Ele é um pouco de tudo quando podia não ser nada. É romancista policial, sendo co-autor de três livros do género que tiveram grande sucesso a nível de vendas, em especial o The Break em 2018, quando podia não ser nada. É um pintor que adora trabalhar com diferentes cores ou tintas, que se diz capaz de fazer qualquer coisa ou qualquer pessoa e que tem como amigo próximo o enfant terrible da arte britânica, Damien Hirst, quando podia não ser nada. É um cozinheiro com uma capacidade especial de pensar em misturas de sabores no desenho de receitas que chegaram a ser publicadas pelo The Times e que colocou em prática os seus dotes também na TV com apenas com uma mão quando podia não ser nada. É uma “estrela” de TV que tem uma particular empatia com a câmara quando não podia ser nada. É isto, tudo isto e muito mais. E é isto e tudo isto e muito mais sendo um dos melhores jogadores de snooker de sempre quando podia não ser nada.
Ronnie O’Sullivan. “Se sou o melhor de sempre? É difícil dizer que não”
Há duas palavras que definem o britânico Ronnie O’Sullivan como atleta e pessoa: genialidade e loucura. Porquê? Porque há momentos, e são muitos os momentos, em que teve episódios geniais que parecem quase loucos. Entre esse equilíbrio, essa fronteira que parece distante mas é demasiado fina, está alguém que foi campeão mundial sete vezes e que, aos 48 anos, vai lutar pelo oitavo título. Alguém à parte de tudo e todos.
Quando no final do ano passado decidiu desistir de jogar o Troféu Campeão dos Campeões, apenas três dias depois de ter perdido nas meias-finais do torneio internacional na cidade chinesa de Tianjin, o jogador pediu uma pausa. “Mentalmente sinto-me um pouco esgotado e stressado. Quero cuidar da minha saúde mental e do meu corpo. Lamento a todos os fãs, mas voltarei mais forte”, justificava o número 1 do mundo. Dúvida: voltaria O’Sullivan ao mais alto nível do que consegue fazer? A resposta, difícil de surgir naquele contexto, foi dada com o passar do tempo e com redobrada taxa de sucesso, com a vitória no World Grand Prix e o segundo lugar no Tour Championship. Mesmo achando que pode e deve jogar mais, O’Sullivan fez resultados como se estivesse no seu apogeu da sua carreira – e é assim que chega ao Mundial de snooker.
“Longevidade? Não existe propriamente um segredo que possa apontar. O mais importante é gostar daquilo que se faz e eu adoro aquilo que faço. Devemos estar sempre a reinventar-nos, estar sempre interessados. Gosto de começar a ter rotinas diferentes, começar a jogar outro tipo de jogos porque isso também é um benefício para aquilo que depois fazemos. Trabalhar com treinadores diferentes, com psicólogos… É sempre bom ir experimentado outras coisas, como ir jogando um dia a uma hora e no outro numa hora diferente, perceber onde vou ser melhor… O que mais interessa é tornar-me um jogador melhor. Há sempre coisas que podem aumentar a tua motivação para continuares e para tentares ter sucesso”, explicou Ronnie O’Sullivan em resposta a três perguntas colocadas pelo Observador antes do Mundial.
“Se continuo a não incentivar os meus filhos a não jogar snooker, como disse numa entrevista? Sim, claro. Se os meus pais tivessem sido médicos, não me estariam a encorajar a ser médico, ou pelo menos podia não acontecer. Acabei a jogar snooker. Como pais, não queremos sempre que os nossos filhos sigam as nossas pisadas porque qualquer coisa que façam, nós apoiamos. O snooker também pode ser complicado… Às vezes comemos mal e tarde, ficamos fora de casa, acho que só comecei a fazer exercício físico quando fiz 28 anos. Não gostava que estivessem envolvidos com a modalidade por isso”, admitiu o jogador britânico.
“Não tenho necessariamente de continuar a ganhar, quero estar envolvido em bons jogos. Quero levar a minha melhor versão para o Mundial. Só quero acabar com um bom final de temporada”, concluiu.
Ao Eurosport, canal que irá transmitir o Campeonato do Mundo que arranca este sábado na cidade inglesa de Sheffield, O’Sullivan revelou outros pormenores da preparação, nomeadamente o regresso ao trabalho com Steve Peters, psicólogo do desporto durante um ano. “Sim, ele vai estar ali muito tempo no meu canto. Aquilo que lhe disse é que tudo o que conseguir, vai ser fantástico. Tenho falado muito com ele por telefone nos últimos tempos”, contou. Mais uma vez, e também aqui, o britânico fala sem falar daquela fronteira invisível entre a genialidade e um toque de loucura num estilo de jogo inconfundível: por um lado, tem consciência que é um alvo ainda mais a abater tendo em conta as vitórias esta temporada como o UK Championship, o Masters ou o World Grand Prix; por outro, continua sem estar muito feliz com o que faz na mesa.
“Nesta altura, estou naquela situação em que preciso apenas manter o meu estado de espírito nos próximos tempos. Deu um ano até ao final do Campeonato do Mundo do próximo ano para trabalhar com o Steve e esperar ter aquela sensação de que estou de volta ao que sinto ser aceitável. Poderia fazer mais um ano como este e vou comprometer-me com isso, jogando aquilo que tenho jogado com todas as lutas, como podemos chamar. Toda a gente tem os seus problemas, para mim eles não são nada bons… Assim, tenho duas opções: como diz o Steve, podemos aprender a viver com isso. Podemos aprender a viver sem nada e ser feliz ou escolher ser miserável. A tarefa que tenho pela frente é definir se, caso não consiga colocar o meu jogo no sítio certo e se não quiser parar, consigo pensar em aceitar isso como um facto. Se não conseguir fazer isso, faço mais ano e meio ou dois anos, umas exibições e depois penduro o taco”, contou.
“Só vou pensar em retirar-me se pensar que não estou a jogar suficientemente bem durante um período, o que tem acontecido nos últimos tempos. Isso é algo que me causa stress e que me fará pensar ‘Não quero continuar a fazer isto’. Mas, como já expliquei, posso aprender a viver com isso. Não tenho de ganhar, eu só gosto de viajar, gosto das pessoas que conheço, gosto das pessoas com quem trabalho. Tive grandes momentos com todos os meus patrocinadores e coisas do género. Dessa parte, vai ser complicado desistir. Vai ser complicado deixar todas as exibições que faço, os sítios por onde viajo. Se conseguir ter prazer a fazer o meu jogo, vou sentir-me a pessoa mais feliz deste mundo”, reforçou o “The Rocket”.
"Let's go for it!" ????
Ronnie O'Sullivan isn't afraid to take on the ???????????????????? shots ????#CazooWorldChampionship pic.twitter.com/bvIlu6W2xa
— Eurosport (@eurosport) April 20, 2024
“Apesar de tudo, sinto também que tenho sido mentalmente muito forte e quero continuar assim. Venci cinco torneios, consegui ir a finais mas não desfrutei. Quero ganhar e quero desfrutar. Foi isso que falei com o Steve, que tinha de trabalhar essa parte. Preciso trabalhar para encontrar algo que me permita estar num lugar melhor com tudo isto. Última oportunidade para ganhar um Mundial? Não, acho que vai haver muitas oportunidades para ganhar o Mundial. Tudo depende de como estiver mas sinto que a minha mente está mais nova à volta da mesa. Penso como um jovem, a idade não é importante. Sinto-me ágil. Desde que sinta isso, não interessa se tenho uns 60 anos. Os meus adversários às vezes parecem-me lentos e fazem com que sinta que ainda consigo fazer bem isto”, acrescentou ainda Ronnie O’Sullivan ao Eurosport, que assinou nos últimos dias um contrato de três anos com o World Snooker Tour e com o Riyadh Season.
Apesar das notícias que davam conta de um potencial avançar para a retirada, os sinais que o britânico vai deixando apontam num outro sentido e aquele que é para muitos o melhor de todos os tempos com um longo currículo onde entram sete Mundiais e 23 Triple Crown chega ao Crucible Theatre como cabeça de cartaz. Três décadas depois, aquele miúdo que em 1992/93 ganhou 74 dos 76 encontros na primeira época como um jogador profissional ainda dá cartas após um trajeto de altos e baixos onde, apesar da qualidade de todas as outras referências da modalidade, o maior e mais verdadeiro “adversário” que teve foi mesmo a si próprio.
Houve um pouco de tudo. Em 1995/96, ano em que foi multado por agredir um jornalista, foi alvo de uma queixa por ter passado parte do encontro a jogar apenas de mão esquerda (o que foi considerado desrespeito pelo adversário) mas na época seguinte marcou aquela é a tacada máxima em tempo recorde com cinco minutos e 20 segundos. Em 1998/99 deixou alertas sobre a sua saúde mental – um tema que então ou não existia ou era tabu –, pouco mais de um ano depois ganhou o primeiro título mundial. Voltou a admitir que a depressão e ansiedade constantes em que vivia poderiam fazer com que desistisse da modalidade, encontrou em Ray Reardon uma luz que lhe permitiu voltar a ser campeão mundial. Começou a deixar sinais de maior preocupação entre os fãs que temiam que tivesse voltado ao consumo de drogas (ainda no final dos anos 90 ficou sem Iriash Masters por testar positivo a cocaína), voltou a sagrar-se campeão mundial. A partir de 2016 passou a ter outro cuidado a nível de calendário, nem por isso deixou de ganhar vários troféus.
Ronnie O’Sullivan pode ser melhor ou pior do que os outros e pode ser estar mais ou menos disponível em termos mentais para o jogo mas é e será sempre único. E a própria história de vida reflete isso mesmo.
Nascido em Wordsley, em West Midlands, Ronnie não teve um início de vida fácil. Quando tinha 16 anos, o pai, Ronald John Sr., que tinha uma cadeia de sex shops na zona de Soho, foi preso por homicídio e sairia em liberdade apenas em 2010. Anos depois, a mãe, Maria Catalano, natural da Sicília onde conheceu o então marido, cumpriu um ano na cadeia por evasão fiscal. Além de ter de gerir os negócios da família, Ronnie O’Sullivan ficou também a cuidar da irmã, Danielle, de apenas oito anos. Apesar de tudo isso, cedo começou a dar nas vistas quando tinha um taco na mão e o foco na mesa: no seguimento da carreira prometedora como amador, tornou-se profissional em 1992 e tornou-se logo no ano seguinte o mais novo de sempre a conquistar o UK Championship, tendo na altura 17 anos e 358 dias. E era apenas o início de tudo.
Em 1995, O’Sullivan tornou-se também o mais novo de sempre a ganhar o Masters, com 19 anos e 69 dias. Tanto tempo depois, bate recordes ao contrário e passou a ser o mais velho de sempre a ganhar os três eventos do Triple Crown, conquistando o sétimo e último Mundial do currículo com 46 anos e 148 dias, o oitavo UK Championship com 47 anos e 363 dias e o oitavo Masters com 48 anos e 40 dias. Pelo meio, um pouco de tudo: depressão, ansiedade, alteração dos estados de humor, adição ao álcool e às drogas, um sem número de polémicas que levaram a que tivesse algumas paragens e momentos de maior fulgor sem perder os traços de Fénix renascida que sai das cinzas para bater tudo e todos fazendo um sem número de coisas em paralelo entre as quais se incluiu também o documentário “The Edge of Everything”.
Há momentos que dificilmente se conseguem explicar. No Campeonato do Mundo de 2005, O’Sullivan rapou a cabeça depois de perder 11 de 14 frames nos quartos com Peter Ebdon. No mesmo ano, perdeu também no UK Championship onde esteve sempre com uma toalha na cabeça na cadeira. Em 2006, na mesma prova, falhou uma bola fácil, deu o jogo a Stephen Hendry e deixou o pavilhão. Provavelmente nem o próprio faz hoje ideia do que se passou. Mas é aqui que o britânico difere de todos os outros: aquilo que seria uma marca para a carreira era transformado por O’Sullivan numa espécie de cicatriz de guerra. Contra os adversários e contra si. A forma como ganhou a Judd Trump na final do Mundial de 2022 foi um espelho da capacidade regenerativa que teve ao longo da carreira, o que lhe valeu o recorde de triunfos no Crucible.
Pai de três filhos, Taylor-Ann da relação com Sally Magnus e Lily e Ronnie Jr. da relação com Jo Langley (que conheceu nos Narcóticos Anónimos), Ronnie O’Sullivan, casado com a atriz Laila Rouass há mais de dez anos, tornou-se avô em 2018. Esse é um dos pontos de viragem nas últimas vidas que teve no snooker, a par dos atentados de Barcelona, em 2017. O britânico estava a competir na China nessa altura mas a mulher e a enteada encontravam-se na cidade, acabando por esconder-se no congelador de um restaurante. “Sentia-me impotente. Tinha o telemóvel desligado, foi o momento mais arrepiante da minha vida. Ela e Laila tiveram de se esconder num congelador. Foi horrível, o momento mais difícil da minha vida. Falámos por telefone e ela estava muito nervosa. A Laila começou a caminhar em direção ao hotel por entre a multidão e só depois de estarem no quarto respirei de alívio. Mais tarde apercebi-me da verdadeira dimensão do atentado, quando vi as imagens pela CNN. Foi um alívio quando soube que estavam bem”, contou.
Conhecido por ser um perfecionista e o seu maior crítico, Ronnie O’Sullivan foi aumentando o seu leque de interesses fora do snooker e além da pintura, da escrita e da cozinha. Um desses novos “investimentos” foi a corrida. O inglês já tinha feito uma pausa na carreira em 2012/13 para ir para uma quinta tratar de porcos mas o exercício tornou-se uma companhia sempre a procurar baixar as marcas que fazia em meias maratonas ou nos dez quilómetros. Em tudo onde se mete, The Rocket tem de superar-se. Sendo ou não o melhor, essa questão da superação é inalienável. E esse é o principal traço entre a genialidade e a loucura.