912kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

MARIO CRUZ/LUSA

MARIO CRUZ/LUSA

De Deolinda a Domicília, da clandestinidade ao parlamento

Episódios da clandestinidade, o Partido Comunista Português, a esquerda e uma eleição em Bloco. O trilho político de Domicília Costa, nova deputada da Assembleia da República.

    Índice

    Índice

Aquela senhora de cabelo grisalho, que a propósito da privatização do Metro do Porto, no pico do verão, procura misturar a mensagem do Bloco de Esquerda com a paisagem, ao largo da estação da Câmara de Gaia, está prestes a embarcar numa viagem que a há-de levar à Assembleia da República, embora não o saiba.

Foto: Paulete Matos

Foto: Paulete Matos

Por entre a multidão e o tempo que passa, dá entrada na linha número um daquela acção política o tema das legislativas e da composição das listas do Bloco no distrito do Porto. “A Domicília aceita?”, perguntam, e a Domicília primeiro pensa que os companheiros “estão na brincadeira”, só depois vê “que era a sério”. “E a Domicília aceita? Entrar na lista em quarto lugar?“, insistem, e a Domicília aceita, sem reserva ou ambição: “Pode ser em quarto ou em décimo lugar, qualquer coisa serve, foi o que disse na altura. Esperava que o partido tivesse uma boa votação, mas não esperava tanto. Apanhou-nos desprevenidos a todos”.

"Pode ser em quarto ou em décimo lugar, qualquer coisa serve, foi o que disse na altura. Esperava que o partido tivesse uma boa votação, mas não esperava tanto. Apanhou-nos desprevenidos a todos."

Ao cabo de um trimestre e de uma campanha eleitoral sobre esses primeiros passos de uma jornada surpreendente, a mulher que tinha ido à Avenida da República semear propaganda, em Vila Nova de Gaia, apanhou o comboio do Parlamento com a eleição de 4 de Outubro, contados os 106.954 votos que o Bloco reuniu no Porto.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Encaro este resultado com sentido de responsabilidade. Não estava a contar com isto.” As confissões têm mais caminho por onde andar. Domicília Costa, 69 anos, residente em Oliveira do Douro, diz-se preparada para deixar para trás o percurso “casa-Porto-casa”, que de tão batido a faz encolher os ombros e aceitar que essas pequenas voltas ao seu mundo particular a tenham levado mais longe do que alguma vez imaginara: “Olhe, há rotinas que terei de alterar, somos animais de hábitos. Vou ter de me aplicar a fundo”.

Esquerda, volver

A eleição de Domicília é o mais recente capítulo de uma história que começou antes de haver Bloco de Esquerda. Vem este encontro de mentalidades do tempo da Política XXI, a propósito de campanhas pela despenalização do aborto: “O assunto interessava-me. Ia-me encontrando com eles em manifestações, as pessoas iam-me reconhecendo. Cheguei a acompanhar leituras de sentenças de enfermeiras e de mulheres que tinham feito abortos, em Aveiro e Matosinhos“.

Em 1999 o Bloco aparece no mapa partidário nacional. E a sede do Bloco de Esquerda aparece, no mapa da cidade do Porto, na rua da Torrinha. É por essa porta aberta que Domicília entra, pela mão de um dos filhos, tem dois, e esse começara a “habitar” aquele espaço recente de novas movimentações políticas, levado até lá por amizades da Universidade de Letras.

“Os amigos do meu filho começaram a dizer ‘a tua mãe pode passar por aqui’. Eu começava a pegar em alguns papéis e a ajudar, embora sem grande regularidade no início”

A mãe, embora mantendo posição independente – ainda hoje não encontra motivo para se filiar no partido – logo se torna num elemento activo daquela comunidade: “Os amigos do meu filho começaram a dizer ‘a tua mãe pode passar por aqui’. Eu começava a pegar em alguns papéis e a ajudar, embora sem grande regularidade no início”. Passara quase uma década sobre o fim da militância no Partido Comunista Português, que é como quem diz, passavam quase dez anos sobre as ruínas de uma vida inteira, que os factos apontam ao ano de 2001. Uma outra esquerda despontava e Domicília estava lá.

O PCP e a clandestinidade

Aceita que lhe digam que nasceu comunista, ela, filha de Antero da Costa, que cresceu com nome diferente do nome de baptismo, que ficou pelo caminho na escola aos 8 anos, da segunda para terceira classe, que aprendeu desde muito cedo a calar o que ouvia, a fechar os olhos ao que via, a saber interpretar as coisas do esquecimento e a ficar com elas sem delas dar conta aos outros, ela, cuja árvore familiar a clandestinidade podou e a reduziu às partículas elementares, ao pai e à mãe, e às vezes ao “primo”.

"Se não tivessem apoiado os golpistas contra o Gorbachev, não teria saído. Fiquei desgostosa. O PCP devia ser mais flexível, mais aberto. Temos liberdade de pensamento."

Já depois do 25 de Abril de 1974, mulher casada e com ramos próprios, descendentes, com eles ainda pequenos, os filhos, procurava estar em todas, e estar em todas era estar onde o Partido Comunista precisasse que ela estivesse.

“Batia textos à máquina, pintava faixas”, fazia tudo, pertencia ao “Movimento Democrático de Mulheres”. E com os filhos pequenos, no Partido, montava barraquinhas, armava a mesa do campismo, vendia croquetes, rissóis, bolos à fatia: “Oferecíamos o bolo. E se queríamos comer, pagávamos”. E assim sucessivamente, durante anos, até ao momento em que família e partido deixaram de ser entendidos enquanto sinónimos.

Em 1991 sucumbiu um conceito que a experiência de vida acumulara, o de comer e calar. “O PCP tinha uma orientação muito rígida”. Domicília Costa saiu “em solidariedade com aqueles que bateram o pé à Direcção Nacional”. Em causa estavam opções estratégicas: “Se não tivessem apoiado os golpistas contra o Gorbachev, não teria saído. Fiquei desgostosa. O PCP devia ser mais flexível, mais aberto. Temos liberdade de pensamento”.

Domicília tem 8 anos quando deixa de ser Domicília. Passa a ser Deolinda, nome que a acompanha durante a clandestinidade, e logo a partir da infância.

Uns bons quarenta anos mais cedo, e tal como no fim da ligação ao PCP, no princípio, essa mesma propensão à liberdade e ao pensamento, fez desaparecer a família do radar do musculado Estado Novo. A decisão do carpinteiro Antero da Costa traça o destino da família.

Domicília tem 8 anos quando deixa de ser Domicília. Passa a ser Deolinda, nome que a acompanha durante a clandestinidade, e logo a partir da infância. Despedem-se da família em Alhandra, o pai abandona a Fábrica da Figueira, conhecida como Fábrica Nacional de Penteação de Lãs, e vão viver para Lisboa. “Foi a um mês de eu transitar para a terceira classe. Eu já tinha mudado de escola duas vezes. A directora da escola nova disse à minha mãe que o Ministério já não autorizava outra mudança, que era preciso apresentar uma morada. Como a minha mãe não podia dar a nossa morada, deixei de ir à escola“.

A escolaridade que o modo de vida clandestino interrompeu só seria retomada já depois do 25 de Abril de 1974. Deolinda tinha 29 anos quando concluiu a 4ª classe, em Paris.

A escolaridade que o modo de vida clandestino interrompeu só seria retomada já depois do 25 de Abril de 1974. Deolinda tinha 29 anos quando concluiu a 4ª classe, em Paris. Em tempo mais precoce, por Lisboa, ficara ao cuidado de duas amas colectivas, “senhoras de bastante idade, cada uma tomava conta de vinte ou trinta crianças”, a mãe informara-se no partido e arranjara onde deixar Domicília, perdão, Deolinda.

O primeiro trabalho arranjado aos pais na clandestinidade nada tinha em comum com arte carpinteira de Antero, mais fadado para procurar ofício numa carpintaria da capital, mas que não, o PCP possuía ideia diferente: “Foi-lhes confiada uma tipografia. O meu pai não percebia nada daquilo, mas o trabalho intensificou-se e ele aprendeu. Eram lá feitos dois jornais clandestinos, O Camponês e O Corticeiro. O Camponês era destinado ao trabalhadores agrícolas do Alentejo e do Ribatejo. O Corticeiro era mais distribuído no Seixal e no Montijo”.

No já de si curto horizonte das relações humanas, pouco espaço para amizades e namoricos “nem pensar”. E havia ainda a perspectiva ambígua do tal “primo”: “Era do partido. Tinha de dizer aos vizinhos que era nosso primo. E nas duas vezes em que nossa família verdadeira nos visitou, não podia falar do primo. Habituei-me desde muito cedo a contar o que podia ser contado”.

Por estes (e outros) dias 

A deputada do Bloco de Esquerda, pensionista, chegou a integrar, nos anos de 1980, as listas do PCP para a Assembleia de Freguesia de Oliveira do Douro. Pagou os estudos universitários dos filhos com a pensão do marido, antigo funcionário público. Sem pensar duas vezes, considera “uma incógnita” o que por aí vem, em termos políticos, que “ninguém pode prever a duração da legislatura”, falando mesmo, a esse propósito, de uma clara mudança de rumo: “O país está a precisar de entendimentos à esquerda, sem mexer nos princípios de cada partido”.

Avança para a Assembleia da República com alvos bem definidos: combate ao desemprego em todas as faixas etárias, a situação dos trabalhadores precários, os pensionistas, a assistência médica hospitalar e a violência doméstica estão no topo da lista. Está, ao fim e ao cabo, a levar para as prioridades do parlamento a matriz social do trabalho que tem desenvolvido ao longo dos últimos, nas mais diversas associações, em regime de voluntariado.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.