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Parar de ver pornografia infantil é uma das indicações dadas assim que a intervenção começa. A ideia de que “enquanto estão a ver os filmes estão entretidos e não fazem mal a crianças” está errada: o interesse sexual em menores só está a ser reforçado e não resolvido. “A partir de certa altura, a pornografia [infantil] deixa de ter piada. Então, se surgir uma oportunidade, estas pessoas podem eventualmente avançar para o abuso sexual”. Na maioria dos casos que o psicólogo Ricardo Barroso acompanha, os pacientes não só têm noção de que ver este tipo de pornografia é ilegal como sabem que “a ativação sexual que têm ao vê-lo é algo que os deixa desconfortáveis”. “É aliás o facto de os deixar desconfortáveis que muitas vezes os leva à intervenção”, explica, em entrevista ao Observador.
Chegam “desiludidos” consigo próprios, “desesperançados” e alguns até mesmo num “estado depressivo”. “Um pedófilo não é um predador que está do outro lado da esquina atrás de crianças. Isto ocorre em todos os estratos sociais. Estamos a falar de pessoas com escolaridade, em profissões respeitadas, que supomos que tenham determinado tipo de valores. Mas que têm esta distorção cognitiva”, afirma Ricardo Barroso. Alguns, em determinado momento, avançam para o abuso sexual. Muitos passam a vida inteira cientes deste problema, mas sem pedir ajuda porque conseguem, por si só, controlar os desejos sexuais. Outros procuram acompanhamento médico — como é o caso dos 24 homens que pediram ajuda à Troubled Desire (“Desejos problemáticos”, na tradução livre para português), um projeto que nasceu na Alemanha e que chegou a Portugal há menos de dois anos.
Começa com um questionário anónimo e online, para a qual o utilizador é direcionado se clicar na frase que aparece no site: “É possível que eu próprio(a) me sinta atraído(a) por crianças.” Depois de carregar em “iniciar sessão”, surgem as primeiras perguntas: idade, género, zona de residência, escolaridade, emprego, estado civil e religião. A seguir, é feito um aviso de que as questões seguintes têm “conteúdo sexual explícito”: são sobre relações sexuais com adultos, tipo de atração que sente por crianças — com desenhos de corpos de menores antes e depois da puberdade —, proximidade com crianças no dia-a-dia e consumo de pornografia infantil. No longo formulário, há ainda questões sobre fantasias sexuais, abusos de que possa ter sofrido ou cometido e o sofrimento psicológico em que se encontra. No final, é apresentado um pequeno relatório sobre as respostas e a indicação para o que fazer a seguir: “Entre em contacto com um terapeuta profissional.”
“Depois, entramos em contacto com a pessoa e propomos-lhe um programa de intervenção”, explica o responsável pelo projeto. Esse contacto é feito online, através de um chat, não havendo por isso contacto físico ou sequer visual entre o terapeuta e a pessoa que procurou ajuda. Mais tarde, pode passar a haver um acompanhamento através de videoconferência e até presencial. Em Portugal, a coordenação deste projeto internacional, que está presente em mais de 15 países, está a ser feita pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em colaboração o SexLab, o Laboratório de Sexualidade Humana da Universidade do Porto.
Como contactar a Troubled Desire?
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- Através do site https://troubled-desire.com/pt/;
- Ou enviando um email para info@troubled-desire.com.
Até agora, já pediram ajuda 24 pessoas. O mais novo tem 26 anos e o mais velho cerca de 60 — a média de idades ronda os 30. Todos homens. A maioria vive na região da Grande Lisboa e do Grande Porto — mas já houve contactos de pessoas do Brasil, Angola ou Moçambique a quem foi feito o acompanhamento virtual e que passaram a ser seguidas por profissionais do país de origem. Partilham entre eles a atração sexual que sentem por crianças. E o facto de terem pedido ajuda.
Medo de vir a abusar de crianças é o que os leva a pedir ajuda. “É um bom sinal: a pessoa tem noção da gravidade da situação”
Os 24 homens nunca cometeram qualquer crime de abuso sexual. “E se nós algumas vez detetarmos isso — é avisado sempre logo no início da intervenção —, não só somos obrigados a relatar e a denunciar o caso como fazemos questão de o fazer. Não queremos o programa que sirva para legitimar este comportamento. A ideia é fazer esta intervenção para evitar precisamente que aconteça”, garante Ricardo Barroso.
É precisamente o medo de o fazer que os leva a procurar uma intervenção. O medo de ceder e acabar por abusar de uma criança é, aliás, “um bom sinal do ponto de vista clínico”. Mas também o medo de serem olhados como predadores. “Muitos deles são alvo de algum preconceito no sentido do tal predador. A pessoa tem um interesse sexual e sente que há ali alguma atração por menores, então pensa: ‘Vai ser uma questão de tempo até me tornar um predador’. É um bom sinal: a pessoa tem noção da gravidade da situação”, diz o psicólogo ao Observador.
O medo é também o que diferencia a pessoa que não procura acompanhamento daquela que tem coragem de pedir ajuda — como o caso do homem de 27 anos que, em 2019, se entregou na esquadra da PSP do Cacém, em Sintra, por estar na posse de pornografia infantil, pedindo para ser preso por não conseguir aguentar o desejo sexual por crianças. “Na grande maioria dos casos, são indivíduos que têm consciência do problema que têm, nunca avançaram para alguma abordagem abusiva, mas têm medo de algum dia acabarem por fazê-lo”, explica o especialista, adiantando que, quando pedem intervenção do Troubled Desire, “já pensaram muito neste processo” e o “interesse sexual por menores é algo que os deixa desconfortáveis”.
Cacém. As razões da justiça para não prender suspeito de pedofilia que pediu para ser preso
Pedofilia é um “problema crónico”, mas controlável. “Imaginemos que a pessoa tem um amigo com filhos. Não podemos dizer: ‘Evite-o, fuja a correr'”
Entre os casos que já chegaram à Troubled Desire, não existem pessoas que trabalhem com crianças — apenas pessoas que têm contacto com elas em ambiente familiar. Não é o mais sensato. Não se trata de desconfiança e de achar que uma pessoa que sofre de pedofilia vai acabar por abusar sexualmente das crianças com quem trabalha. Mas não é aconselhável que um pedófilo seja motorista de um autocarro de uma escola ou funcionário de uma creche. “Porque vai fazer com que surjam determinado tipo de estímulos sexuais”, esclarece o psicólogo Ricardo Barroso.
Por isso é que uma das primeiras fases da intervenção é identificar que estímulos são esses. “Tentamos perceber qual é a rotina de vida da pessoa. Dentro dela, quais são os estímulos potenciadores deste mal estar. E, em função do estímulo, tentamos encontrar soluções para o controlar, mantendo a sua vida normal, mas obviamente tendo algum cuidado”, explica o especialista em conversa com o Observador.
No caso de o paciente consumir pornografia infantil, a indicação é “afastar-se e reorientar-se para outro tipo de estimulação”. Mas quando a dimensão é a vida real, com o contacto ocasional ou não com crianças, a solução não é tão simples. “Imaginemos que a pessoa tem um amigo com filhos. Não podemos dizer: ‘Evite-o, esta pessoa não pode entrar na sua casa, fuja a correr’. Fazemos com que a pessoa saiba gerir da melhor forma este tipo de contacto. Evitar o estímulo é sempre mais sensato e mais eficaz do que estar a geri-lo”, aponta ainda.
Grande parte da intervenção passa pela psicoterapia: “Trabalhamos muito a dimensão da sexualidade do ponto de vista do contacto com os outros, do ponto de vista emocional, as crenças sobre a sexualidade, etc”. No entanto, há uma parte que passa pelo encaminhamento para um psiquiatra e por medicação. “Não resolve o problema, mas acaba por ajudar na estabilização de humor. Ajuda a pessoa a recuperar, já que algumas chegam-nos muito debilitadas ou mesmo depressivas”, relata.
Quando fala em medicação, o psicólogo Ricardo Barroso refere-se a antidepressivos ou ansiolíticos, já que defende que a castração química “não é propriamente eficaz”. “Reduz a libido, é verdade. Mas resolve o problema do pescoço para baixo. Do pescoço para cima, onde estão as fantasias sexuais, não resolve“, argumenta, explicando que “parte dos abusos não acontecem só com o pénis: há muitos abusos digitais, com os dedos ou com objetos”. No contexto da Alemanha, onde surgiu o projeto do Troubled Desire, a castração química é opção: mas em “casos extremamente graves, de pessoas que não controlam os seus comportamentos e alguns casos de deficiência mental, de distúrbios cognitivos”.
As práticas abusivas podem continuar para lá da castração química, especialmente porque a pedofilia é “um problema crónico” que “vai manter-se ao longo da vida”, com medicação deste tipo ou não. A cura total “é difícil”. “Os interesses sexuais por crianças vão manter-se sempre dentro do repertório comportamental da pessoa”, remata o psicólogo.
“É muito complicado para um casal que tem filhos, quando eventualmente um deles relata que tem desejo sexual por crianças”
É uma pergunta que muitos dos pacientes que chegam colocam: “Devo contar à minha mulher, ao meu marido?”. É uma “parte complicada do processo”, para a qual não há uma resposta certa, e a decisão fica sempre a cargo da pessoa que sofre de pedofilia. Mas, “na grande maioria dos casos, acabam por nunca contar a ninguém, pelo menos numa primeira fase”. Apesar de, em Portugal, o projeto não existir há tempo suficiente para se ter uma perceção mais clara sobre qual a decisão dos pacientes no que diz respeito a partilhar ou não o seu problema, “pela experiência dos colegas alemães, a tendência é a mesma: muita gente não conta a ninguém”.
“Recordo-me de dois casos em que as pessoas tinham falado com amigos, mas começaram a sentir que do outro lado havia alguma estranheza ou falta de apoio“, conta o psicólogo, acrescentando que esta “pouca compreensão” acaba por “reforçar o problema”. Normalmente, não falam nem com o melhor amigo porque “antecipam o que virá do outro lado”. “Vai haver sempre uma desconfiança enorme em relação àquela pessoa, mesmo que diga: ‘Eu controlo’. Às vezes, os amigos até têm crianças na família…”, diz. Ricardo Barroso aponta também que “é muito complicado para um casal que tem filhos, quando eventualmente um deles relata que tem desejo sexual por crianças”. “Mesmo que a pessoa nunca avance para o abuso, é muito complicado”, afirma.
Porém, lembra que “o processo de ativação sexual nos pedófilos é semelhante a outros processos noutro tipo de pessoas”, e uma pessoa que tem desejo por crianças não vai sentir estímulos sexuais com todas elas, tal como uma pessoa que tem desejo por adultos não os vai sentir com todos eles. “Assim como as pessoas vão na rua e pode haver um clique para a pessoa A, mas olham para o outro lado e não há um clique para a pessoa B, também este indivíduos sentem exatamente o mesmo. Eles não olham para todas as crianças e ativam sexualmente para todas. Às vezes ativam a olhar para determinadas crianças com determinado tipo de características. Por isso, há muitas pessoas a quem os filhos não ativam nada, mas pode acontecer com outros familiares ou filhos dos amigos”, esclarece.
Prisão faz sentido nos casos mais graves. Porém, “não é a cadeia que vai tirar os interesses sexuais por crianças”
No ano de 2020, 255 pessoas foram condenadas pelo crime de abuso sexual de menores. Desse total, foi aplicada prisão efetiva a 33%, tendo a maioria ficado com pena suspensa, de acordo com os dados mais recentes disponibilizados no portal Estatísticas da Justiça. À exceção de 2019, em que a percentagem de pessoas condenadas a prisão efetiva por abuso sexual de menores foi superior a 40%, até 2012 esse valor rondou sempre os 30%. E, em 2011, foi até inferior: 25% de condenados a prisão efetiva.
Sejam 10, 15 ou 20 anos de prisão. Ao fim desse tempo, “é muito provável que a pessoa saia e mantenha os mesmos interesses sexuais por crianças”. “Não é a cadeia que vai tirar os interesses sexuais por crianças. Na maioria dos casos, faz sentido uma pena suspensa com acompanhamento psicológico”, defende Ricardo Barroso. Mas há casos em que a prisão efetiva faz sentido: “Quando estamos a falar de pessoas em que os abusos são reiterados, ocorreram durante anos, houve claramente um aproveitamento dos menores, creio que não é só a intervenção psicológica que vai resolver. Neste tipo de casos, faz todo o sentido que sejam presos. Também tem a ver com o nível de risco. Mas tem de haver dentro da prisão este acompanhamento”.
O especialista não é contra a prisão em casos de pedofilia: mas não defende a prisão para todos os casos. “Se as pessoas têm noção do que fizeram, há um genuíno arrependimento, há interesse em mudar, o que queremos é que esta pessoa não reincida mais. Quando a probabilidade de reincidir é baixa, podemos eventualmente trabalhar com esta pessoa na comunidade“, defende o especialista.
Lista de pedófilos tem 5.717 pessoas, mas “é um paradoxo”. Apenas identifica os condenados por abusos sexuais de menores e não os ajuda
Para Ricardo Barroso, “a medida jurídica devia coadunar-se com a medida clínica”. E é também por isso que considera a chamada lista de pedófilos um “paradoxo”. O Registo de Condenados por Crimes Sexuais contra Crianças, criado em 2015, é a base de dados que contém a identificação de todos aqueles que tenham sido condenados por esses crimes e que pode ser consultada por magistrados para fins de investigação criminal, de instrução de processos criminais, de execução de penas e de decisão sobre adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de crianças ou regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Atualmente, são 5.717 as pessoas que constam nesta lista, segundo dados fornecidos pelo Ministério da Justiça ao Observador. Em 2020, embora só existam dados até 31 de outubro, foram criados mais 457 novos registos — uma média de 45 novos condenados por mês. Este valor é também superior ao de novos 330 registos introduzidos em 2019 — o que dá uma média mensal de 27.
O número total de registos vai oscilando, não só porque são adicionados novos nomes à lista à medida que há novas condenações mas também porque algumas pessoas vão saindo da lista com o passar dos anos: nos casos em que for aplicada uma pena de prisão de entre cinco anos a 10 anos, os dados ficam disponíveis durante 15 anos; se a pena for superior a 10 anos, os dados são eliminados ao fim de 20 anos. Portanto, as pessoas que cometem um crime sexual contra crianças ficam na lista vários anos. “O Estado providenciou que sejam inseridos na lista durante anos e anos, mas não lhes possibilita uma intervenção psicológica durante anos e anos“, lamenta o psicólogo.
Ricardo Barroso tem “expetativa de que venha a acontecer em Portugal o que aconteceu na Alemanha”, onde o projeto, inicialmente “muito criticado”, foi bem sucedido e acabou “absorvido pelo serviço nacional de saúde alemão”. “Espero que com o tempo se possibilite este tipo de resposta psicoterapeuta às pessoas, assim como em qualquer outra doença crónica que tem a consulta de seguimento ao longo de anos”, remata