Folha em branco. Meia dose. Rascunho. Fórmula do costume. Naquele que foi o primeiro debate protagonizado por Fernando Medina na Assembleia da República enquanto ministro das Finanças, foram estas as principais críticas da oposição ao Programa de Estabilidade 2022-2026 (PE). Um documento que Medina não elaborou, não entregou, mas defendeu como seu, fruto das circunstâncias.

“O PE foi desenvolvido num contexto de elevada incerteza. O mundo, que ainda não recuperou de mais de dois anos de uma pandemia, enfrenta agora uma nova crise pela invasão da Ucrânia”, começou por dizer o ministro, que rapidamente recorreu à muleta das “contas certas” para justificar aquilo que os partidos da oposição veem como austeridade, mas que o Governo encara como atos de “prudência”.

Quiseram as circunstâncias que este debate ocorresse quando o Orçamento do Estado para 2022 já estivesse entregue”, afirmou, atirando à oposição a culpa por ter chumbado o Orçamento de outubro de 2021, fazendo praticamente coincidir as duas discussões.

No treino para a discussão do OE, que começa na próxima semana, Fernando Medina recorreu também às “circunstâncias”, ou à “conjuntura atual”, para defender os números inscritos no PE. Uma redução do défice para 1,9% este ano, face aos 2,8% do ano passado, uma subida do PIB de 5%, entretanto revista no Orçamento do Estado para 4,9%, à luz das previsões mais recentes de instituições como o BCE e o FMI (que reviu esta semana a sua projeção para 4%),  e um rácio de dívida pública que baixa para 120,7% do PIB em 2022 e que, de acordo com o PE, será de 101,9% do PIB em 2026.

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Com esta política de contenção, defendeu Medina, “ganharemos espaço orçamental para fazer face à incerteza do crescimento e estaremos mais bem preparados para reduzir os impactos de eventuais subidas dos juros“, afirmou, numa ideia que seria repetida em praticamente todas as suas intervenções, até ao encerramento.

Realçando que o PE define uma “estratégia clara” de redução da dívida pública, sendo este o “pilar” do “crescimento sólido, duradouro e sustentado”, Medina foi alimentando a ideia de que a política seguida pelo Governo “permite manter a credibilidade externa do país”. E deixou uma promessa: “Queremos e vamos conseguir tirar Portugal do grupo dos países com a maior dívida pública da Europa”.

Às críticas de “austeridade encapotada” alvitradas pela oposição, o ministro das Finanças insistiu que o debate do PE versa “sobre a antecipação do futuro e estratégias para construirmos esse futuro”.

E acusando a oposição de defender a baixa de impostos como “solução para qualquer problema”, o ministro notou ainda que “por mais que queiram tresler os números, a conclusão é uma: tirando o intervalo da pandemia, conseguimos convergir com os países mais avançados da zona euro.”

“Não caímos na política simplista do ‘agora aumente-se tudo e depois logo se vê’. Esta é a melhor forma de conduzir o debate sobre PE. É desta forma, enfrentando conjunturas e dificuldades das conjunturas, com uma visão lúcida sobre o caminho a percorrer, que procuramos robustecer resiliências para períodos de maior dificuldade”, rematou, deixando antever que serão as circunstâncias a ditar a evolução da política orçamental da legislatura.

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O que é o ISCTE?

Não era difícil adivinhar que o nome de João Leão seria trazido ao debate do Programa de Estabilidade, ou não tivessem as circunstâncias ditado que fosse o antigo ministro das Finanças a entregar o documento ao Parlamento dois dias antes de deixar o cargo. “Dado o atual contexto de mudança de governo e a necessidade de cumprimento com os prazos estipulados pela Comissão Europeia no âmbito do Semestre Europeu, acordou-se com as autoridades europeias apresentar um Programa de Estabilidade que, apesar de incluir as medidas previstas no OE2022, o PRR e as medidas de emergência relacionadas com a pandemia e a invasão da Ucrânia, ainda não considera o impacto das outras medidas previstas no programa do XXIII Governo Constitucional”, lê-se no documento de 51 páginas entregue a 28 de março.

Mas foram outras as circunstâncias que fizeram ressurgir no debate o nome do antecessor de Fernando Medina. Coube ao deputado da Iniciativa Liberal, Carlos Guimarães Pinto, mencionar o elefante que entrou na sala do Governo nos últimos dias: a nomeação de João Leão para vice-reitor do ISCTE dois dias depois de ter saído do Governo, e de ter negociado o cargo enquanto ainda estava no Governo, e o financiamento de 5,2 milhões de euros previsto no OE 2022 para o Centro de Valorização de Transferência de Tecnologias (CVTT) da instituição lisboeta, que teve luz verde do ministério das Finanças liderado por Leão.

“Este documento não foi preparado por si, mas pelo seu antecessor, que saiu não sem antes atribuir ao seu futuro empregador um financiamento que não atribuiu a outras instituições. Sabendo que o próprio ministro já foi curador do ISCTE, tenho uma dúvida muito abstrata: O que é o ISCTE?”, questionou o deputado da IL, enumerando as ligações do PS à instituição, que passam por assessores e “dois terços dos alumnae políticos” da instituição, que “tem crescido bastante com a ajuda do PS”.

“O ISCTE é uma instituição pública de ensino superior ou é um satélite do PS com direito a fundos públicos para empregar ex-dirigentes do PS e distribuir diplomas a futuros quadros?”, largou Guimarães Pinto.

A provocação estava feita, mas ainda não foi desta que Medina se pronunciou, remetendo “todos os esclarecimentos” sobre o tema para as audições pedidas pelos partidos, PSD e Chega, ao ex-ministro das Finanças. Acrescentou apenas “simpaticamente” que frequentou a “mesma escola” que Guimarães Pinto, a Universidade do Porto. À mesma hora que Medina adiava explicar “o que é o ISCTE”, João Leão emitia um comunicado. “Enquanto ministro das Finanças não tive qualquer intervenção nesta decisão de financiamento”, garante.

Projeto do ISCTE. João Leão garante que não teve “qualquer intervenção” na decisão de financiamento”

Um filme chamado Novo Banco

Foram também as circunstâncias que fizeram aterrar no debate um tema que, apesar de o Governo garantir estar arredado do Orçamento do Estado, não deixará tão cedo de estar arredado do debate político: o Novo Banco. Minutos antes do arranque da discussão do PE, Mariana Mortágua tinha falado aos jornalistas, no Parlamento, sobre a mais recente e confidencial auditoria da Deloitte à instituição, apelando para que os resultados do exame sejam tornados públicos. A deputada bloquista não deixou passar a oportunidade de confrontar o novo ministro das Finanças com “uma pergunta muito concreta” sobre o tema, dando origem a uma das intervenções mais acesas de Fernando Medina no debate.

“O Novo Banco já consumiu 3,5 mil milhões de euros da garantia de 3,9 mil milhões que, segundo os seus antecessores, não iria ser utilizada. Há, no entanto, um financiamento encapotado ao Novo Banco que vai custar ao Estado mais de 750 milhões de euros segundo a auditoria da Deloitte. Todos os anos o Estado injeta mais dinheiro no banco por conta deste mecanismo. Chama-se ativos por impostos diferidos [DTA]. 154 milhões em 2017, 99 milhões em 2018 e 128 milhões em 2020. Em janeiro de 2022, a AT aprovou uma nova injeção no Novo Banco: 133 milhões”, começou por explicar Mariana Mortágua.

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“Ouvi o senhor ministro a dizer que o OE não traria nem mais um cêntimo para o Novo Banco. Mas o PE tem mais 138 milhões para ativos por impostos diferidos. Este dinheiro prevê uma nova injeção no Novo Banco?”, questionou a deputada, ressalvando que o contrato do Estado com a instituição “é desastroso”.

Na resposta, Medina não poupou Mortágua, acusando a deputada de procurar uma “segunda temporada” para uma história que “não existe”. “Fui muito claro em dizer que não está prevista nenhuma transferência para o Novo Banco. Não irá acontecer. Tenho a certeza que no dia da entrega do OE foi a correr verificar se lá constava ou não. Não consta. Uma vez que não consta aquilo com que se bateu ao longo dos anos para que não constasse, não procure criar uma nova história, inventando uma transferência que não existe”, atacou Medina.

Segundo o ministro, a transferência em causa referida por Mortágua não decorre do mecanismo de base contratual mas da aplicação da legislação, que irá permitir a conversão em capital dos DTA. “A sua história relativamente ao Novo Banco acabou. Se quiser criar uma outra contará, mas como todas as segundas temporadas, possivelmente não terá o sucesso da primeira”.

O ministro das Finanças não ficou sem resposta, já que Mariana Mortágua usaria breves segundos do tempo de intervenção que lhe restava para apresentar o projeto de resolução do Bloco contra o PE para defender que a “primeira temporada” da série Novo Banco “foi um desastre de bilheteira”. Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos.

Não há tempo? O Governo dá

A circunstância da maioria absoluta deixa o PS numa posição confortável perante as críticas da oposição ao PE. Foram apresentados sete projetos de resolução com vista a constituírem-se como alternativa ao documento, por iniciativa de PCP, Bloco, PSD, Chega, Livre e Iniciativa Liberal. Apenas um, do Chega, propõe a rejeição da proposta do Governo. Mesmo que sejam aprovados, não serão vinculativos. A discussão sobre as propostas dos partidos foi tão parca, que quase não houve tempo para que as forças políticas defendessem as suas propostas.

Naquele que foi o momento mais caricato da discussão, a Iniciativa Liberal, que dispôs de nove minutos para intervir no total, recebeu um crédito de um minuto, cedido pelo próprio Governo, deixando o próprio Cotrim de Figueiredo atónito. “Recebemos alguma coisa deste Governo, não era sem tempo”, exclamou o deputado.

A IL apresentou uma resolução na qual defende um “Modelo de Desenvolvimento Focado no Crescimento”, nomeadamente medidas como o desagravamento de impostos, mais transparência na gestão dos fundos europeus e a adoção de modelos de gestão privados de serviços públicos, como a saúde e a educação.

O PCP centrou a apresentação da sua proposta (Desenvolver o País, valorizar o trabalho e os trabalhadores, promover a produção nacional, romper com a dependência externa) nos ataques à submissão do Governo a Bruxelas, ao passo que o Bloco, no âmbito do seu projeto de “​​Política orçamental de crescimento da despesa e investimento público”, acusou o Governo de promover “truques sistemáticos” para alcançar as “contas certas”.

Já o PSD optou por recomendar ao Governo “a apresentação de um verdadeiro Programa de Estabilidade incluindo uma estratégia de regresso de Portugal à convergência com os países europeus”.

O Chega apresentou duas propostas, uma delas “Pela Rejeição do Programa de Estabilidade 2022 – 2026, e a segunda como recomendação ao Governo “que complemente o Programa de Estabilidade com um Programa de Investimentos na Defesa Nacional”.

Também houve dois minutos para que Rui Tavares, do Livre, defendesse a sua recomendação ao Governo para “que utilize os programas de Estabilidade para focar os órgãos de governação na transição para um novo modelo de desenvolvimento, incorporando mais indicadores económicos de longo prazo, incluindo indicadores de desenvolvimento sustentável, dando prioridade aos aspetos mais diretamente ligados ao ambiente, qualidade de vida, felicidade, saúde e bem-estar”.

Os sete projetos de resolução que deram entrada na AR serão votados na próxima sexta-feira, no final dos trabalhos parlamentares.