passara quase uma década sobre o fim da militância no Partido Comunista Português, que é como quem diz, passavam quase dez anos sobre as ruínas de uma vida inteira, que os factos apontam ao ano de 2001. Uma outra esquerda despontava e Domicília estava lá.
O PCP e a clandestinidade
Aceita que lhe digam que nasceu comunista, ela, filha de Antero da Costa, que cresceu com nome diferente do nome de baptismo, que ficou pelo caminho na escola aos 8 anos, da segunda para terceira classe, que aprendeu desde muito cedo a calar o que ouvia, a fechar os olhos ao que via, a saber interpretar as coisas do esquecimento e a ficar com elas sem delas dar conta aos outros, ela, cuja árvore familiar a clandestinidade podou e a reduziu às partículas elementares, ao pai e à mãe, e às vezes ao “primo”.
Já depois do 25 de Abril de 1974, mulher casada e com ramos próprios, descendentes, com eles ainda pequenos, os filhos, procurava estar em todas, e estar em todas era estar onde o Partido Comunista precisasse que ela estivesse.
“Batia textos à máquina, pintava faixas”, fazia tudo, pertencia ao “Movimento Democrático de Mulheres”. E com os filhos pequenos, no Partido, montava barraquinhas, armava a mesa do campismo, vendia croquetes, rissóis, bolos à fatia: “Oferecíamos o bolo. E se queríamos comer, pagávamos”. E assim sucessivamente, durante anos, até ao momento em que família e partido deixaram de ser entendidos enquanto sinónimos.
Em 1991 sucumbiu um conceito que a experiência de vida acumulara, o de comer e calar. “O PCP tinha uma orientação muito rígida”. Domicília Costa saiu “em solidariedade com aqueles que bateram o pé à Direcção Nacional”. Em causa estavam opções estratégicas: “Se não tivessem apoiado os golpistas contra o Gorbachev, não teria saído. Fiquei desgostosa. O PCP devia ser mais flexível, mais aberto. Temos liberdade de pensamento”.
Uns bons quarenta anos mais cedo, e tal como no fim da ligação ao PCP, no princípio, essa mesma propensão à liberdade e ao pensamento, fez desaparecer a família do radar do musculado Estado Novo. A decisão do carpinteiro Antero da Costa traça o destino da família.
Domicília tem 8 anos quando deixa de ser Domicília. Passa a ser Deolinda, nome que a acompanha durante a clandestinidade, e logo a partir da infância. Despedem-se da família em Alhandra, o pai abandona a Fábrica da Figueira, conhecida como Fábrica Nacional de Penteação de Lãs, e vão viver para Lisboa. “Foi a um mês de eu transitar para a terceira classe. Eu já tinha mudado de escola duas vezes. A directora da escola nova disse à minha mãe que o Ministério já não autorizava outra mudança, que era preciso apresentar uma morada. Como a minha mãe não podia dar a nossa morada, deixei de ir à escola“.
A escolaridade que o modo de vida clandestino interrompeu só seria retomada já depois do 25 de Abril de 1974. Deolinda tinha 29 anos quando concluiu a 4ª classe, em Paris. Em tempo mais precoce, por Lisboa, ficara ao cuidado de duas amas colectivas, “senhoras de bastante idade, cada uma tomava conta de vinte ou trinta crianças”, a mãe informara-se no partido e arranjara onde deixar Domicília, perdão, Deolinda.
O primeiro trabalho arranjado aos pais na clandestinidade nada tinha em comum com arte carpinteira de Antero, mais fadado para procurar ofício numa carpintaria da capital, mas que não, o PCP possuía ideia diferente: “Foi-lhes confiada uma tipografia. O meu pai não percebia nada daquilo, mas o trabalho intensificou-se e ele aprendeu. Eram lá feitos dois jornais clandestinos, O Camponês e O Corticeiro. O Camponês era destinado ao trabalhadores agrícolas do Alentejo e do Ribatejo. O Corticeiro era mais distribuído no Seixal e no Montijo”.
No já de si curto horizonte das relações humanas, pouco espaço para amizades e namoricos “nem pensar”. E havia ainda a perspectiva ambígua do tal “primo”: “Era do partido. Tinha de dizer aos vizinhos que era nosso primo. E nas duas vezes em que nossa família verdadeira nos visitou, não podia falar do primo. Habituei-me desde muito cedo a contar o que podia ser contado”.
Por estes (e outros) dias
A deputada do Bloco de Esquerda, pensionista, chegou a integrar, nos anos de 1980, as listas do PCP para a Assembleia de Freguesia de Oliveira do Douro. Pagou os estudos universitários dos filhos com a pensão do marido, antigo funcionário público. Sem pensar duas vezes, considera “uma incógnita” o que por aí vem, em termos políticos, que “ninguém pode prever a duração da legislatura”, falando mesmo, a esse propósito, de uma clara mudança de rumo: “O país está a precisar de entendimentos à esquerda, sem mexer nos princípios de cada partido”.
Avança para a Assembleia da República com alvos bem definidos: combate ao desemprego em todas as faixas etárias, a situação dos trabalhadores precários, os pensionistas, a assistência médica hospitalar e a violência doméstica estão no topo da lista. Está, ao fim e ao cabo, a levar para as prioridades do parlamento a matriz social do trabalho que tem desenvolvido ao longo dos últimos, nas mais diversas associações, em regime de voluntariado.