Quando existir o dia, num futuro próximo, em que a braçadeira e o número 4 do Sporting tiverem outro dono que não Sebastián Coates, saberemos que uma era chegou ao fim. O central uruguaio está em Alvalade desde 2016, vai ficar pelo menos mais uma temporada e é um dos bicampeões leoninos que já tinham levantado o troféu em 2021 e que acrescentaram o de 2024. Pelo meio, é o líder incontestado de um grupo.
Com o início da carreira no Nacional de Montevideu, no Uruguai, chegou a entrar no radar do FC Porto e do Benfica depois de conquistar a Copa América de 2011. Seguiu para o Liverpool, onde não teve grande sucesso, e o empréstimo ao Sunderland permitiu-lhe mesmo o voo para Portugal – mas para o Sporting. Ficou nos leões a título definitivo um ano depois, quando já se falava novamente do interesse dos encarnados, e voltou a ficar em 2018 e na sequência da invasão em Alcochete, quando outros rescindiram.
Ao fim de quase uma década de Sporting, Coates já é o estrangeiro com mais jogos pelos leões e pode mesmo chegar à marca das 400 partidas, entrando num clube muito restrito onde estão Manuel Fernandes, Vítor Damas ou Hilário. Pelo meio, tornou-se a extensão de Rúben Amorim dentro de campo, um exemplo para Gonçalo Inácio e Eduardo Quaresma e a figura maior do sucesso recente leonino.
O rapaz “educado e pacato” que custou dez vezes mais do que Luis Suárez
Os quase dez anos de Sporting não apagam a importância do início da carreira de Sebastián Coates, naturalmente no Uruguai, onde se tornou uma das referências de um Nacional de Montevideu a que chegou com apenas 13 anos. Com os pais a trabalhar na Universidade de La República, nem sequer colocava o futebol como principal prioridade na hora de construir uma carreira – algo que nunca o impediu de se tornar o líder de uma geração.
“Ao contrário de muitos miúdos pobres que surgiam no Nacional, o Sebastián não via o futebol como a única saída para a sua vida. Dava primazia aos estudos, naturalmente, até que começou a ser chamado às seleções uruguaias e passou a encarar mais a sério um futuro como profissional de futebol. Antes de ser um excelente jogador, já era o projeto de bom profissional. Um rapaz educado, pacato, mas um líder. Gente simples e um bom companheiro”, contou Daniel Enriquez, antigo coordenador da formação do Nacional, ao MaisFutebol.
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Chegou à equipa principal em 2009, começou a ser convocado para a seleção do Uruguai e conquistou a Copa América em 2011, sendo até eleito o melhor jogador jovem da competição. As exibições atraíam atenção, incluindo a do FC Porto e a do Benfica do mesmo Jorge Jesus que acabaria por contratá-lo para o Sporting anos depois, mas Coates já estava talhado para os outros voos e assinou pelo Liverpool.
“Não estávamos mal financeiramente. Podíamos esperar pela melhor proposta e fizemos um contrato histórico. Para terem uma ideia, uns anos antes, vendemos o Luis Suárez para o Groningen por um valor dez vezes inferior”, acrescentou Daniel Enriquez. A vida em Anfield não foi fácil, com Coates a realizar pouco mais de 20 jogos em duas temporadas, e o central acabou por regressar emprestado ao Nacional e a tempo de ser convocado para o Mundial 2014. Seguiu-se nova cedência ao Sunderland – e o resto é história.
Chegar, ver e quase vencer – e a decisão de ficar quando outros saíram
28 de janeiro de 2016. Numa aparentemente banal manhã de quinta-feira, em pleno mercado de inverno, o Sporting encontrou um capitão. Mesmo que, na altura, estivesse longe de o imaginar. Sebastián Coates chegou a Alvalade nessa quinta-feira, emprestado pelo Sunderland e com uma opção de compra de cinco milhões de euros – opção de compra que seria exercida um ano depois, numa altura em que voltou a falar-se de um reativado interesse do Benfica, com o central uruguaio a assinar contrato até 2022.
Sporting anuncia contratação de Sebastián Coates por empréstimo do Sunderland
Entre a saída de um presidente e a entrada de outro, Coates é a única ligação do plantel do Sporting entre o passado recente do clube e o presente desse mesmo clube. Em 2016, quando chegou a Alvalade para formar dupla com Rúben Semedo no eixo defensivo, o treinador era Jorge Jesus e os leões realizaram uma temporada muito positiva: ficaram no segundo lugar, a dois pontos do campeão Benfica, e estabeleceram aquele que era até este fim de semana o recorde de vitórias leoninas numa única edição do Campeonato, 27.
Seguiu-se uma época menos conseguida, com o Sporting a ficar no terceiro lugar, a falhar a Final Four da Taça da Liga, a cair nos quartos de final da Taça de Portugal e a terminar no último lugar do grupo da Liga dos Campeões. E a estabilidade de Coates, porém, não voltou a ser ameaçada. Aliás, com exceção à meia temporada de estreia, o central uruguaio nunca realizou menos do que 40 jogos por época desde que chegou a Alvalade, com a titularidade a tornar-se uma questão apenas nos últimos anos e por motivos óbvios de gestão física.
Curiosamente, a temporada em que Coates somou mais jogos pelo Sporting, 54, foi também a temporada mais difícil do central uruguaio no clube – dele, dos companheiros, da equipa técnica, dos adeptos e de toda a estrutura, num momento capital para o tal ponto de viragem entre o passado recente dos leões e o presente. Em 2017/18, ainda com Jorge Jesus, a equipa leonina contava com Rui Patrício, Coates e Mathieu no eixo defensivo, um meio-campo com Bruno Fernandes e William Carvalho e um ataque que tinha Gelson Martins e Bas Dost, para além de Acuña, Bryan Ruiz ou Battaglia.
Uma equipa com qualidade óbvia que conquistou a Taça da Liga, voltou a não passar do terceiro lugar do Campeonato, mas sonhou na Liga Europa: os leões caíram para a competição através do grupo da Liga dos Campeões, eliminaram Astana e Viktoria Plzen, mas caíram com o Atl. Madrid nos quartos de final, num afastamento que seria o ponto de partida para um autêntico tornado. A 15 de maio de 2018, na sequência de uma derrota contra o Marítimo na última jornada da Liga, cerca de 50 encapuzados entraram na Academia de Alcochete e protagonizaram o dia mais negro da história do Sporting.
Os leões disputaram a Taça de Portugal cinco dias depois, com uma equipa destroçada a perder com o Desp. Aves na final do Jamor, e o verão foi de autêntico sobressalto entre a indefinição sobre o futuro de Bruno de Carvalho, a saída de Jorge Jesus e várias rescisões unilaterais por parte de jogadores. Bas Dost, Bruno Fernandes e Battaglia chegaram a rescindir, mas negociaram o regresso, Rui Patrício chegou a acordo através do Wolverhampton, William Carvalho foi transferido para o Betis e Rúben Ribeiro, Rafael Leão, Gelson Martins e Podence mantiveram os respetivos processos de rescisão.
E Sebastián Coates também ficou. A invasão de Alcochete, em maio de 2018, marca o fim de uma era e o início de outra no Sporting – mas também marca o início do reinado do central uruguaio como autêntico líder de balneário, de relvado e de grupo, num papel que ficou ainda mais vincado a partir da saída de Bruno Fernandes em janeiro de 2020. Nesse ano, com a chegada de Rúben Amorim em março e Frederico Varandas já com dois anos à frente dos leões, Coates tornou-se o terceiro vértice de um triângulo que levou Alvalade de regresso aos seus melhores dias.
Há cerca de um ano, apesar de confessar ter ficado “em choque” com o que aconteceu em Alcochete, o jogador explicou o porquê de não ter saído. “São momentos difíceis, mas também fazem parte da minha experiência no clube. Gostava de não ter tido essa experiência, mas aconteceu. E aprendemos sempre alguma coisa com tudo. O Sporting abriu-me as portas, os adeptos apoiaram-me sempre. Nunca pensei que aquilo representava o mundo Sporting, foram só alguns adeptos. Se saísse, estaria a voltar as costas a todos os outros adeptos do Sporting. E isso não me pareceu correto”, indicou em entrevista à RTP.
2021 e 2024, os anos de consagração de El Capitán (com um registo histórico na mira)
A temporada 2019/20, muito marcada pela pandemia de Covid-19, foi uma espécie de tubo de ensaio para tudo aquilo que Rúben Amorim tem vindo a alcançar. E Coates foi uma parte fulcral das experiências. Com seis golos marcados nessa época, o treinador leonino começou a apostar ainda mais no central enquanto referência ofensiva quando um jogo não estava a correr bem ou um resultado não estava a sair – em 2020/21, o ano do título e mesmo com Paulinho e Tiago Tomás no plantel, o uruguaio marcou sete golos, um registo máximo em toda a carreira.
O capitão de equipa foi um elemento indispensável à conquista do Campeonato nesse ano, tornando-se uma figura do fim do jejum de 19 anos e do espírito que levou uma equipa jovem treinada por um treinador jovem ao degrau mais alto da classificação. No fim da temporada, sem grandes surpresas, foi eleito o melhor jogador da Primeira Liga e acabou por renovar contrato em agosto do ano seguinte, estando agora ligado ao Sporting até 2025 e cumprindo quase uma década em Alvalade.
Com o título incontestado de estrangeiro com mais troféus na história dos leões – tem oito, mais dois do que Rodrigo Tello e Jovane Cabral –, Coates tem servido como mentor de Gonçalo Inácio, Diomande ou Eduardo Quaresma, figuras muito jovens no setor defensivo da equipa. Na temporada menos constante desde que chegou a Alvalade, apesar de já ter passado novamente a marca dos 40 jogos e de levar seis golos, o central uruguaio foi gerido de outra forma, falhou algumas partidas por lesão e nem sempre foi titular.
Algo que não fez com que não fosse dos mais aplaudidos no último domingo, em pleno Marquês de Pombal, quando foi o último jogador a subir ao palco. Acompanhado pelos dois filhos, pegou no microfone e dirigiu-se aos milhares de adeptos leoninos que ali se juntaram para fazer o que só mesmo um capitão poderia fazer: pedir a permanência de Rúben Amorim, o elo de ligação ao sucesso recente do clube.
“Boa noite, sportinguistas. Nós somos campeões! Obrigado a todos pelo apoio neste ano, foi inacreditável. Obrigado a todos os companheiros, a todo o staff, a todos os que trabalham connosco. E obrigado a vocês. Desfrutem do Campeonato. Fica, Amorim!”, atirou o jogador de 33 anos, que minutos antes tinha visto Pedro Gonçalves subir ao mesmo palco com uma camisola com o seu nome e o número 4 nas costas.
A importância de Sebastián Coates para os dois últimos títulos do Sporting, mais do que a ideia desportiva de que é pelos seus pés que todo o jogo da equipa começa a ser desenhado, é gigantesca. O central uruguaio é a voz de comando dentro de campo, uma clara extensão de Rúben Amorim dentro das quatro linhas, e os mais de 15 anos a jogar ao mais alto nível permitem-lhe controlar as emoções em situações de maior pressão. Para além de tudo isso, sempre que dá uma entrevista, Coates deixa bem notório que exerce exatamente os mesmos papéis no balneário.
“A derrota com o Benfica foi um momento muito complicado, obviamente. Sobretudo pela forma como aconteceu. Acho que na primeira parte estivemos melhor, depois com a expulsão do Inácio e alguns erros nossos… Mas mesmo assim sentíamo-nos confortáveis no jogo. São coisas do futebol. Em três minutos tudo mudou. E lá está: este grupo é forte, sentiu o impacto da derrota, mas sabíamos que tínhamos mais jogo. Nada acabava ali. Temos a cabeça tranquila e continuamos a trabalhar de igual forma”, disse o central em janeiro, em entrevista ao jornal A Bola, em relação a derrota na Luz com dois golos sofridos nos descontos.
Daqui para a frente, para além da final da Taça de Portugal e com a certeza de que já é o estrangeiro com mais partidas pelo Sporting, Coates tem outro registo histórico na mira. Com 362, pode chegar aos 400 jogos pelos leões e entrar num clube restrito que só conta com seis referências: Oceano, Manuel Fernandes, Vítor Damas, Rui Patrício e o recordista Hilário.