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Viveu na Holanda durante décadas mas regressou ao Alentejo natal
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Viveu na Holanda durante décadas mas regressou ao Alentejo natal

Viveu na Holanda durante décadas mas regressou ao Alentejo natal

Fernando Venâncio, linguista: "Ver um brasileirismo como uma invasão é coisa de gente insegura"

Autor do livro “O Português à Descoberta do Brasileiro”, Fernando Venâncio propõe uma cerveja ao ministro Santos Silva e diz que há brasileiros com deferência excessiva face ao falar dos portugueses.

É tema antigo e fascina Fernando Venâncio: a influência do português do Brasil no português de Portugal. O linguista não é contra nem a favor, procura uma análise alternativa. No novo livro que acaba de publicar, O Português à Descoberta do Brasileiro, defende que “os brasileiros produziram modos de dizer que nunca nos passariam pela cabeça e que são, não raro, um sumo de inventiva”.

Não há que recear tal influência. Acrescenta: o “papel perturbador da boa ordem lusitana” que muitos atribuem à variante brasileira e, do outro lado do Atlântico, a ideia de que a norma portuguesa é que é prestigiante são “visões radicalmente irreais”.

Depois de Assim Nasceu Uma Língua — livro de 2019 sobre as origens do português, que lhe valeu o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho —, Fernando Venâncio declara agora a “soberania de todos os falantes da língua portuguesa”. Porém, não cede neste ponto: “Para cúmulo da infelicidade, veio o Acordo Ortográfico de 1990, de muitos discutíveis méritos, intrometer-se neste cenário.”

A obra inclui textos novos e uma seleção de artigos que o autor fez publicar na imprensa entre 1984 e 2000. A sessão de lançamento está marcada para 14 de março, às 18h30, no espaço cultural do El Corte Inglés, em Lisboa. Contará com a apresentação do ex-ministro da Cultura Luís Filipe de Castro Mendes.

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Linguista, professor, tradutor, historiador da língua e do léxico — e também autodidata de astrofísica nas horas vagas —, Fernando Venâncio nasceu há 77 anos em Mértola, distrito de Beja. Fez a escola primária em Lisboa e os estudos secundários no Seminário da Falperra em Braga. Estudou filosofia em Ourém e teologia em Lisboa . Em 1970 radicou-se em Amesterdão, aí se formando em Linguística Geral.

Foi professor universitário em Nimega, Utreque e Amesterdão e doutorou-se em 1995 com a tese Estilo e Preconceito: A Língua Literária em Portugal na Época de Castilho. Hoje retirado, regressou à vila raiana que o viu nascer.

Em entrevista ao Observador a propósito de O Português à Descoberta do Brasileiro, defende que em poucas gerações a língua utilizada pelo brasileiros deixará de ser uma variante do português e ganhará autonomia. Logo, estará comprometida a unidade da língua, que é um dos argumentos de quem apoia o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90).

O linguista critica ainda os “mal-entendidos” da parte de brasileiros cultos, que atribuem maior dignidade ao falar dos portugueses. Galvaniza-se quando o tema é o AO90, apontando responsabilidades ao ainda ministro dos Negócios Estrangeiros. Chega a considerar autoritária a posição de Augusto Santos Silva.

Por causa das décadas em que esteve fora, admite que por vezes se esforça para encontrar a palavra exata que pretende. “Acontece-me apenas quando falo, não quando escrevo”, sublinha. Espera em breve escrever a “história apaixonante e nunca contada” da influência da língua francesa no português. Até já está a “fazer o levantamento” dos galicismos. “Não será o próximo livro, mas vai ser o seguinte”, anota.

"O Português à Descoberta do Brasileiro", de Fernando Venâncio (Ed. Guerra & Paz, 2022, 135 pp.)

Porque é que o tema dos brasileirismos o fascina tanto?
Tudo quanto esteja no âmbito dos contactos entre línguas sempre me fascinou. Entre línguas e variedades. Começou muito cedo. Nasci onde agora vivo, em Mértola, mas aos dois anos fui para Lisboa. Aí tive o primeiro embate linguístico, tive oportunidade de comparar diferentes modos de expressão dentro do mesmo país. A sonoridade e a expressão alentejana continuaram a seguir-me, mas em Lisboa não se falava assim, falava-se de maneira completamente diferente, o que me fascinou completamente. O linguista em mim começou aos dois anos. Curiosamente, o alentejano que aprendi e com que tive contacto já não existe.

Já não?
Hoje em Mértola tudo o que são pessoas com menos de 40 ou 50 anos falam praticamente como se fala em Lisboa.

Na sintaxe e no sotaque?
E no vocabulário, o léxico. Sobretudo o léxico. A sonoridade alentejana ainda se conserva, mas mesmo essa está muito diluída. Há uma grande uniformização. E muito antes de eu nascer o falar seria por certo bastante diferente daquele que apanhei nos anos 40 e 50.

No Alentejo não se diz “não me consigo levantar”, diz-se “não me dou levantado”, o que em Lisboa não se ouve.
“Não me dou levantado” ou “não dei os livros lidos”. Na realidade, a expressão genuína conservaria o singular masculino: “Não dei os livros lido”. Com o tempo, passou-se a dizer “não dei os livros lidos” ou “não dei as revistas lidas”, no plural. O que continua a ser muito comum no Alentejo é o gerúndio. Em todo o sul, aliás. “Fazendo”, “ouvindo”, etc.

O gerúndio é também muito comum no português do Brasil e podemos aproveitar esta ligação para começarmos a falar do seu novo livro. Escreve que “devagar, devagarinho, uma sintaxe brasileira vai-se-nos tornando natural” em Portugal. Mas diz também que “é provável” que esteja superada a “época áurea” da influência dos brasileirismos sobre o português de Portugal. É uma opinião ambígua, ou não?
Há uma ambiguidade, sem dúvida. Percorrendo os artigos que escrevi de 1984 a 2000, e que estão incluídos no livro, noto que passei por várias fases e atitudes em relação aos brasileirismos.

"Os nossos jovens continuam a exprimir-se de uma maneira muito sadia. A língua portuguesa nunca irá correr pelo cano de esgoto nem andar pelas ruas da amargura. Há quem saiba exprimir-se tão bem que até espalha essa má notícia"

Qual é hoje a sua opinião?
Acho que é uma batalha perdida, a da unidade da língua portuguesa. Vai demorar muito tempo até haver um idioma brasileiro, mas ele vai vir. Se o mundo continuar a girar, é inevitável. Não é um ponto de vista só meu. Cito Ivo Castro, da Universidade de Lisboa, o nosso maior linguista. Ele diz que nos vamos dirigindo para situações de verdadeiro corte, pelo que haverá um momento em que Portugal terá de escolher: ou adota o brasileiro ou fica isolado.

Concorda inteiramente com ele?
Absolutamente.

Quer dizer que daqui a algumas décadas, vamos supor que são décadas, o português do Brasil será tão autónomo do português de Portugal e de África que constituirá uma língua própria?
Disso não tenho dúvida. Há quem vá mais longe e diga que essa é já a situação atual.

Não é?
Ainda não, mas vamos a caminho disso. O uso cuidado e culto da língua ainda consegue fornecer-nos textos em que é mínima a diferença entre o português de Portugal e o do Brasil. Às vezes a diferença só se vê com uma lupa. Isso deve-se à grande distância que no Brasil se mantém entre a expressão escrita e a expressão falada, mesmo a expressão falada culta, de gente formada. O brasileiro culto, das classes instruídas está na verdade mais próximo da linguagem popular do que da linguagem dos jornais. Não é o caso em Portugal.

Mas, por exemplo, o antigo presidente brasileiro Michel Temer quando intervinha em público usava um português que poderia ser o de Portugal, não fosse o sotaque.
Ele até usava a mesóclise de forma um pouco exagerada, o “dir-se-ia”, etc. Um brasileiro tem a ideia de que os portugueses falam assim. De facto, exprimem-se assim de vez em quando, como eu poderia fazer agora nesta conversa. Mas isso seria uma chapa, não o uso da mesóclise como os brasileiros imaginam que nós usamos. Acontece, portanto, que em relação à nossa expressão há um mal-entendido, há muitos mal-entendidos, da parte de brasileiros a que podemos chamar lusófilos. Projetam em nós coisas interessantes, sim, mas ultrapassadas e que nos soam a nós mesmos como arcaísmos. Pelo contacto com esses brasileiros, sei que estão convencidos de que os portugueses ainda se exprimem como António Vieira ou Manuel Bernardes. Não é verdade. Há já uma distância marcada entre a nossa expressão falada e escrita, embora bastante menos que no Brasil.

Está a referir-se a estudiosos da língua lá no Brasil?
Não. Os linguistas sabem perfeitamente como é. Refiro-me a cidadãos comuns muito instruídos, muito infelizes com a expressão brasileira, que se acham a si próprios como membros de uma superelite linguística.

A imagem que têm de Portugal será responsabilidade dos próprios, que não se atualizam, e também de Portugal, que não se projeta no Brasil. Concorda?
Concordo absolutamente. Faltaria dizer que são pontos de vista ideológicos, o querer manter uma distância em relação ao povinho brasileiro que fala tão mal, na perspetiva dessa gente.

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O português de Portugal corre o risco de se tornar uma peça de museu?
Não para nós. Será sempre a nossa expressão, em que nos sentimos felizes, que queremos acarinhar e desenvolver.

Mas há pouco disse que, para Ivo Castro, Portugal terá de adotar o futuro idioma brasileiro, sob pena de não se fazer entender no mundo.
Ivo Castro tem essa afirmação paradoxal de que Portugal, num futuro distante, terá de fazer uma escolha: ou chamar brasileiro à sua língua ou manter-se independente mas sozinho. Isto não é futurologia. Tudo indica que este momento vai chegar. Penso, no entanto, que o português dificilmente aceitaria chamar-se brasileiro. Não hesitaríamos em preferir ficar sozinhos.

"Adotámos muito material estrangeiro. A própria palavra “estrangeiro” é um francesismo muito antigo. Temos esta capacidade de aceitar, de nos enriquecermos com materiais alheios, o que é uma amostra da nossa atitude cosmopolita, diferente da atitude espanhola ou francesa."

Há quem vaticine que no futuro o português do Brasil irá fundir-se com o espanhol sul-americano.
Isso é uma loucura. Cito isso no livro, mas não adiro, de maneira nenhuma. É daquelas patacoadas de gente que se julga inteligente, que tira consequências do mapa geográfico. O Brasil tem uma consciência tão forte de si próprio e da sua expressão que pode introduzir alguns sul-americanismos, como há também brasileirismos que alguns países sul-americanos usam, mas uma fusão nunca se dará. Nada indica isso. Nós, linguistas, estamos muito atentos à realidade atual e é a partir dela que fazemos as nossas lucubrações e os nosso vaticínios. Espanha estaria sempre, como está, muito atenta ao que se passa no território da sua língua.

Há uma Real Academia de Espanha, que é a autoridade mundial da língua. O português não tem uma autoridade académica global. Porquê?
Nós nem temos uma autoridade própria [em Portugal]. A nossa Academia das Ciências de Lisboa não tem autoridade para determinar o que é o nosso português. A Academia Brasileira de Letras também não. No espaço da língua portuguesa não existe, como existe na Espanha ou na França, uma autoridade linguística. A única autoridade que temos nesta matéria é o Estado. Por isso é que as revisões ortográficas são emitidas pelo Estado, não pelas academias.

Somos historicamente desleixados com a nossa língua?
Somos diferentes dos outros. Adotámos muito material estrangeiro. A própria palavra “estrangeiro” é um francesismo muito antigo. Temos dezenas de milhares de castelhanismos, que introduzimos e usamos já sem a mínima noção disso, e temos bastantes milhares de galicismos, a maioria dos quais nem sabemos que o são. Temos esta capacidade de aceitar, de nos enriquecermos com materiais alheios, o que é uma amostra da nossa atitude cosmopolita, diferente da atitude espanhola ou francesa.

Não é por sermos servis?
Não. Somos realmente cosmopolitas, o que nos diferencia dos vizinhos mais próximos. Esta nossa atitude é que nos leva a resultados que poderiam parecer realmente um desleixo. Historicamente talvez o tenha sido. Se hoje tomasse uma cápsula do tempo e fosse a 1450 e dissesse: “Minha gente, vai-se passar uma coisa tremenda na nossa língua. A partir de agora vamos absorver dezenas de milhares de elementos da língua vizinha e vamos modificar muito a nossa.” Ainda só estou a falar do léxico, mas no livro anterior, Assim Nasceu uma Língua [2019], mostrei como a castelhanização penetrou a própria gramática. O sonho seria chegar a 1450 e dizer: “Agora, pára, vamos conservar o nosso português, que ainda é muito parecido com o galego, e vamos enriquecê-lo a partir de nós.” Ora, continuámos criativos em relação ao nosso léxico, derivando, etc., mas nunca tivemos grande preocupação. Há e houve historicamente um certo desleixo.

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É isso que pode explicar que não haja uma autoridade da língua?
Olhe, acho que é uma conexão muito importante, que nunca fiz.

O filólogo Rodrigo de Sá Nogueira, no conhecido Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem, de 1969, defendia que a adoção de galicismos ou anglicismos demonstrava servilismo por parte dos portugueses. O professor vê cosmopolitismo. Acha que os portugueses têm nesta matéria um avanço mental que à partida não reconhecem?
É interessante ver que, nesse dicionário, Sá Nogueira oferece resistência aos galicismos e anglicismos, mas não aos castelhanismos. Ele estava num tempo em que havia ainda uma memória do galicismo e, portanto, uma possibilidade de resistência. Neste momento, isso perdeu-se. Se temos alguma resistência agora, é em relação ao anglicismo e também essa se vai perder. Até por volta de 1730, no caso dos castelhanismos, não havia consciência de o português se estar a castelhanizar, antes uma consciência enganosa de que se estava a latinizar. E estava, mas através do castelhano.

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Getty Images/iStockphoto

A preocupação com estrangeirismos, ou brasileirismos, é própria de puristas? É uma preocupação conservadora?
É, sem dúvida.

Reconhece algum conservadorismo na sua análise?
Nem tanto. Percorrendo o livro, há uma porção de ambivalências, até da minha parte. Não é fácil ter uma atitude definida em relação aos brasileirismos. Aceito isso e começo por aceitá-lo em mim próprio. Há brasileirismos que já não nos vão deixar, embora eu conscientemente use alguns e outros não, e há outros que ficarão, com o passar de uma ou duas gerações. Como atitude frente aos brasileirismos, não me considero conservador. Foi uma coisa que nos aconteceu, como outras.

Em última análise, qual é o problema e usarmos palavras de outras variantes ou de outras línguas? Põe-se em crise a nossa identidade?
De maneira nenhuma. Há quem o sinta assim. Há quem seja hiperportuguês, do ponto de vista português, e veja cada brasileirismo como uma invasão, um desleixo nosso, uma forma de perda de identidade, etc. É coisa de gente insegura. Há na nossa atitude em relação ao português uma grande insegurança, daí a quantidade de gente que tem um gosto imenso em apontar erros e que vende e dissemina essa insegurança. Falamos e escrevemos um português muito cuidado, muito bom, muito são. O elemento de insegurança não é muito nosso, mas é nosso, em todo o caso. Sei quanta insegurança linguística há em espanhóis, franceses, italianos, holandeses. O neerlandês é a minha outra língua. Vamos dizer assim: o falante é um ser inseguro. Quanto a isso, não podemos fazer nada.

É inseguro porquê? Receia não se fazer compreender?
Receia ganhar má-fama. Receia que lhe digam que não sabe falar a sua língua.

O falante teme não ser digno de determinada sociedade?
Nunca pensei nisto em termos absolutos, mas faz sentido, sim. De um lado, isso, do outro a auto-imagem. O receio de ser apontado como produtor de erros, pouco culto. O falante quer pertencer à elite e não quer ser excluído dela. Provavelmente, isso dá-se em todas as línguas. Há quem use isso de maneira oportunista em relação aos brasileirismos, achando que eles nos roubariam a identidade, que nos estariam a invadir. Termos mais ou menos bélicos.

Às vezes xenófobos?
Sem dúvida. Há um tremendo antibrasileirismo larvar entre nós, que tem uma raiz xenófoba.

O jornalista Carlos Fino defendeu num livro recente que o Brasil tem vergonha da herança portuguesa. Será que a xenofobia está em ambos os lados do Atlântico?
Vamos dizer que a xenofobia em relação a Portugal e aos portugueses é, no fundo, uma preocupação nossa. Eles nem sequer pensam nisso. Nós, sim, que gostamos de falar da amizade luso-brasileira. Uma parvoíce nossa, como diria Eduardo Lourenço. Ora, não há exemplo de um único portuguesismo que se tenha introduzido no Brasil nos últimos 50 ou 60 anos. Um único. Estamos numa situação assimétrica.

"Examinem o que se está a passar, quantos erros e hipercorreções se introduziram no português com o Acordo Ortográfico. A palavra 'excepto' já aparece escrita de cinco maneiras diferentes. Deveria haver uma autoridade que conseguisse uma análise ao que se está a passar."

Não é difícil imaginar alguém no Brasil a ler esta entrevista e a pensar contestar a sua afirmação.
Ficaria muito contente. Que exemplo há de um portuguesismo que se tenha instalado no Brasil conscientemente, assim como nós dizemos “tal coisa, como dizem os brasileiros”? Não ponho de parte que algum portuguesismo tenha passado, por casualidade, mas falta de certeza a consciência de que é assim que falam os portugueses. Tenho bastantes contactos com linguistas e falantes do Brasil e eles também não me sabem dar um exemplo. É interessantíssimo.

Porque é que a influência de África não nos preocupa tanto? Não há muitas palavras das línguas bantas que tenham entrado em Portugal?
Os exemplos comuns são “bué” e “cota”. O Brasil é muito mais importante do ponto de vista das nossas preocupações. A ligação que temos ao português de África é muito fraca e também é verdade que o português de África vai convergindo, lenta mas seguramente, com o do Brasil. Dou o exemplo de um livro dos anos 90 de José Eduardo Agualusa em que se usa o “lhe” como complemento direto: “Eu lhe conheço”. Espantou-me muito, são brasileirismos que pelos vistos estão adotados.

Esse “lhe” é legítimo?
Acho que é legítimo. Os puristas brasileiros, que são lusófilos ou talvez “lusópatas”, imaginam que aquilo que é próprio do Brasil é recente. E não é. Há exemplos do século XIX em que o “lhe” aparece como complemento direto.

Um dos temas frequentes no seu livro e na sua intervenção pública nos últimos anos é o Acordo Ortográfico de 1990. Chama-lhe “produto mal-enjorcado”. Uma vez que o AO é ensinado nas escolas e utilizado pela maioria dos portugueses, não seria mais adequado rever o que possa estar mal, em vez da revogação que muitos detratores defendem?
Não tenho ilusões a esse respeito. A situação torna-se mais dramática, se não mesmo trágica, a cada ano que passa. Reverter será neste momento difícil, mas que pelo menos houvesse, da parte do poder, uma atitude diferente. Examinem o que se está a passar, quantos erros e hipercorreções se introduziram no português com o AO. A palavra “excepto” já aparece escrita de cinco maneiras diferentes. Deveria haver uma autoridade que conseguisse, já não digo uma reversão ou uma revisão imediata, mas uma análise ao que se está a passar.

Qual é o travão?
Não há vontade política.

Porquê?
Sei muito bem: por causa do Partido Socialista. Tudo isto está a ser barrado por gente do PS. Falo à vontade porque não sou sequer cidadão português. Sou cidadão holandês, embora não pareça. A Holanda não permite a dupla nacionalidade, infelizmente. Foi por razões patrióticas que me tornei estrangeiro, mas isso é outra história. O PS tem barrado e há um nome: Augusto Santos Silva.

Dentro do Governo, o ministro dos Negócios Estrangeiros foi quem ficou com o dossier AO.
Exatamente. E há ainda Edite Estrela, que é outro peso-pesado do PS. Houve há alguns anos, da parte da Assembleia da República, uma tentativa de abordar este assunto. O presidente da comissão parlamentar era do PSD e eu próprio tive o gosto de ser convidado para lá ir.

Fernando Venâncio viveu na Holanda durante décadas mas regressou ao Alentejo natal

DR

Se tivesse oportunidade de estar frente ao ministro Santos Silva, o que é que lhe pediria?
Pediria uma cerveja e meia hora de conversa. Em meia hora conseguia dar-lhe o retrato do que se passou, do que se está a passar e do que se prevê que se possa passar.

Iria tentar convencê-lo a…
…a não ser tão autoritário. Acho que é um bom ministro dos Negócios Estrangeiros, mas não é disso que se trata. Estamos a falar da nossa língua. Poderia informá-lo sobre coisas que ele possivelmente nunca ouviu e parece não ter vontade nenhuma de ouvir. Creio que lhe falta curiosidade para saber o que se passa ao lado e fora do AO. A situação atual é insustentável e está a avançar para um ponto que não direi irreversível, mas em que se torna difícil uma atitude saudável. Em 32 anos de AO, não existe da parte dos meus colegas linguistas portugueses que aderiram um único artigo, já não digo livro, em que façam a defesa do acordo do ponto de vista linguístico. Um único. Adotaram-no, mas têm vergonha de o defender. Digam-nos uma vantagem linguística do AO. Não sei se há ou não, mas se adiantarem uma, começarei por lhes agradecer.

Agora que Santos Silva é apontado como possível presidente da Assembleia a República, talvez o professor tenha de tomar uma cerveja e pedir meia hora ao chefe do Governo. Não será ele o interlocutor?
Seria, seria, mas sabemos perfeitamente que Augusto Santos Silva é um dos pesos-pesados do Governo e continuará a ser um dos pesos-pesados da vida pública, além de uma grande força de opinião dentro do PS. Portanto, não sei se adiantaria ter uma conversa com António Costa.

Disse há pouco que falamos e escrevemos num português muito cuidado. Mas não é raro ouvirmos intelectuais que criticam o uso da língua, dizem até que os mais novos já não sabem português por causa das mensagens e da linguagem da internet.
Não é verdade. Exprimimo-nos num ótimo português. Essa gente está a falar consigo, com os seus próprios fantasmas. Os nossos jovens continuam a exprimir-se de uma maneira muito sadia. A língua portuguesa nunca irá correr pelo cano de esgoto nem andar pelas ruas da amargura. Há quem saiba exprimir-se tão bem que até espalha essa má notícia, o que terá a ver com a insegurança de que já falámos e com a incapacidade de dizer bem. É muito difícil dizer bem e dizer bem de nós próprios. Tento, com as poucas forças que tenho, contrariar isso e mostrar como em Portugal se escreve e fala mesmo muito bem.

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