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"Diziam-me que aquilo não era para mulheres". Mineiras ganham espaço nas minas portuguesas

Só agora Portugal abandonou uma Convenção com 83 anos que proibia empregar mulheres em minas. Mas a primeira mulher começou a trabalhar numa mina em 2003. Agora, são 15 as mineiras em todo o país.

“Ela nem um mês aguenta lá dentro a trabalhar”. Lucinda Batista repete a frase que ouviu do dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Mineira (STIM), tentando imitar-lhe, no tom, a “arrogância”. Tinha visto uns “papéis na rua” a dizer que a mina da Panasqueira estava com falta de mão-de-obra. Procuravam homens ou mulheres para trabalhar. A viver naquela zona da Covilhã desde pequena, Lucinda costumava dizer que, quando fosse “grande”, ia “trabalhar com uma máquina de jumbo”, usada para fazer perfurações. Já o pai era mineiro. Morrera aos 42 anos com silicose — uma doença pulmonar provocada pela inalação de partículas de poeira. Lucinda, então com 27 anos, não perdeu tempo e dirigiu-se à mina da para dizer que queria lá trabalhar. “Sou uma filha da terra”, descreve-se Lucinda, ao Observador.

Nessa altura, estava longe de saber que a verdadeira luta que ia travar era contra o sindicato e não contra as rochas. Fizeram uma “campanha” para impedir que se tornasse mineira, conta. Passou meio ano, desde que a empresa quis contratar Lucinda até que pudesse pôr o capacete com lanterna na cabeça e descer à cave da Panasqueira para começar a trabalhar. Mas, finalmente, em 2003, Lucinda tornou-se a primeira mulher mineira em Portugal. “E na Europa”, acrescenta. Antes dela, só havia outra figura feminina nas minas: Santa Bárbara, a padroeira dos mineiros.

Com o título de primeira mineira em Portugal, Lucinda abriu caminho para as que se seguiram. Cerca de 15 anos depois, continua a ser a única mulher que alguma vez trabalhou como mineira na mina da Panasqueira, mas o mesmo não aconteceu noutras minas. Atualmente, há cerca de 15 mulheres mineiras e mais de uma centena noutros cargos da indústria. Isto apesar de só esta terça-feira Portugal ter abandonado uma Convenção adotada há 83 anos, que proibia o emprego de mulheres em trabalhos subterrâneos em minas.

“Nessa altura [em 1935], a subnutrição era uma realidade, as mulheres ficavam fragilizadas pelo parto. Agora não. As mulheres conseguem ter as mesmas capacidades físicas que os homens. É uma convenção obsoleta"
Joana Lima, deputada do PS

“Já não faz sentido existir esta Convenção, quando há um conjuntos de normativas internacionais que ultrapassam esta discriminação. O mundo mudou”. A opinião é da deputada do PS Joana Lima, autora da proposta de resolução para a saída de Portugal da Convenção adotada a 4 de junho de 1935, durante a 19º sessão da Conferência Geral da Organização, em Genebra. A proposta era “mais uma formalidade”, embora  Joana Lima a considerasse “urgente”. É que, em 1995, Portugal aprovou uma Convenção em sentido contrário, adotada pela Organização Internacional do Trabalho, que consagrava a igualdade no acesso ao emprego a mulheres e a homens, nas minas. Também nesse ano, foram aprovadas diretivas da União Europeia sobre segurança e saúde dos trabalhadores das minas, com medidas preventivas e de proteção quer para homens quer para mulheres.

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Por estar “ultrapassada” por estas normativas, Joana Lima defendia que a Convenção não fazia sentido. “Nessa altura [em 1935], a subnutrição era uma realidade, as mulheres ficavam fragilizadas pelo parto. Agora não. As mulheres conseguem ter as mesmas capacidades físicas que os homens. É uma convenção obsoleta. Só faz sentido que sejam protegidos os direitos das mulheres”, disse Joana Lima ao Observador, destacando que “a legislação portuguesa tem dado passos largos e tem evoluído muito para criar condições de igualdade entre homens e mulheres”. “Não podemos dizer que não existem pequeninas arestas a limar”, alerta ainda. Esta terça-feira foi limada uma delas: a proposta da deputada foi aprovada por unanimidade.

“Nunca deixei de levar o meu batom para dentro da mina”

“Algumas pessoas que o sindicato lá tinha foram das piores neste processo”. A luta de Lucinda teria sido mais fácil se a proposta de Joana Lima tivesse sido aprovada em 2003. Quando se candidatou ao cargo de mineira na mina da Panasqueira, o STIM agarrou-se à Convenção de 1935, para tentar impedir a entrada de uma mulher na indústria mineira, pela primeira vez, em Portugal. “Primeiro era porque a mina tinha de ter um balneário e uma casa de banho só para mulheres. Ou seja, só para mim. Depois era porque seria perigoso para a reprodução. Mas eu já tinha dois filhos e não queria ter mais”, explica ao Lucinda, ao Observador.

Lucinda Batista entrou na indústria mineira em 2003 e acabou por sair no mesmo ano devido a um acidente de trabalho (Foto cedida por Lucinda Batista)

Luís Cavaco, atual coordenador do sindicato, já era sindicalizado em 2003 e lembra-se bem da polémica em torno da entrada de uma mulher nas minas. Mas nega: “Não houve tentativa de travar nada. Isso foram conversas paralelas ao sindicato”. Luís recordou que “a Convenção proibia as mulheres, porque havia um estudo que dizia que a reprodução nas mulheres seria afetada”. “O que fizemos foi dar uma informação mais esclarecedora. Tentámos aconselhar, porque para nós é indiferente ser um trabalhador homem ou mulher. Foi nesse sentido. Nunca estivemos contra”, garante o coordenador ao Observador.

Mas a luta durou meio ano. Lucinda chegou a ir a programas de televisão falar sobre ela. “Não foi fácil. A minha sorte foi a empresa estar do meu lado”, admite. Construíram um balneário e uma casa de banho só para Lucinda. “Uma parvoíce”, diz a rir-se. E explica: “Tinha de andar 30 minutos só para lá chegar”. Dispensava a casa de banho só para ela, mas não dispensava a maquilhagem: “Nunca deixei de levar o meu batom para dentro da mina. O cabelo é que já não andava arranjado”.

“Primeiro era porque a mina tinha de ter um balneário e uma casa de banho só para mulheres. Ou seja, só para mim. Depois era porque seria perigoso para a reprodução. Mas eu já tinha dois filhos e não queria ter mais”
Lucinda Batista, primeira mineira portuguesa

Lucinda também vê parte dessa “sorte” no apoio das três centenas de homens com quem trabalhava. Ainda assim, reconhece que “houve alguns machistas que continuaram a sê-lo”. E percebeu isso no primeiro dia de trabalho. O responsável pelo novo grupo de trabalhadores — no qual estava Lucinda — tinha uma consulta. “Foi tudo ao molho e fé em Deus”, recorda. Ficaram entregues a “mineiros mais velhos”, que começaram a disparar instruções apenas numa direção: “Ensinaram os meus colegas e eu fiquei de parte”. Lucinda ficou a observar. “O homem não me dizia nada a mim. Tinha a mania que o filho era o melhor jumbeiro e agora vinha uma mulher ocupar-lhe o lugar”, conta Lucinda. “Ai é?”, pensou. Ficou atenta ao que o velho mineiro estava a fazer e a ensinar e foi lhe fazendo perguntas, para perceber se “era assim que se faziam as coisas”. “É, é. Mas ainda não é para si”, recorda Lucinda a resposta do velho mineiro.

Aprendeu na mesma e tornou-se jumbeira. Isto é, fazia perfurações com a máquina de jumbo. Passados 15 dias de começar a trabalhar na mina, houve uma derrocada. Ninguém morreu ou ficou ferido. Foram só danos materiais. Também não assustou Lucinda: “Não me meteu medo. Continuei”. Continuou “pouco tempo”, mas o suficiente para “concretizar um sonho”. A primeira mineira só esteve na Panasqueira menos de um ano. Ainda em 2003, teve um acidente que a impediu de continuar. Escorregou num óleo e paralisou o músculo dos olhos. “Depois do acidente, tinha direito a indemnização, mas até nisso aquele senhor [o dirigente do STIM da altura] me prejudicou”, acusa.

Antes de sair, Lucinda mostrou “a todos os mineiros” o que o sindicato lhe “tinha feito”. Mandou uma carta à união dos sindicatos da indústria mineira. “Uma pessoa do próprio sindicato ajudou-me a escrever as cartas e a indicar-me para onde devia enviá-las”, recorda ao Observador, revelando que foi despedida recentemente. Foi marcado um plenário para resolver o problema de Lucinda. A primeira mulher mineira recebeu a indemnização e a sua história inspirou a novela portuguesa “Santa Bárbara”. Agora tem o seu próprio atelier onde cria peças de roupa.

Na mina da Panasqueira, não existem mulheres. Lucinda foi a primeira e única (Foto: Artur Machado / Global Imagens)

Artur Machado / Global Imagens

“Quando tentamos fazer alguma coisa que eles acham que não conseguimos, dizem: ‘Deixa estar que eu faço’”

A Convenção foi usada como arma contra Lucinda, mas o atual coordenador do STIM, Luís Cavaco, garante que o alerta que foi feito a Lucinda, em 2003, continua a ser feito agora: “Enquanto sindicato, temos representatividade na Comissão de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho, e nesse sentido, a toda a hora apelamos aos perigos deste trabalho, para a gestação de bebés e não só. É um trabalho considerado de muito risco”. Luís explica que uma frente de trabalho chega a ter 80% de humidade e 40 graus de temperatura. “Quando há disparos com explosivos, para não levantar muito pó, regamos algumas zonas para minimizar o impacto e evitar que os trabalhadores respirem esse pó”, acrescenta.

Os perigos não travam as mulheres. Andreia Rebolo foi uma das primeiras mineiras na mina de Neves-Corvo, em novembro de 2010. É mineira desde então e quer continuar.  Antes disso era carteira e costumava ouvir rádio. “Houve um anúncio da Somincor [empresa que explora a mina] a informar que estavam a recrutar mineiras. Fui, fiz a entrevista e entrei. Eu e outras mulheres”, recorda a mineira. Andreia viria a mudar o comportamento de alguns homens (e a conquistar um deles, que viria a tornar-se seu marido e pai dos dois filhos). Reconhece que mudaram alguns comportamentos que tinham porque “estavam habituados a estar sozinhos”. “Mudaram o palavreado. Também por insistência minha. Às vezes descuidavam-se. Em tom de brincadeira, fui-lhes pedido para terem mais cuidado”, explicou.

Lá dentro, nem todos gostaram da ideia de ter mulheres no fundo da mina. “Uns aceitaram. Outros ficaram num impasse. Costumavam dizer: ‘Isto não é para mulheres’ “Ainda agora, quando tentamos fazer alguma coisa que eles acham que não conseguimos, dizem: ‘Deixa estar que eu faço’”. Andreia defende que não é preciso que eles o façam: “A maior parte dos trabalhos, conseguimos fazer. É preciso ajustar a técnica e as ferramentas. Eles também não conseguem fazer tudo”. A mineira de Neves-Corvo gosta do ambiente de trabalho. Às vezes, “quando o chefe não está”, é Andreia que assume o controlo. E gosta: “É mais fácil trabalhar com homens, mas temos de ter o pulso mais firme”. Fora da mina, o espanto é maior. “Perguntam se eu não tenho medo. Dizem-me que aquilo não é para mulheres. Algumas pessoas ficam espantadas, porque não sabiam que existiam mulheres mineiras”, diz a rir-se.

“Perguntam-se se eu não tenho medo. Dizem-me que aquilo não é para mulheres. Algumas pessoas ficam espantadas porque não sabiam que existiam mulheres mineiras”,
Andreia Rebolo, mineira na mina de Neves-Corvo

Luís Cavaco não acredita que as mulheres fiquem aquém dos homens. “Sabemos que é uma profissão que implica força. Há trabalhos que só mulheres musculadas conseguem fazer. Mas conseguem. E a prova disso é que há mulheres nas minas”, explica o coordenador do STIM ao Observador. Hoje, existem 15 mineiras no ativo, em Portugal. Na mina de Aljustrel, são seis, além das 14 que ocupam outros cargos que não implicam trabalho no terreno. Em Neves-Corvo, em 1207 trabalhadores há 120 mulheres: nove são mineiras e cinco são operadoras da lavaria — instalação industrial onde é processado o minério. Na mina da Panasqueira, Lucinda foi a única. Na de Loulé, também não há mineiras. Luís acredita que o aumento do número esteja relacionado com a carência de trabalho que há nas zonas: “Onde se situam as minas, a carência de trabalho é enorme. Por vezes, as mulheres também não têm outra alternativa senão ir para as minas ou lavarias”.

Tarefas iguais, salários iguais

A desproporção entre o número de homens e mulheres não se reflete salários. “Uma mulher tem o mesmo salário que um homem que ocupe o mesmo cargo. As diferenças podem existir entre um homem e uma mulher, se o homem tiver mais anos de experiência”, explica Luís Cavaco. O coordenador também se mostra satisfeito com a reação por parte dos homens. E tem uma justificação: “Neste setor, o companheirismo e a camaradagem são constantes, independentemente de se ser mulher ou homem”.

Só lamenta que a mina de sal-gema de Loulé não tenha mulheres. O lamento é partilhado pelo próprio diretor técnico daquela mina, Alexandre Andrade. Trabalha há mais de 25 anos nesta área. Por ele, “podiam existir só mineiras” na mina de Loulé. Só existe uma e é a engenheira geóloga que está na área de higiene e segurança no trabalho. “Mas faço tudo”, confessa ao Observador. Não vê problema em trazer mineiras para Loulé, porque “atualmente existem equipamentos que carregam os pesos que as mulheres possam não conseguir”. É um assunto que já foi debatido pela empresa, mas a dimensão da mina é pequena e “nunca aconteceu”. “Devia haver. Até é uma mina que faz bem aos asmáticos”, defende o coordenador do STIM.

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