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Para além dos projetos internacionais, a Santa Casa procurou também diversificar no mundo digital

Corbis via Getty Images

Para além dos projetos internacionais, a Santa Casa procurou também diversificar no mundo digital

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De Moçambique ao Brasil e Peru com um salto no Metaverso. O que correu mal na aventura internacional da Santa Casa

De Angola a Moçambique, do Brasil ao Peru. Santa Casa chegou a prever investir 50 milhões. Tutela deu aval inicial, mas travou face à falta de resultados, a percalços vários e dúvidas sobre decisões.

Angola, Moçambique, Brasil, Peru e Países Baixos. Estes foram os mercados identificados na estratégia de internacionalização da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Desde 2018, e para compensar os efeitos esperados da perda de apostadores para o jogo online, que a instituição procurava alternativas de receitas. Estas alternativas passaram também pelo mundo digital. A instituição avaliou a exploração do jogo no Metaverso e desenvolveu a criação de NFT (ativos não fungíveis) a partir do espólio do Museu de São Roque.

O projeto internacional da Santa Casa chegou a ter um orçamento anual de 50 milhões de euros (em 2020) e planos para a abertura do capital a um parceiro, mas os resultados muito aquém das expetativas, sobretudo na comparação entre os valores aplicados e o retorno, levaram as campainhas a soar e o Ministério da Segurança Social a pedir uma auditoria independente. A instituição terá entretanto decidido cancelar a parceria com o Banco de Brasília, o maior projeto internacional da Santa Casa, segundo revelou esta segunda-feira o jornal Público, para evitar mais risco de perdas.

A auditoria deve estar concluída até ao final do mês e, até lá, fonte oficial da Santa Casa diz apenas que “nada mais tem a acrescentar”.  A provedora Ana Jorge já revelou no Parlamento que as conclusões preliminares apontam para a existência de irregularidades que passam, entre outras, pela realização de investimento sem autorização da tutela que tinha sido pedida expressamente, precisou a ministra Ana Mendes Godinho também perante os deputados.

O ex-provedor, e grande defensor da internacionalização, contrariou este entendimento da ministra, considerando que a autorização necessária foi dada em 2020 quando Ana Mendes Godinho deu luz verde à criação de uma nova empresa com foco em operações nos PALOP.  Edmundo Martinho vincou que os investimentos estavam nos orçamentos e planos de atividade que a tutela aprovou.

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Ana Jorge, provedora da Santa Casa, foi ao Parlamento explicar problemas da Santa Casa.

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O ex-provedor prestou declarações ao Observador e à RTP, mas não foi ainda ouvido no Parlamento porque o PS chumbou a sua audição com o argumento de que queria esperar pelo resultado final da auditoria. Edmundo Martinho saiu do cargo de provedor da Santa Casa em abril de 2023, antes do fim do seu mandato e a pedido de Ana Mendes Godinho — ministra com a tutela única da instituição — e que, segundo o testemunho que deu ao Observador, nunca o chamou nem lhe pediu explicações sobre as operações internacionais. Mas antes de sair, Martinho pediu à Santa Casa Global, o braço empresarial criado para gerir as operações internacionais, um ponto da situação.

Ex-provedor da Santa Casa responde a ministra: tutela foi informada e aprovou valores para internacionalização

O documento de abril consultado pelo Observador refere expressamente investimentos de 120 milhões de reais no Brasil (cerca de 22 milhões de euros) na exploração das lotarias do Rio de Janeiro e São Paulo e reconhece que os resultados “que continuamos a obter estão longe do planeado”. Apesar de reconhecer desaires no Brasil e no Peru, este balanço considera que houve alguns resultados positivos — as apostas desportivas online em Moçambique, o estudo de viabilidade que aponta para a obtenção de uma licença de operador digital nos Países Baixos e a parceria com o Banco de Brasília para exploração do jogo no distrito federal (que veio a encalhar mais tarde). E confia mesmo que 2023 seria o “ano decisivo para o projeto de internacionalização e para a Santa Casa Global”.

O documento assinala ainda avanços significativos no projeto do Metaverso, tendo sido criadas as condições para realizar um estudo para avaliar as potencialidades desta tecnologia (que cria mundos virtuais acessíveis pela internet, mas que para atingir o potencial exige o uso de óculos de realidade virtual pelo utilizador) na atividade do jogo. Referindo a crescente procura do Metaverso para desenvolver atividades económicas e a aposta de marcas e organizações com a mobilização de recursos financeiros expressivos, o documento considera que esses sinais podem antecipar uma mudança de comportamentos e hábitos de consumo a que Santa Casa “deve estar atenta”, já que são novas oportunidades que podem representar um salto importante nas atividades da instituição.

A Santa Casa começou a materializar os planos internacionais em 2020, ano em que a ministra Ana Mendes Godinho deu autorização para a constituição de uma nova empresa, a Santa Casa Global, para explorar estas oportunidades, e que nasce com um capital social de cinco milhões de euros. Segundo afirmou a ministra no Parlamento, só foi dada autorização para gastar cinco milhões de euros, mas acabaram por ser gastos, ou comprometidos, cerca de 30 milhões de euros…. dos quais o grosso ficou no Brasil.

Ministra diz que não autorizou investimentos da Santa Casa Global (que tinham de ter aval da tutela)

Aposta no Brasil. Pandemia, parceiro pouco cooperante e dúvidas legais

O já mencionado documento preparado pela Santa Casa Global, a pedido do ex-provedor, reconhece que os resultados “que continuamos a obter estão longe do planeado”. Para o desaire, são apontados vários fatores. A começar pela pandemia e os diversos períodos de confinamento no Estado do Rio de Janeiro, que reduziram de forma drástica o jogo físico.

Depois da pandemia veio a crise económica e financeira, com “redução da capacidade de aquisição das populações de rendimentos mais baixos e que são, habitualmente, os consumidores do produto lotaria”. Lá como cá, os hábitos de jogo mudaram com a força crescente do jogo online e a oferta de apostas desportivas “num mercado cinza” que não paga imposto e permite aos operadores investirem mais em comunicação e marketing, retirando visibilidade ao produto que era explorado pela filial da Santa Casa. É ainda reconhecida a dificuldade de relacionamento com a nova diretoria da Loterj (Lotaria do Rio de Janeiro), “o que tem limitado as nossas iniciativas, com prejuízo evidente para a introdução de inovação e nas mudanças que se torna necessário implementar”.

Em abril era então apontado como importante “definir uma estratégia que nos permita ou recuperar parte do investimento realizado, reduzindo a participação nas empresas e risco associado” ou dotar as empresas de meios financeiros para manterem a operação num mercado tão concorrencial, mas “de elevado potencial”.

O documento refere uma proposta de aquisição destas operações, sem indicar valor, e propõe que se avance para a due dilligence que permita avaliar o negócio ou alternativas.

É ainda assinalada a parceria estabelecida com o BRB (Banco de Brasilia) para a exploração do jogo no distrito federal, que permitia obter condições mais favoráveis nos concursos de concessão a nível estadual. Os desenvolvimentos deste projeto também não foram brilhantes, para já. Isto porque o Tribunal de Contas do Estado suspendeu os seus efeitos, aguardando mais informação do banco público, num processo que dura há vários meses.

A Santa Casa assinou uma side letter a avalizar um empréstimo de seis milhões de euros para esta operação, a conceder à sua subsidiária — a Santa Casa Global Brasil — cuja utilização não foi possível confirmar.  Na notícia do Público, é referido que a decisão de deixar cair esta parceria tem o objetivo de impedir a assunção de compromissos financeiros acrescidos de 14 milhões de euros. São ainda assinaladas investigações judiciais sobre um dos parceiros da Santa Casa Global, bem como uma estrutura jurídica local com várias empresas e sócios.

Os planos para o Brasil passavam também por explorar um produto comparável com o que em Portugal é conhecido pela Raspadinha, mas que tem como finalidade incentivar o consumidor a comprar outro produto — neste caso um plano de saúde odontológico (dentário)  — o Raspaodonto. Considerando que se trata de um produto “com grande alcance nacional” e que interessa a muitos distribuidores que teriam de fazer o pagamento antecipado das encomendas, esta possibilidade era ser vista “com enorme expetativa”, existindo um business plan que previa EBITDA  (resultados operacionais) positivo logo no primeiro ano. Por outro lado, assinalava-se uma maior dificuldade: a existência de um montante inicial elevado de capital.

Outro novo produto era a Vantagemjá, um produto digital que procura compensar a quebra de vendas físicas sentida no Estado de São Paulo. A ideia era iniciar a exploração deste segmento, mas já com os olhos postos na atribuição das licenças a nível federal para o jogo online.

Peru. Do Torito d’Oro à aquisição de empresa e aposta tecnológica 

Não obstante os contratempos, este ponto de situação apontava o Brasil como “uma das componentes mais importantes da estratégia da SCG Portugal e da Santa Casa”, mas requerendo monitorização e controlo do investimento financeiro, modelo de gestão e resultados. Ainda assim, acreditava a gestão da Santa Casa Global, a participada brasileira e a casa-mãe estavam “bem posicionados para se tornar um dos operadores de referência daquele país, situação que a acontecer nos permitirá cumprir com o objetivo que justifica a nossa existência, contribuir para a sustentabilidade financeira da SCML e para o cumprimento da sua missão”.

O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Edmundo Martinho, durante a sua audição na Comissão de Trabalho e Segurança Social, na Assembleia da República em Lisboa, 04 de abril de 2018. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

PS chumbou audição de Edmundo Martinho com argumento de que quer esperar pelo resultado final da auditoria

JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Apesar de não cumprir o perfil de PALOP, o Peru foi um dos mercados alvo identificados pela Santa Casa Global. E foi aqui que se iniciou o primeiro investimento da Santa Casa no quadro do projeto da internacionalização, com a compra de 26% da Ainigma Holdings, uma empresa que controla 61% da Nexlot que, por sua vez, tem a licença de exploração da lotaria Torito D’Oro no Peru e 100% da empresa tecnológica AHS. Na sequência desta aquisição, “considerou-se adequado assinar um contrato obrigacionista com AHS, concedendo-lhe um empréstimo de 4,5 milhões de dólares (4,2 milhões de euros) para assegurar o desenvolvimento de uma plataforma de suporte à operação de venda de lotarias que fosse utilizável nos mercados peruano e angolano.

Também no Peru, os investimentos não obtiveram os resultados esperados. O país tem sido abalado por movimentos de contestação e turbulência política e social que têm penalizado a disponibilidade financeira da população, o que se reflete nos resultados da Nexlot. No Brasil os projetos da Santa Casa sofreram um atraso significativo, enquanto o projeto de Angola foi cancelado, o que obrigou a AHS a ajustar a sua estratégia de atuação e a procurar alternativas com retornos “menos imediatos”, refere ainda o documento.

Moçambique. À procura do lucro nas apostas desportivas online

A presença da Santa Casa em Moçambique é anterior ao projeto de internacionalização e passa pela participada Sojogo, que tem a gestão da exploração de lotarias e apostas mútuas. Foi confiada à nova empresa Santa Casa Global o desenvolvimento do projeto de instalação da plataforma de apostas desportivas online, cuja atividade no país arrancou em 2020 com a gestão da concessão de jogos. Os objetivos passavam por melhorar os resultados e inovar o portefólio, apostando em novas modalidades e, ao mesmo tempo, reduzir a exposição financeira da SCML permitindo recuperar uma parte do investimento feito no passado no pressuposto de que haveria resultados positivos no futuro.

A Sojogo é uma associação sem fins lucrativos da qual a Santa Casa participa, a par de várias entidades do país, e que tem no seu portefólio o totoloto, totobola, a lotaria, o joker e a lotaria instantânea de Moçambique. A entidade tinha una rede postos de distribuição física de 30 agentes em todo o país, mas as máquinas de registo são manuais, o que obriga os agentes a preencher guias e a fechar mais cedo em algumas zonas para enviarem as apostas pelo correio. O escrutínio é manual, mobiliza muitos meios humanos e financeiros e é mais vulnerável a erros. Além de que os concorrentes locais têm serviços mais modernos e oferecem um alcance territorial maior por causa do jogo online.

Em 2021, foi assinado um protocolo entre a Sojogo e a Santa Casa Global Moçambique para a gestão e operação do jogo com a finalidade de otimizar os serviços, o que passou pelo lançamento de uma plataforma online de apostas desportivas.

Em paralelo, e dado o tempo que demorava o primeiro projeto, selecionou-se em 2022 um fornecedor internacional certificado para a lotaria instantânea. Em julho desse ano, foi adjudicada à empresa búlgara Demax a produção de vários milhões de bilhetes de lotaria (o valor não é indicado), tendo a Sojogo iniciado a comercialização no final do ano passado. Mas para garantir o sucesso, foi necessário expandir de forma rápida a rede com parcerias e agentes de vários produtos. Em abril, esta rede de pontos de venda tinha 280 agentes, a esmagadora maioria dos quais em Maputo, estando em curso o esforço para servir outras regiões do país.

No segundo semestre de 2022, foi adjudicada a criação da plataforma de apostas desportivas à BtoBet (por um valor não revelado) e desenvolvido o site Placard com vários jogos para além do desporto — lotaria digital instantânea, lotos, bingos, crash games — uma oferta comparável à dos concorrentes. Os planos previam que a plataforma permitisse aos agentes vender os jogos digitais sem suporte físico. A Placard Moçambique está operacional, mas com um atraso face ao planeado.

Neste ponto de situação, sinalizava-se que 2023 seria o ano para refletir sobre o posicionamento da Santa Casa Global Moçambique e, perante os resultados, decidir sobre o futuro da operação no país no caso de se considerar viável uma atividade lucrativa no futuro. De acordo com as contas consultadas pelo Observador até 2022, a mobilização de recursos financeiros estava próxima dos 900 mil euros, tendo sido reforçada em meio milhão de euros face a 2021.

Outra oportunidade identificada pela equipa da Santa Casa Global foi a possibilidade de obter uma licença de exploração de jogo online (de apostas desportivas e casino) nos Países Baixos, projeto para o qual foi formada uma equipa, tendo sido decidido assumir de forma autónoma a candidatura à licença do jogo online e respetiva operação, uma vez que não eram exigidos requisitos mínimos de capital. Até setembro deste ano, estava prevista a conclusão do processo de obtenção de licenciamento, momento a partir do qual poderia começar a operar. A lei prevê que quem obtenha licença tem seis meses para iniciar a atividade ou desistir do processo. Não há informação sobre se a licença foi obtida e mantida.

A atual provedora Ana Jorge admitiu em entrevista recente que a Santa Casa poderia ter de dar como perdidos os valores investidos no mercado internacional.

Provedora tem poucas esperanças de recuperar investimento internacional da Santa Casa que pode superar 20 milhões

Mas nem na dimensão dos valores, a atual provedora e o antecessor parecem estar alinhados. Ana Jorge referiu na sua audição 27 milhões de euros, mas em declarações ao Observador o ex-provedor afirmou que esse seria apenas o valor do Brasil.

A demonstração de resultados, consultada pelo Observador, indica que além dos cinco milhões de euros de capital inicial, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa injetou mais 18 milhões de euros na Santa Casa Global, a título de prestações acessórias até 2022, ano em que a participação teve uma valorização negativa de 7,6 milhões de euros. Foi ainda constituída uma provisão de 5 milhões de euros, igual ao capital inicial, para cobrir eventuais perdas. Já para Moçambique, estavam registados empréstimos de quase 900 mil euros e constituída uma provisão de 1,78 milhões de euros. As contas de 2021 e 2022 não foram aprovadas pela tutela.

Para além destes registos contabilísticos, em 2022 a Santa Casa tinha assinado cartas de conforto para um empréstimo de um milhão de euros à Sojogo e de dois milhões de euros para a Santa Casa Global. E tinha contratado uma stand by letter of credit (promessa de pagamento ao beneficiário caso este cumpra as obrigações previstas) junto do BPI a favor da Santa Casa Global Brasil, uma operação que estaria relacionada com o arranque da parceria para a exploração do jogo no distrito federal de Brasília.

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