“Para mim, arquitetas são tetas superlativas. Não são profissionais da projecção de edifícios”. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa vai passar a ser obrigatório a partir de quarta-feira, 13 de maio, terminado o período de transição de seis anos, mas continua sem convencer os principais cronistas da nossa praça, entre eles Ricardo Araújo Pereira, autor da frase que abre o texto.
Ao Observador, o colunista da revista Visão – publicação que adotou o novo acordo – garantiu que vai continuar a escrever respeitando as regras ortográficas anteriores porque, acredita, “o acordo não cumpre o objectivo de aproximar as várias variantes da língua”. E deu exemplos:
“Se um brasileiro lhe disser que está parado no acostamento porque a sua perua não tem estepe, provavelmente não perceberá o que ele quer dizer. O acordo não vai ajudá-lo em nada. Sucede que eles têm outra maneira de dizer a frase ‘estou parado na berma porque a minha carrinha não tem pneu sobresselente’”.
Mas os argumentos de Ricardo Araújo Pereira não se ficam por aqui: “Além de que as mudanças me transtornam de várias maneiras. ‘Pára’, a terceira pessoa do plural do verbo parar, passa a escrever-se sem acento. Significa isso que, quando leio numa manchete de jornal a frase ‘Ninguém para o Benfica’ fico sem saber se, por falta de dinheiro, durante o período de transferências nenhum jogador virá para o Benfica, ou se, como desejo, ninguém consegue parar o futebol do Glorioso”.
Em relação à possibilidade de a Visão começar a impor aos seus colaboradores que escrevam de acordo com as novas regras ortográficas ou a corrigir os textos de opinião dos seus colunistas, Ricardo Araújo Pereira garantiu que não vai permitir que o façam, tal como já o fez anteriormente. “Se eles [revisores de texto] começarem a mudar o texto para a nova ortografia voltarei a pedir que não o façam”.
Mas Ricardo Araújo Pereira não é o único que se recusa a aplicar o novo acordo ortográfico. Há jornais que vão continuar a escrever obedecendo às regras ortográficas anteriores. O Público, por exemplo. Nuno Pacheco, diretor adjunto e um adversário assumido do acordo, garantiu que o jornal não vai aplicar as novas regras e aproveitou para tecer duras críticas àquilo que considera ser um “disparate pegado”. “Isto só é possível num país de idiotas. [Ao impormos esta nova ortografia] estamos a tornar as pessoas mais ignorantes, mais estúpidas”, começou por afirmar.
O jornalista acredita que o acordo ortográfico “não vai unificar a língua portuguesa” como os seus apoiantes argumentam, mas vai, antes, “originar uma língua abastardada” que “não é nem português do Brasil, nem português europeu”.
Uma posição menos crítica tem Vítor Rainho, subdiretor do jornal Sol. Para já, a adoção das novas regras ortográficas está fora de questão, até porque “o Sol tem publicações em Angola e Moçambique”, países que ainda não adotaram o novo acordo – em Maputo, o acordo foi aprovado pelo Governo, mas ainda não foi sequer ratificado pelo Parlamento; em Angola, Governo continua sem dar o “sim” ao acordo e não se sabe se o fará. Mas, no futuro, essa questão pode vir a ser discutida.
Dos três jornais contactados pelo Observador – Público, Sol e i – apenas Luís Rosa, diretor deste último jornal, admitiu a possibilidade de adotar o novo acordo ortográfico num futuro próximo. “Estamos a estudar essa possibilidade, mas ainda não tomámos nenhuma decisão. Pessoalmente – e mesmo não sendo nenhuma espécie de cavaleiro do acordo – sou favorável” às novas regras ortográficas, explicou Luís Rosa.
Ainda assim, o diretor do i insistiu num ponto que considera importante: “É preciso perceber a sensibilidade dos leitores” e se se adaptam bem ao novo acordo. Mas, continuou, “o meu princípio é que qualquer lei da República deve ser respeitada”.
Cronistas e escritores dizem não ao acordo
Se do lado dos responsáveis pelas redações que ainda não adotaram as novas regras a resposta se divide entre um “não” redondo – Nuno Pacheco – e um “talvez, precisamos de estudar” – Vítor Rainho e Luís Rosa -, do lado dos colunistas que sempre se recusaram a adotar o acordo a posição é unânime: não vão mudar uma vírgula naquilo que escrevem.
Além de Ricardo Araújo Pereira, também Pacheco Pereira, ouvido pelo Observador, arrumou a questão numa frase assertiva: “Por razões de consciência” e “de identidade da língua, as pessoas não devem ser obrigadas a adotar o acordo ortográfico”.
Antes, precisamente num artigo de opinião publicado no jornal Público, onde é colunista habitual, o historiador teceu duras críticas ao acordo ortográfico, descrevendo-o como um “acto antipatriótico”.
“Se voltarmos ao lugar-comum em que se transformou a frase pessoana de que a ‘minha pátria é a língua portuguesa’, o acordo é um acto antipatriótico, de consequências nulas no melhor dos casos para as boas intenções dos seus proponentes, e de consequências negativas para a nossa cultura antiga”, escreveu na altura.
Uma posição semelhante tem Miguel Esteves Cardoso, também ele cronista no Público. Em declarações à Agência Lusa, o escritor e jornalista português garantiu que “nunca” iria adotar as novas regras ortográficas inscritas neste acordo, justificando que esta era “uma posição de liberdade e patriótica”.
O mesmo considera Pedro Mexia, que, também em declarações à Lusa, se mostrou desfavorável ao desenho do acordo. O poeta e crítico literário acredita que tal “não era verdadeiramente necessário” e “mesmo que fosse necessário está mal feito, pois não foram suficientemente ouvidas as instituições, as entidades e as personalidades que têm contacto qualificado com a língua”.
O colunista do Expresso repetiu também uma crítica já apontada por Nuno Pacheco, diretor do Público, e por Ricardo Araújo Pereira, sobre aquilo que considera ter sido a maior derrota deste acordo: o facto de ter falhado na missão a que se propunha unificar a língua portuguesa falada nos vários países.
“O próprio critério de unificação é um critério absurdo porque sujeita a língua à fonética, o que numa língua falada em vários continentes é bastante bizarro. Ao querer unificar acaba por criar várias formas facultativas, sendo uma espécie de unificação com variantes, portanto, não há unificação”, afirmou Pedro Mexia.
“O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”
A adoção do novo acordo dividiu – e muito – o Parlamento. Em fevereiro de 2014, o tema voltou a ser discutido na Assembleia da República e foi aprovada a constituição de um grupo de trabalho, no âmbito da Presidência do Conselho de Ministros, para discutir a aplicação da atual versão do acordo ortográfico nos vários países que o subscreveram – um grupo de trabalho, que, no entanto, acabou por nunca sair do papel.
José Ribeiro e Castro, deputado centrista e um dos subscritores desta proposta a par de Michael Seufert (CDS) e João Mota Amaral (PSD), contactado pelo Observador, lamentou que o “acompanhamento dos problemas diplomáticos e técnicos do acordo” não estejam a ser acompanhados a esse nível.
“Temo que aconteça com o acordo o que diz aquele ditado português: O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”, afirmou Ribeiro e Castro.
O deputado do CDS fez questão de insistir que não é “contra o acordo, mas a favor da sua revisão”, por considerar que “existem erros técnicos que deveriam ser corrigidos e incertezas públicas que deveriam ser clarificadas” e que todo o processo deveria ter sido gerido “com maior flexibilidade e mais bom-senso”.
À semelhança do que foi sendo defendido por outros protagonistas ouvidos pelo Observador, a não aplicação do acordo em países como Angola e Moçambique – como era pretendido, mas que teima em ir para a frente – foi outra das questões levantadas por Ribeiro e Castro. O antigo líder do CDS acredita que estes dois países tem ainda “estruturas débeis” que não lhes permite aplicaram de forma conveniente o acordo.
Mas, e apesar de não ser contra o acordo ortográfico, Ribeiro e Castro é contra a “obrigatoriedade” da utilização do acordo nos exames nacionais – os alunos podem perder até 5 valores (em 20) se não escreverem conforme as novas regras ortográficas, isto apesar de muitos dos livros do Plano Nacional de Leitura estarem publicados apenas na antiga grafia.
Ora, o centrista descreve esta situação como “um absurdo e uma violência”, pois, considera, os alunos só deveriam ser obrigados a escrever de acordo com o novo acordo ortográfico se o aprendessem “ao longo de todo o percurso escolar”, ou seja, a partir do primeiro ano de escolaridade.
Apesar da controvérsia – neste momento, existem várias ações em tribunal para travarem o processo – o novo acordo ortográfico vai mesmo passar a ser obrigatório. No entanto, só o será em determinados setores: no sistema educativo, claro, em todos os documentos governamentais e organismos que estejam na dependência o Governo, assim como em todos diplomas publicados em Diário da República.
De acordo com o jornal Económico, poderão ser previstas sanções na regulamentação de profissões em que o uso das novas regras ortográficas seja obrigatória – como na classe dos professores, por exemplo. De resto, não existirão consequências jurídicas diretas para quem não respeite o novo acordo.