A revelação de que 25 cipriotas estariam infetados por uma uma versão quimérica do SARS-CoV-2, que fundiria a informação genética da Delta com a da Ómicron, aguçou o receio de o coronavírus ter combinado o pior dos dois mundos: a maior severidade da Covid-19 provocada pela primeira variante e a acentuada transmissibilidade que caracteriza a segunda.
As notícias vindas do Chipre inundaram a comunicação social ao longo do último fim de semana, mas os cientistas estão de olho nesta suposta nova variante já desde o fim do ano passado, quando uma série de sequenciações genéticas revelaram que alguns indivíduos, parecendo infetados com a variante Delta, eram portadores de mutações típicas da variante Ómicron. O alerta fora da comunidade científica só soou na sexta-feira passada, quando Leondios Kostrikis, chefe do Laboratório de Biotecnologia e Virologia Molecular da Universidade do Chipre, não só confirmou a existência de pessoas infetadas com as duas variantes como avisou que se “encontrou esta linhagem, que é uma combinação das duas”. Chamou-lhe Deltacron.
Recombinações de vírus são possíveis. Mas também são raras.
As versões híbridas dos vírus não são uma novidade para a comunidade científica. Elas são, de facto, um dos dois principais mecanismos de evolução dos vírus, explicou ao Observador o bioquímico Miguel Castanho, do Instituto de Medicina Molecular: quando dois vírus de variantes diferentes infetam as mesmas células, é possível que a informação genética deles se combine e origine uma nova variante. O outro mecanismo, mais comum, são as mutações, erros que pontilham o material genético quando uma partícula viral se replica e dá origem a outra.
Diana Lousa, investigadora do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB), também confirmou ao Observador que as recombinações podem acontecer. Mas são raras e, no caso da Deltacron, os padrões genéticos encontrados nas sequenciações feitas no Chipre “não parecem muito compatíveis” com este tipo de evolução.
O vírus da gripe é mestre na estratégia de recombinação porque o genoma não é composto por uma cadeia única de genes, mas sim por oito segmentos que se podem conjugar. A linhagem H1N1 do vírus da gripe é exemplo disso: as partículas virais responsáveis pela gripe suína de 2009 resultaram da união de informação genética dos vírus tipicamente humanos com a dos vírus das aves e dos vírus dos porcos. As três variantes infetaram as mesmas células em porcos, que são autênticas caixas de Petri naturais para este tipo de fenómenos, e acabaram por recombinar-se, dando origem a uma nova versão do vírus da gripe.
Que o mesmo tenha acontecido com o SARS-CoV-2 já depois do surgimento da Ómicron “seria até normal”, mas raro, refere Miguel Castanho. De resto, essa é uma das explicações em cima da mesa para o surgimento da variante Ómicron: um estudo em pré-publicação da NReference, uma empresa de dados biomédicos norte-americana, sugere que pelo menos uma das mutações da variante Ómicron é um trecho de material genético de outro vírus. Esta mistura pode ter acontecido nas células de um hospedeiro simultaneamente infetado pelo SARS-CoV-2 e por esse segundo vírus.
Variante Ómicron pode ter surgido numa pessoa infetada com outro vírus
O estudo, que ainda não foi revisto por cientistas independentes para validar a informação, aponta o dedo ao HCoV-229E, um coronavírus que infeta humanos e morcegos; e que, segundo a base de dados desta empresa, contém a mesma peça de material genético presente numa das mutações da variante Ómicron. Outra possibilidade — menos provável, porque as recombinações são mais comuns e melhor sucedidas quando acontecem entre espécies virais mais parecidas — é o vírus da imunodeficiência adquirida (VIH), porque também contém essa mesma sequência genética.
Mesmo antes do aparecimento da Ómicron, um outro relatório em pré-publicação distribuído em outubro de 2021 mencionava a deteção de “recombinações genómicas proeminentes” entre as variantes Delta e Alfa do coronavírus em amostras recolhidas no Japão. Os autores do relatório apelavam ao “estudo intensivo” destas variações genéticas e à “caracterização de variantes emergentes depois de uma verificação cuidadosa das suas linhagens”.
Uma explicação? Infetados com duas variantes em simultâneo
Mas a probabilidade de a Deltacron ser real não só é baixa como difícil de provar. Afinal, “é muito difícil distinguir à primeira vista um vírus misto de uma situação em que a mesma pessoa está infetada por duas variantes diferentes”, refere Miguel Castanho. Os testes PCR e as sequenciações genéticas realizadas às amostras das 25 pessoas identificadas no Chipre, cujos resultados já foram enviados para o GISAID, não bastam: seria preciso encontrar a mesma sequenciação genética em amostras recolhidas em centenas de outros infetados, sem relação uns com os outros, e analisá-las em vários laboratórios independentes.
Lots of reports of Omicron sequences carrying Delta-like mutations (eg P681R or L452R). Although a subset of these might end up being real, the vast majority will most likely turn out to be contamination or coinfection. No clear signals of anything real or nasty happening (yet).
— Tom Peacock (@PeacockFlu) December 21, 2021
Thomas Peacock, virologista do Departamento de Doenças Infecciosas do Imperial College e um dos primeiros cientistas a reagir aos relatos vindos do Chipre, também defendeu no Twitter que, apesar de algumas pessoas com a variante Delta também serem portadoras das mutações típicas da Ómicron, a “esmagadora maioria” serão pessoas infetadas com as duas variantes em simultâneo; ou casos em que as amostras foram contaminadas em ambiente laboratorial, algo que pode acontecer quando elas são armazenadas próximas umas das outras. “Ainda não há sinais claros de algo real ou desagradável estar mesmo a acontecer”, tranquilizou o especialista no Twitter.
A hipótese de co-infeção ganha força porque no Chipre “há muitos casos de pessoas infetadas com a variante Delta e muitos casos de pessoas infetadas com a Ómicron em circulação nos mesmos espaços”; e também porque “os materiais de sequenciação mais antigos são menos eficazes na identificação de trechos genéticos da Ómicron”. “Os verdadeiros recombinantes não tendem a aparecer até algumas semanas ou meses depois de haver co-circulação substancial. E nós só temos algumas semanas de circulação da Ómicron”, defendeu Thomas Peacock.
A “flurona” é um exemplo recente de co-infeção pelo vírus da gripe e pelo vírus da Covid-19. São milhares as pessoas que, nos últimos dois anos, foram infetadas pelos dois vírus ao mesmo tempo sem que daí tivesse resultado uma nova variante do SARS-CoV-2 com capacidade para vingar na pandemia. O caso mais popular é o de uma pessoa infetada recentemente em Israel com os dois vírus, mas a única diferença em relação às milhares que, antes dela, foram infetadas pela gripe e pela Covid-19 ao mesmo tempo é que ela era portadora do vírus da gripe A, que é especialmente transmissível em comparação com outras variantes gripais.
Contaminação em laboratório: a hipótese mais forte
Mas a teoria de que tudo não passa de um caso de contaminação de amostras no laboratório onde os 25 casos foram descobertos é a mais robusta. Os cientistas costumam organizar cada um dos casos numa “árvore filogenética”, que agrega as amostras em função das semelhanças ou diferenças que têm. Assim, quanto mais parecenças genéticas duas amostras têm, mais próximas elas surgem nesta espécie de árvore genealógica para os vírus do SARS-CoV-2. Acontece que, enquanto os casos de uma possível recombinação japonesa das variantes Alfa e Delta aparecem muito próximas num dos ramos deste esquema, os alegados casos de recombinação das variantes Delta e Ómicron estão totalmente dispersos. E isso é típico de situações em que as amostras não são fiáveis porque foram contaminadas.
Mais: Krista Queen, diretora do departamento de genómica viral e vigilância da Universidade do Estado do Louisiana (Estados Unidos), explicou à Newsweek que o surgimento de uma alegada recombinação pode não passar de um erro na técnica de sequenciação utilizada para identificar as amostras.
Para saber que variante do SARS-CoV-2 está presente numa determinada amostra, os cientistas precisam sempre de sequenciar a informação genética. Como o processo é complexo e demorado, costumam usar uma tecnologia que amplifica certas partes específicas do genoma até esta ser ou não detetada. Há uma técnica especialmente fraca a detetar partes específicas do genoma da variante Delta: a ARTIC V3 não consegue sondar tão bem uma peça que existe na proteína S (a que o vírus usa para entrar nas células e que confere ao SARS-CoV-2 o aspeto coroado). Ora, foi essa a técnica usada no Chipre e é precisamente nessa peça da proteína S que as características semelhantes à variante Omicron surgem nestes alegados casos de “Deltacron”.
De resto, mesmo que a variante Deltacron exista realmente, dificilmente ela será tão funcional como a variante Delta foi e como a Ómicron ainda é — até porque casos como esse são muito raros. E, por isso, “não se pode deduzir nada sobre a transmissibilidade nem severidade do vírus”, alerta Miguel Castanho ao Observador. Mesmo pensando que se podiam misturar as piores características das duas variantes, o resultado não seria apenas um somatório das propriedades delas: a Deltacron “seria uma variante por si só, com características que podiam ser novas em relação às que lhe deram origem”, descreveu.
Diana Lousa acrescenta que “é pouco provável que ela vá ultrapassar a Ómicron”: “Às vezes é uma questão de compromisso. Pode ser mais transmissível, mas ser menos capaz de se multiplicar e então está condenada a desaparecer”, por exemplo. Thomas Peacock concorda que, à luz do conhecimento atual sobre a variante Ómicron, sabe-se que ela herdou e aprimorou as características da variante Delta que permitem à nova linhagem ser mais infecciosa — o principal objetivo de um vírus para vingar no mundo natural. Por isso, “não é claro para mim o que a Ómicron teria a ganhar mais com a Delta, pelo menos segundo o que sabemos neste momento”.