Nunca um país avançou diretamente do chumbo de um Orçamento para eleições antecipadas, mas esse dia pode mesmo ter chegado — o próprio primeiro-ministro aceita a posição do Presidente que já disse que, sem OE, convoca eleições. Esta quarta-feira, a proposta do Governo para 2022 vai a votos no Parlamento e António Costa não tem apoio para além das abstenções do PAN e das deputadas não-inscritas (alguns até admitiram já votar a favor, mas não chega).
Os 108 deputados do PS são insuficientes e Costa chegou ao Parlamento sem mais nada para dar à esquerda, que também não pediu mais. Só mais do mesmo. A estrada abriu-se em vários trilhos e o PS segue, agora sozinho, e incapaz de manter a estabilidade política necessária.
Assim, o primeiro dia de debate parlamentar já mais não foi do que uma antecipação de vários argumentos eleitorais e ainda de uma série de indicações para os dias que se seguem. Quem vai a votos? Quando? Como governa Costa até lá? Quem fica com a responsabilidade da crise política que aí está? Lá dentro, Costa ainda queria dar a ideia de acreditar, mas fora do hemiciclo, os sinais iam todos noutro sentido.
Desafio a viabilização sem dar nada de novo em troca
“Pedem-nos um passe de mágica. Mas não há passe de mágica que nos permita ultrapassar o sentido de responsabilidade, equilíbrio e defesa do interesse nacional”. Sem nada na manga (apenas o elencar das várias medidas cedidas à esquerda dentro e fora da proposta de Orçamento), restou a António Costa passar ao apelo direto a que PCP e BE deixem chegar o Orçamento ao debate na especialidade, que é “o momento adequado para a discussão em detalhe nas propostas e das redações”.
Um apelo final, que António Costa repetiu no debate, mas sem ter nada mais para dar do que já tinha colocado em cima da mesa das negociações para apresentar aos — até aqui — parceiros do Governo no Parlamento. “Ainda há estrada para andar”, garantia ao PCP e BE num estender de mão que já era só pura retórica porque Costa já sabia — e no debate continuou a saber — que nem PCP nem BE tinham qualquer fresta negocial aberta, quanto mais uma porta.
PCP e BE com portas fechadas
Um a deixar, à vigésima quinta hora, desafios para entendimentos. Outro a romper a corda sem mais. Mas, no fundo, nem Bloco de Esquerda nem PCP mostraram, neste debate, qualquer tipo de esperança em que ainda fosse possível chegar a acordo — e concentraram-se no passo seguinte: a contenção de danos, já com as eleições na cabeça.
As trocas de argumentos de António Costa com Catarina Martins e Jerónimo de Sousa foram, de resto, bem ilustrativos disso mesmo: a líder do Bloco acusou o Governo de “substituir a negociação pelo ultimato” e de “esquecer o trabalho” que fez ao lado do Bloco; Jerónimo acusou Costa de só ter aceitado medidas “isoladas” e de não ter dado passos de aproximação na questão do salário mínimo.
Se no Bloco ainda foram vários os derradeiros apelos ao entendimento (“o PS vai provocar uma crise política que ninguém quer”, foram repetindo os deputados bloquistas), também não se perdeu de vista o próximo passo: o ensaio do argumento para eleições eleitorais. Por um lado, passando o ónus da crise para as mãos do PS (“Qual destas medidas vale uma crise?”, perguntava Mariana Mortágua, depois de enumerar as propostas do Bloco). Por outro, lançando-se ao ataque à direita, com Jorge Costa a encarregar-se de puxar pelo fantasma do crescimento do Chega e a acusar os partidos da direita de não terem programa. E Mortágua a completar: “Os filhos da direita do empobrecimento têm saudades do poder”.
No PCP, igual esforço para evitar carregar o peso da crise às costas: os deputados comunistas foram, um por um, enumerar os avanços insuficientes do Governo e detalhar as negociações a um nível que não é habitual, entrando nos pormenores do que propuseram dentro de portas. Ainda o debate decorria e, apesar de (ainda) não haver campanha eleitoral em curso, o PCP já lançava um tempo de antena na RTP e nas suas redes.
Com ambos os lados, Costa mostrou-se “frustrado”. E acabaram sem margem para se entenderem e um aviso futuro deixado por Mortágua: “Lamento que o Governo não veja que, ao atacar a esquerda por não desistir das suas propostas na Saúde ou no Trabalho, está a exibir a sua incapacidade para compromissos viáveis”. Um alerta a ter em conta caso se confirme o cenário de eleições antecipadas e a esquerda possa voltar a enfrentar a perspetiva de ter de se entender.
As pistas deixadas para o day after
Foi logo na resposta a Rui Rio que António Costa — mesmo sem o líder do PSD lhe ter perguntado diretamente — fez questão de dizer que não vira as costas “num momento de dificuldade”.“Eu não me demito”. Mas esta foi só a primeira indicação sobre o futuro que se avizinha, porque mais adiante no debate esclareceu que será ele mesmo que vai liderar o partido se as eleições se anteciparem mesmo e também falou no eventual desafio que pode vir a enfrentar: governar em duodécimos. Aqui dramatizou, ao dizer que também já governou numa crise pandémica.
Mas no resumo de tudo o que disse já a pensar no day after, ou seja, na quarta-feira que vem, ficam já várias pistas. Se o Orçamento chumbar a ideia de Costa é continuar no lugar em que está e sem poderes de primeiro-ministro diminuídos — precisamente porque se não se demite continua em plenas funções — exceto num: não terá um Orçamento. E é aqui que entram os duodécimos.
Mais pistas para o day after
Se no debate ainda se iam ouvindo os apelos, ainda que tímidos, a prosseguir o caminho à esquerda, fora de portas a discussão já tinha dado vários passos em frente e praticamente entrado no campo da campanha eleitoral. Desde logo, assim que se soube que Ferro Rodrigues tinha decidido já ouvir os partidos durante a tarde, à margem do debate, sobre a condução dos trabalhos no Parlamento, a propósito da cada vez mais provável hipótese de chumbo do Orçamento. Assim, enquanto os partidos falavam da negociação sobre um OE ainda a ser discutido, lá dentro, os líderes parlamentares iam-se reunindo com Ferro, lá fora, em reuniões privadas, em pleno ambiente de crise.
Como foi entretanto noticiado pelo Público, Ferro combinou a iniciativa com Marcelo Rebelo de Sousa, tendo garantido que informaria o Presidente da República sobre a situação no Parlamento. À saída das reuniões, o Bloco ainda tentou, através de uma nota enviada aos jornalistas, insistir na sua disponibilidade para negociar até ao último minuto e garantir que não vê a convocação de eleições como consequência automática do chumbo — mas Marcelo já disse que optará por essa via.
De resto, o PEV disse desejar eleições, caso se confirme que é essa a vontade do PR, o mais rápido possível; Telmo Correia falou em eleições em finais de janeiro ou inícios de fevereiro, mas foi imediatamente contrariado pela direção do CDS, que as quer o mais cedo possível; e o PAN surpreendeu ao revelar a sua disponibilidade para ainda votar, in extremis, a favor do Orçamento — voto que, sozinho, não bastaria para a viabilização— e colar ao BE e PCP a responsabilidade por “escancarar a porta ao tempo da outra senhora” (leia-se ao crescimento do Chega em eleições antecipadas). O Governo saudou a disponibilidade, mas o vento já tinha mudado — e já ninguém conseguia tirar o cenário de eleições, cada vez mais presente, da equação. Nem mesmo António Costa que já avisara Moçambique que não iria estar na cimeira bilateral no país, a 4 e 5 de novembro, na próxima semana.
O after do day after
Pedro Nuno Santos, o mais evidente candidato à sucessão de Costa no PS e antigo pivot da geringonça, chegou ao debate antes da hora. Entrou pelo hemiciclo antes do primeiro-ministro e foi distribuir charme político à esquerda. Mal se dirigiu às bancadas do PCP e do BE, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa, Pedro Filipe Soares e João Oliveira levantaram-se num salto para o cumprimentarem.
Pedro Nuno não ficou por ali, distribuiu abraços pelo plenário, chegou até a sentar-se na última fila da bancada socialista numa meteórica amena cavaqueira. Uma ronda estratégica. Pedro Nuno vai assegurando aos seus que não é o seu tempo, que não tem pressa, que sabe esperar e que tem de manter-se sossegado, sem entrar em despiques. Mas o seu estado de espírito habitual é difícil de domar e o que foi feito, feito estava.
Acabou com António Costa a comparar o tamanho do sapato com ele, antes de sair do plenário.
Armas apontadas à direita
Na argumentação contra eleições antecipadas, o PS usou de tudo. Mas Costa apostou as fichas mais fortes no discurso anti-extrema direita. Aproveitou a intervenção de André Ventura só para isso mesmo — aliás, houve muitas intervenções neste debate em que o líder socialista aproveitou mais para o confronto político, já em estilo eleitoral, do que propriamente para o ataque ao conteúdo. No caso do Chega, Costa virou-se para Ventura para atirar: “A sua alegria mostra tudo e como será erro enorme chumbar este Orçamento”.
Aliás, neste capítulo atira a dois coelhos de uma vez. E isto porque aproveita o exemplo dos Açores (e o acordo de governação do PSD que inclui o Chega) para dizer que é isso que Ventura quer no continente. E, pelo caminho, atinge o PSD que se entendeu com o Chega para chegar ao governo. Eis um argumento eleitoral a que Costa não vai deixar de recorrer a cada esquina, sempre que o intuito for atingir a direita, mais moderada ou mais extrema.
Os sinais de Marcelo e a hipótese PSD-M
Apesar de todos os sinais terem caminhado, durante a tarde, no mesmo sentido — o do chumbo orçamental — houve uma nuance que lançou a confusão durante as horas de debate. A meio da tarde, nas televisões ligadas no Parlamento constatava-se com espanto que Marcelo acabava de atirar um dado novo: “Até ao momento do começo do debate ainda fiz diligências complementares para ver se chegava a um entendimento”, dizia aos jornalistas.
Marcelo não esclareceu quais foram as tais diligências. Nem quis dizer se tentou um derradeiro contacto com o PSD/Madeira para tentar assegurar votos que garantissem uma viabilização tardia — e instável — do Orçamento, possivelmente a juntar à vontade do PAN de chegar à fase de especialidade e a uma eventual negociação com as deputadas não inscritas. Somando todos, seria possível aprovar o OE — ainda que de forma, no mínimo, precária. Com o presidente do Governo regional da Madeira, Miguel Albuquerque, a vir dizer a meio da tarde que estaria disponível para “conversar” com Costa “se fosse para defender os interesses da região”, a tese começou a espalhar-se (pelo menos, nos Whatsapps de políticos e deputados).
As contas de cabeça eram rápidas de fazer: pela mesma altura, sabia-se que Marcelo tinha recebido Paulo Rangel em Belém. Estaria a direita a mexer-se para forçar um calendário eleitoral mais favorável ao challenger?
Nas bancadas da esquerda, os rumores iam-se intensificado; na direita, Rio seria surpreendido, à porta do grupo parlamentar do PSD, pelos jornalistas com a informação de que Rangel passara por Belém, admitindo não saber qual a razão do encontro. O desencontro pareceu acabar com Albuquerque a dizer não ter sido contactado pelo Governo, Rio a garantir que a Madeira “não está à venda” e Marcelo a acrescentar ter recebido também Fernando Medina e Carlos Moedas em Belém. Mas a dúvida instalou-se e confundiu tanto esquerda como direita por longas horas.